“A gente se queixava do automático, mas ele encobria o fato
de que, quando a gente não está no automático, têm que tomar decisões. Pode ser
perturbador”, afirma Vera Iaconelli.
Publicado originalmente no site HUFF POST BRASIL, em 4 de maio de 2020
Tédio na quarentena? O que há por trás da queixa da 'falta
do que fazer' no isolamento
"A pandemia vem e arrebenta tudo. Não nos devolve nada
do passado. Ela nos impulsiona a descobrir novas formas de viver o
depois", afirma a psicoterapeuta Louise Madeira.
Por Marcella Fernandes
Uma das principais queixas em tempos do isolamento social
provocado pela pandemia do novo coronavírus, a sensação de tédio pode indicar
muito mais do que uma insatisfação com a falta de atividades interessantes
dentro de casa. Para psicanalistas e psicoterapeutas ouvidos pelo HuffPost
Brasil, a ruptura com a forma como o mundo se organizava até então impulsiona
uma série de reflexões que podem levar a transformações que se perpetuem quando
a covid-19 der uma trégua.
O surto que começou na China, em dezembro, atingiu a marca
de 1 milhão de infectados pelo mundo nesta semana. Imagens de pilhas de caixões
na Itália ou da Times Square vazia passaram a fazer parte do noticiário. Após
mais de um mês do primeiro caso registrado no Brasil, em 26 de fevereiro, a
realidade dura começa a se impor perto de nós. As cenas de pessoas de máscara e
prateleiras vazias no supermercado vão se somando a centenas de mortes e à
angústia diante da possibilidade de um colapso do sistema de saúde.
Distanciamento social, lockdown e SARS-CoV-2 começaram a
integrar um novo vocabulário enquanto epidemiologistas e infectologistas
procuram respostas. As taxas de letalidade da doença variam, países disputam
equipamentos hospitalares, não temos testes suficientes, nem vacina ou estudos
que comprovem a eficácia de um tratamento em larga escala. Tampouco sabemos
quanto tempo irá durar a crise e como será o mundo depois.
Embora o cenário possa parecer aterrador, se olharmos por
outra perspectiva, ele também pode abrir novos caminhos. ”A pandemia vem e
arrebenta tudo. Não nos devolve nada do passado. Ela nos impulsiona a descobrir
novas formas de viver o depois”, afirma a psicoterapeuta Louise Madeira.
O que é tédio?
Embora não haja uma definição técnica, o tédio aparece como
um “inquietante vazio”, como se a gente tivesse algo a ocupar”, de acordo com o
psicanalista Christian Dunker. “Algo que pode nos entreter, nos interessar, nos
levar a outro modo mental, algo que pode nos fazer trabalhar e que não vem a
acontecer”, completa o professor do Instituto de Psicologia da USP
(Universidade de São Paulo).
Essa sensação pode estar ligada a uma espera indefinida,
como as crianças que perguntam em longas viagens de carro se já estão chegando
ao destino. É uma forma de lidar com o tempo. “O tédio é um tipo de angústia.
Normalmente quando a gente pensa em angústia, a gente pensa em ansiedade, medo,
algo que causa certo terror. Mas existem foram deformadas. Assim como a angústia
é uma experiência no tempo, o tédio também é uma experiência no tempo. Só que
muito indeterminada. Como aquela pessoa que diz ’estou com vontade de comer uma
coisa que não sei o que é”, afirma Dunker.
O exemplo das crianças que se queixam de estarem entediadas
também é citado pela psicoterapeuta Louise Madeira, com a ressalva de que
“considerar tédio não ter o que fazer é um senso comum”. Em um mundo cheio de
tarefas - ainda que algumas suspensas pela pandemia -, a queixa de falta de
atividades não poderia ser genuína.
Para a terapeuta, o termo tem sido usado para denominar um
misto de sensações provocadas pela escalada da covid-19. “Vem a pandemia e eu
penso: expectativas suspensas, recusa de reconhecer isso, impaciência difusa
diante do desconhecido, do incerto. A nossa grande perda é da ilusão do
controle. E a sensação de esperar, sem saber o que nos espera. É uma quebra de
continuidade. A gente tem uma tendência de negar a ruptura achando que tudo vai
voltar a ser como antes. Como a gente não sabe o que fazer - e é saudável não
saber -, o nosso psiquismo pega essa gama de sensações e chama de tédio”,
afirma.
A vida antes da pandemia
Parte desses desconfortos já existia na vida antes do novo
coronavírus, mas estavam encobertos por um ritmo cotidiano e uma ordem social
em que o valor pessoal é medido pela produção. “A maioria de nós era cheia de
atividades alienantes, que não dão sentido à realidade. Elas impedem de dar
sentido à realidade porque você repete tarefas e produz. A gente vivia antes um
cotidiano extremamente empobrecido de significado”, lembra Madeira.
Como para muitos não era comum essa autorreflexão, a redução
das atividades sociais impõe uma ruptura que leva a questionamentos de
processos automatizados. “Temos uma desarticulação entre o sujeito e nossa
própria biografia. Todo mundo morrendo de trabalhar, correndo, não tem tempo de
nada. Como eu não me apropriava de mim mesma, quando eu sou tirada dessas
tarefas absurdamente demandantes, aparece muito mais o que, pra mim, não é o
tédio. É a falta de sentido”, afirma a psicoterapeuta.
A cultura de preenchimento de espaços vazios também é
apontada como uma fator ligado às queixas dos isolados entediados pela
psicanalista Vera Iaconelli. “A gente está sempre fazendo uma lista de coisas
para fazer. Isso acaba fazendo que a gente fuja do ponto de reflexão, dos
momentos onde não tem tarefa. E aí vou incluir férias e fim de semana, que
seriam momentos de ócio e também ficam cheios de tarefas a serem cumpridas. Se
você ficar sem fazer nada, parece que desperdiçou o tempo”, afirma.
São nesses momentos em que não há nada programado e em que
você se permite não fazer nada que pode surgir algum “diálogo interno, de
escutar um desejo, de ter que formular algo, entrar em contato contigo mesmo”,
de acordo com a doutora em Psicologia pela USP.
“A gente se queixava do automático, mas ele encobria o fato
de que, quando a gente não está no automático, tem que tomar decisões. Pode ser
perturbador.” - VERA IACONELLI
Embora a quarentena nos obrigue a abrir mão de atividades
prazerosas, a despressurização de demandas pode permitir que cada um crie sua
própria agenda. “Não têm aquela exigência de todo dia vou trabalhar e tenho de
estar maquiada e vestida. Quanto às crianças, as pessoas ficam arranjando
tarefas o dia inteiro para eles dentro de casa e brincadeiras, quando na
verdade, você pode deixá-las um pouco sem fazer nada. Não tem que criar para
elas o tempo todo uma diversão. Isso é um traço da nossa cultura, um fazer sem
reflexão, que agora está suspenso”, afirma a autora de O Mal-estar na
Maternidade e Criar Filhos no Século XXI.
"A modernidade nos tornou dependentes daquilo que
interrompe a repetição,
daquilo que é novo, inesperado", afirma Christian
Dunker.
O ‘dia da marmota’ e o tempo no isolamento
Com o passar dos dias dentro de casa, os brasileiros têm se queixado
de viver uma espécie de “dia da marmota”, em que todos os dias parecem o mesmo.
A expressão, que dá nome a uma festividade na cidade de Punxsutawney, nos
Estados Unidos, ficou conhecida no filme Feitiço do Tempo (1993). Na história,
o meteorologista interpretado por Bill Murray acorda todos os dias na mesma
data.
O feitiço é quebrado com uma mudança de comportamento do
protagonista. ”O dia da marmota se resolve pela criação de algo novo. Ele fazia
várias coisas muito diferentes uma das outras, mas não percebia que a
verdadeira mudança tinha que ser dele envolvendo o outro. Isso foi uma
descoberta”, destaca Christian Dunker.
De acordo com o psicanalista, o tédio pode ser um convite a
reformular a relação das pessoas com a repetição. “A modernidade nos tornou
dependentes daquilo que interrompe a repetição, daquilo que é novo, inesperado.
É onde a gente deposita a intensidade, onde a gente acha que realmente está
vivendo. São os grandes momentos, únicos, singulares. A partir de um
determinado ponto isso deixou de ser um grande ideal e passou a ser um ideal
opressivo. Um ideal que vai dizer: ‘se eu estou entediado com a minha vida é
porque tem algo errado com a minha vida’. A pessoa que pensa assim tem uma
superestimação do ideal moderno de que a vida é um conjunto de fogos
pirotécnicos. Ela está lidando mal com esse outro lado da vida, que é a
repetição”, afirma.
A busca por atividades pode ser saudável?
Embora seja tentador, rolar o feed do Instagram, abrir a
porta da geladeira ou clicar na primeira sugestão da Netflix podem não ser as
maneiras mais transformadoras de lidar com a sensação de monotonia. “A pior
forma de tratar o tédio é ocupar-se com algo que seria muito alheio a nós
mesmos. Assiste qualquer coisa na televisão, ou bebe, ou joga conversa fora, ou
pratica aquela palavra-cruzada fácil, que não te desafia, que não te coloca no
presente. Essas estratégias são adiamentos ou maus-tratos para o tédio”, afirma
Dunker.
O psicanalista sugere o que seria uma oportunidade de fugir
dessa busca por ocupação, a fim de incentivar processos criativos internos:
“As práticas mais criativas dependem de a gente de certa
forma transformar o tédio em angústia. A hora em que começa a nos inquietar,
nos deixar desconfortáveis, isso é o impulso para a verdadeira criação.”- CHRISTIAN DUNKER
Para Louise Madeira, procurar preencher o tempo com
atividades pode ser saudável, desde que isso não seja feito como um mecanismo
para negar as perdas impostas pelo momento atual. “A busca de entretenimento
faz sentido, se a gente conseguir encarar que estamos vivendo uma melancolia de
incerteza e de perdas real. [Tem que]Simbolizar essa espera; eu estou esperando
e está doendo esperar e eu vou conscientemente suprir a minha espera com esse
ato de entretenimento”, explica.
De acordo com a terapeuta, reconhecer essa melancolia pode
ser útil para construir novas formas de viver após a pandemia. “Pode nos ajudar
na volta à vida, que vai ser gradativa. Eu estava com a ilusão de que um dia a
pandemia passaria e tudo voltaria ao normal, mas vai ser gradativa a volta...
Isso também é aterrador. Está doendo a perda. Eu vou ficar mais pobre. Agora eu
sei disso; vou me estruturar e buscar coisas para fazer, para assistir, pegar
dicas.”
O tédio pode ser um convite a reformular a relação das
pessoas com a repetição.
O avanço das semanas de isolamento
Há cerca de três semanas, vivemos a diminuição do ritmo nas
cidades. Em 13 de março, o Ministério da Saúde deu aval para os governos
estaduais começarem a adotar medidas de restrição de circulação de pessoas. Com
o avanço do isolamento social, as vivências dentro de casa também mudam. “Cada
semana vai ter uma nova ficha que cai. A gente já abriu a cabeça que não se
trata de férias. Aquela sensação de alívio, de ter um álibi das coisas que a
gente não gostava de fazer também acabou. A ideia de termos todo o tempo do
mundo, também. Tem milhões de coisas para fazer no dia a dia”, exemplifica Vera
Iaconelli.
A psicanalista também destaca que havia um certo prazer
mórbido em pensamentos do tipo “ah, vai que o mundo acaba mesmo que eu quero
parar tudo o que eu faço”. “Esse prazer mórbido não está valendo toda a perda
que a gente tem. Então tem uma guinada ao longo das semanas em relação à
quarentena que vão caindo as fichas de perdas, e esses ganhos iniciais vão se
perdendo”, completa.
Nesse processo, também vai perdendo força a negação da
realidade, a sensação de que “comigo não vai acontecer”. “Essa mágica que a
gente tem - e precisa ter até para enfrentar o dia a dia - vai desaparecendo e
dando lugar a um certo tipo de realidade, uma certa convicção do que se passa,
e uma sensibilização de reconhecer que pode ser com a gente. Agora a ferramenta
psíquica da negação não se sustenta mais”, afirma.
“Eu tenho dito que é uma maratona. Não é uma corrida de 100
metros. Cada quilômetro tem de contar: 'ufa, mais um quilômetro'. E talvez cada
quilômetro seja comparado a cada semana. É bom beber água, é bom que alguém
bata palma enquanto você está correndo. Toda aquela administração dos recursos
ao longo desse percurso.” - VERA IACONELLI
O que podemos aprender com a crise?
Embora seja difícil lidar com saudades, incertezas, dores,
lutos, familiares ou amigos doentes, redução de salários ou perdas de vidas e
de empregos, também pode ser possível extrair algo positivo desta crise. Para
Vera Iaconelli, o recuo do número de casos de covid-19 em alguns países, como
na China, é indício de esperança. “Tem que pensar no horizonte. O mundo não vai
acabar. Claro que o mundo vai ficar diferente. Nós vamos passar por uma
provação, muitas pessoas vão morrer, muitas pessoas já estão sofrendo e
sofrerão, mas tem luz no fim do túnel, sim”, afirma.
Mudanças nas formas de consumo, diminuição da poluição,
fortalecimento dos relacionamentos íntimos e até mesmo o fim de relações que
não se sustentavam são citados como possíveis efeitos do momento que estamos
atravessando. “As lições estão sendo dadas. Não quer dizer que a gente aprende.
Aprender é mérito pessoal. Cada um corre atrás do que tira da experiência. A
experiência em si, ela não forma ninguém. A pessoa tem que fazer o uso dela”,
afirma Iaconelli.
Para Louise Madeira, é inevitável uma certa crise de
identidade, independentemente de classe social, durante a quarentena. Mas esse
período pode render frutos positivos. Talvez seja o momento para se dedicar a
pequenos projetos, tais como aprender uma receita, pegar sol na varanda do
apartamento ou começar aulas online de um idioma.
Madeira ressalta que está tudo bem também se não conseguir
transformar as angústias em algo bom. “Para algumas pessoas, só sobreviver, com
uma certa lucidez, vai ser um grande ganho”, conclui.
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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