sábado, 16 de março de 2024

A terrível ideia de querer pensar

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 16 de março de 2024

A terrível ideia de querer pensar

Qualquer fraqueza que a filosofia brasileira tenha se deve a uma coisa só: à falta de calçadas boas nas cidades do país. Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:

Uma das maiores discussões filosóficas da história está sendo travada no Brasil, agora mesmo, entre a filósofa Márcia Tiburi e o professor de filosofia Aluízio Couto.

Intelectualmente, é eletrizante. Lembra um pouco o grande debate de 1948 entre o filósofo Bertrand Russell e o padre Copplestone sobre a existência de Deus. Acompanhem, se conseguirem: a filósofa disse que a América Latina devia se chamar “Abya Yala”, um nome indígena — mais adequado, segundo ela, aos “avessos a heterodenominações patriarcais europeias e capitalistas”. O Professor Aluízio disse, por sua vez, que dava para imaginar a filósofa dizendo isso “para pinturas rupestres em um discoporto”. E, como reza o método socrático que se faça quando uma proposição filosófica é ridicularizada, Márcia Tiburi está processando o Professor de Filosofia da rede pública.

Não me sinto preparado para comentar essas especulações filosóficas da filósofa muito filósofa Márcia Tiburi. É um raciocínio complexo demais para mim e, sugiro agora, com intimidade excessiva talvez, que para você também.

Mas sempre encarei a filosofia como algo intransponível para mim.

***

Uma vez, anos atrás, decidi que ia ganhar um hábito novo: ia pensar um pouco. Ia sair todas as tardes pra dar uma volta e pensar sobre um Grande Assunto. Daí saí naquela tarde, na época morava em Perdizes, e passeei pelas ruas arborizadas do Pacaembu pensando num desses grandes assuntos da filosofia. Acho que era a eternidade, ou o Céu, ou o Inferno.

Ao voltar pra casa tinha chegado num insight enormíssimo, que já esqueci qual foi, mas que me deixou excitado: na história da humanidade sou o primeiro homem que pensa! Que tira de verdade um tempo pra pensar! E decidi fazer isso (pensar) todas as tardes da minha vida.

Nunca mais fiz. É, nunca mais pensei em nada. Claro que algumas crises, poucas, me fizeram pensar durante duas ou três horas em problemas pessoais meus, defeitos de personalidade meus, ou melhor ainda dos outros. Traçar planos práticos. Mas nos grandes assuntos da filosofia, ou mesmo mais mesquinhamente da política, nunca mais pensei. Não de verdade.

E acuso todo mundo de fazer o mesmo. Sobre um assunto genérico temos espasmos de pensamento de trinta segundos. Depois nos distraímos, e nossas opiniões sobre as coisas (esquerda ou direita, feminismo ou antifeminismo, qual o papel do governo, o que é uma boa vida, ser elitista ou não ser, etc) são o acúmulo ao longo de anos de muitos espasmos de pensamentos de trinta segundos, misturados com as nossas reações emocionais a uma frase sobre o assunto dita por alguém simpático ou antipático, anos atrás.

E essas são as nossas opiniões, e por isso inclusive nos sacrificamos e somos mártires, lutamos contra ditaduras, somos torturados etc — por espasminhos de pensamento de trinta segundos acumulados ao longo de anos.

“Fale por você”, disse uma pessoa uma vez quando falei mais ou menos isso, e fiquei espantado olhando para a cara boçal da pessoa (uma indireta pra você, Guilherme Bocchini). Fiquei considerando se estava de fato olhando para a única pessoa que pensava no mundo. Mas poderia a única pessoa que pensava no mundo ser um simples carinha, meio banana, com opiniões iguais à de todo mundo, como o Guilherme Bocchini? Desculpe, não acredito. Muito menos acredito que pensar seja um hábito geral da humanidade e que só eu esteja de fora. (Você falou com um membro da humanidade recentemente? Pois então.)

Às vezes tenho certeza que os grandes nomes da filosofia foram pessoas que pensaram só mais um pouquinho que eu. Dois mil e quatrocentos anos atrás, Platão tirou umas três tardes de agosto pra passear num bosque de Siracusa e pensar no que é a justiça, e ainda aproveitou pra passar na padaria antes de voltar pra casa. Pronto, bastou isso: elevou a humanidade, rompeu o véu da ignorância, descobriu algo, criou uma filosofia.

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Qualquer fraqueza que a filosofia brasileira tenha se deve a uma coisa só: à falta de calçadas boas nas cidades do país.

Como alguém pode ter qualquer pensamento coerente se, a cada três segundos, tem o raciocínio interrompido por um tropeço? Como um ser humano pode ter qualquer introspecção se o tempo todo é obrigado a olhar pra baixo pra dar o próximo passo?

Se, no lugar de caminhadas diárias de duas horas em volta do lago Silvaplana, Nietzsche tivesse que andar em volta da praça Sílvio Romero no Tatuapé, saltando as rachaduras no concreto, teria conseguido pensar o suficiente para escrever O Nascimento da Tragédia? Não, claro que não; ele não teria conseguido pensar o suficiente nem para escrever uma coluna da Márcia Tiburi.

Se você se preocupa com o destino do pensamento brasileiro, não construa escolas, não funde universidades nem think tanks: cuide da sua calçada.

Quanto a mim, qualquer insight que eu tenha tido na vida devo à calçada do Colégio São Domingos entre a rua Caiubi e a rua Bartira, em Perdizes: uns sessenta metros de superfície lisa, responsáveis por oitenta segundos diários de abstração feliz.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

terça-feira, 12 de março de 2024

Como era Freud dentro de seu consultório?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 12 de março de 2024

‘Minha Análise com Freud’: leia trecho exclusivo do livro que mostra o pai da psicanálise como clínico.

Abram Kardiner (1891-1981) foi paciente de Freud na década de 1920; grande incentivador da psicanálise nos EUA, ele faz relato íntimo de como era ser analisado pelo médico. Julia Queiroz para o Estadão:

Como era Freud dentro de seu consultório? Como seus pacientes se sentiam ao deitar no mais famoso divã da história da psicanálise? Este é o tema do livro Minha Análise com Freud, de Abram Kardiner (1891-1981), psiquiatra norte-americano que foi professor na Universidade Columbia de Nova York e um dos fundadores da New York Psychoanalytic Institute.

A obra narra o período de seis meses em que Kardiner foi analisado pelo pai da psicanálise em seu consultório em Viena, Áustria, no início da década de 1920. Inédito no Brasil e publicado originalmente em 1977, o livro chega às livrarias nesta quarta-feira, 13 de março, pela Quina. Leia um trecho abaixo.

“Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Freud. Por uma série de eventualidades, cheguei a ele por meio de H. W. Frink [psicanalista americano]. Se eu fosse mais jovem, hesitaria em revelar os fatos biográficos necessários para essa empreitada”, explica o autor no prefácio.

Kardiner diz que seu objetivo não é contribuir à Freudiana, “sobre a qual já existe material abundante”, e sim revelar a técnica do médico a partir de um caso específico - o dele mesmo. O especialista conta, através dos encontros com Freud, sobre sua infância, as diferenças com o pai, a relação sinuosa com a madrasta e descreve os sonhos que foram analisados pelo psicanalista.

O período que passou com Freud alterou “o destino e a existência” de Kardiner, como ele próprio escreve no livro. Um deles momentos de análise e a interpretação de um sonho aparecem em trecho da obra selecionado pelo Estadão. Confira:

Leia trecho de Minha Análise com Freud:

Então houve outro sonho, acho que na mesma noite, o qual eu nunca compreendi por inteiro. Eu estava ao lado de um enorme gato do qual aparentemente eu não sentia medo, mas ele estava imóvel e indiferente.

Freud disse: “Bem, parece que chegamos a algo muito importante aqui. No primeiro sonho, você obviamente não quer que eu aprofunde a sua relação com seu pai. Quer que a imagem permaneça como você a retocou, e assim, no sonho, você me diz para não continuar escavando o passado, que não encontrarei nada de importante”.

“Mas por que”, perguntei, “teria eu retocado a imagem do meu pai?”

“Para que de alguma maneira você pudesse conviver com ele. Em sua primeira infância, ele evidentemente o apavorava. No entanto, quando sua madrasta chegou, o temperamento de seu pai mudou, e é esse temperamento retocado que você desejava conservar e assim esquecer o pai raivoso dos seus primeiros anos. Mas você permaneceu submisso e obediente a ele de modo a não despertar o dragão adormecido, o pai bravio”. Minha reação imediata foi aceitar a interpretação de Freud. Foi apenas muitos anos depois que entendi o erro básico que ele cometeu aqui.

O homem que havia concebido o conceito de transferência não o reconheceu quando ocorreu nesse caso. Ele não percebeu uma coisa. Sim, eu tive medo do meu pai na infância, mas aquele que eu temia agora era o próprio Freud. Ele poderia me ajudar ou me destruir, o que meu pai não mais poderia fazer. Com sua afirmação, ele deslocou toda a ação para o passado, assim fazendo da análise uma reconstrução histórica. A parte retouchée de sua interpretação, entretanto, estava bastante correta.

Eu havia sido mais temeroso e submisso diante do meu pai do que eu tinha consciência, e dissimulara de mim mesmo minha própria agressividade e hostilidade em relação a ele. Mas pelos mesmos motivos, eu agora temia que Freud fosse descobrir minha agressividade dissimulada. Fiz com Freud um pacto silencioso. “Continuarei a ser submisso desde que você me deixe usufruir de sua proteção”. Se ele me rejeitasse, eu perderia a minha chance de entrar nesse círculo profissional mágico. A aceitação tática, de minha parte, isolou do escrutínio uma parte importante do meu caráter.

“O gato”, eu disse. “E quanto ao gato?”

“O grande gato”, Freud respondeu, “é a sua madrasta”.

Isso desencadeou uma série de associações em minha mente. Eu ainda podia ver a expressão enigmática no rosto do gato. Ele parecia imóvel, inacessível, indiferente. O que tinha isso a ver com a minha madrasta? Se, por um lado, eu temia meu pai, por outro faltava-me “confiança” nela. Talvez fosse essa a conexão com o gato. Ela estaria ali quando eu realmente precisasse dela, sobretudo como uma proteção contra meu pai? A resposta parecia estar no gato. Ela não era hostil, mas imóvel!

Em voz alta, eu disse a Freud: “Mas a minha madrasta é uma força tão estabilizadora na minha vida que sempre lhe serei grato”.

Pela primeira vez na análise, Freud ergueu o tom de voz. “Você está enganado a respeito de sua madrasta. Ainda que seja verdade que ela lhe propiciou um ambiente estruturado, também o superestimulou sexualmente e assim intensificou sua culpa em relação ao seu pai. Para evitar esse dilema você se refugiou em sua homossexualidade inconsciente por meio da identificação com a sua mãe natural. A base para isso foi ter se identificado com sua mãe indefesa pelo medo de se identificar com seu pai raivoso, agressivo”.

Tentei compreender o que Freud estava me dizendo. Eu podia entender a identificação e a parte feminina. Quando criança, eu me lembro de sentir que deveria ser um privilégio extraordinário ser uma dessas notáveis criaturas. Elas pareciam dispor de um tempo tão mais tranquilo. Tudo o que precisavam fazer era cuidar da casa e dos filhos. A verdadeira responsabilidade recaía sobre o pai. Tendo eu assistido aos esforços do meu pai para sustentar uma vida simples, essa imagem era agora compreensível para mim. Ao olhar para esse homem que era um adulto gigante, eu, a criança, podia apenas sentir uma fragilidade que me tornava inepto para a tarefa de desempenhar feitos audaciosos, como ir para a América ou combater um mundo hostil e assim ganhar a vida arduamente. Desta maneira, meu desejo pelo papel feminino era de fato o desejo de escapar das tribulações de ser homem. Mas isso nunca interferiu em minha pulsão erótica direcionada ao sexo feminino. Portanto, a interpretação de Freud me surpreendeu. Não consegui entender o que tudo isso tinha a ver com homossexualidade inconsciente, e pedi a ele que me explicasse.

“O que você quer dizer”, perguntei, “com homossexualidade inconsciente?”

Ele esclareceu: “Ao identificar-se com a mãe, a criança renuncia à sua identificação com o pai, dessa forma descontinuando seu papel de rival do pai. Isso lhe garante a contínua proteção do pai, assim respondendo a suas necessidades de dependência”.

“O que posso fazer em relação a isso?”

A resposta de Freud foi: “Bem, assim como ocorre em relação ao complexo de Édipo, acaba-se aceitando, reconciliando-se com isso”.

Ao comparar minhas anotações com as de outros estudantes, descobri que, assim como o complexo de Édipo, a homossexualidade inconsciente era parte rotineira das análises de todos. Ela consumiu boa parte do restante da minha.

Eu havia deixado a última sessão sentindo-me tranquilo, mas de certa forma intrigado por essas novas compreensões.

Texto e imagens reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sexta-feira, 1 de março de 2024

Ser humano: ser sexuado

Imagem postada pelo blog para simples ilustração

Artigo compartilhado do site JORNAL DO BRASIL, de 29 de fevereiro de 2024 

Ser humano: ser sexuado

Por Maria Clara Bingemer (mhgpal@gmail.com)

A sexualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, algo que sempre o questionou ao longo dos tempos. Por atingir todas as dimensões da identidade humana, levantou questões conflitivas e críticas, assim como inspirou as mais belas produções poéticas e artísticas da humanidade. Com relação à religião, a sexualidade tem uma história de diálogo e confronto que até hoje marca a vivência de fé das pessoas e das comunidades religiosas.

Alguns autores refletiram sobre essa dimensão antropológica fundamental, seja na história geral ou na história específica do cristianismo, religião predominante no Ocidente. O britânico Peter Brown em seus inúmeros e importantes trabalhos ressalta a importância da questão da sexualidade na complexa construção do poder dentro da organização do Cristianismo. Em sua reflexão encontram-se elementos tais como a relação entre sexualidade e espiritualidade, incluindo aí tudo que diz respeito à continência sexual, jejum, ascese e penitência. Um de seus argumentos é que a desconfiança dos Padres da Igreja em relação à sexualidade nos primeiros séculos foi uma reação contra a libertinagem do Império Romano tardio, onde o cristianismo viveu seus primeiros momentos e se organizou como proposta.

Santo Agostinho foi um dos pensadores cristãos que desenvolveu o tema da religião e da sexualidade. Seus escritos trouxeram algo novo à visão dominante nos círculos intra-eclesiais. Tratou de questões delicadas, como a virgindade, castidade, fornicação e casamento elaborando elementos de uma moral sexual cristã. Seu pensamento influenciou e moldou teoria e prática da Igreja. Da mesma forma, a visão agostiniana, embora tenha predominado até os dias de hoje na teologia moral e no pensamento eclesial, recebeu diferentes interpretações ao longo do tempo.

A Reforma Protestante trouxe novidades significativas para a compreensão da sexualidade que existia na Idade Média. A recuperação do significado original da prática da castidade e da virgindade enraizadas no texto bíblico e com ela a valorização e a aceitação do casamento tanto para leigos quanto para clérigos, foi uma das mudanças mais significativas que a Reforma introduziu na vida cristã nas fronteiras entre a Idade Média e a Modernidade. Nesse aspecto, Martinho Lutero faz uma importante contribuição para a compreensão teológica cristã da sexualidade humana, ampliando-a para além de sua compreensão anterior.

A corrente dominante no Ocidente hoje concebe a sexualidade como um direito individual: entre adultos que consentem com o contato e a relação sexual entre si e vivem um código em que a libido é lícita. A moral cristã, diante dessa concepção, adota uma posição contracorrente, ao continuar sustentando que existem leis naturais e divinas - que também seriam objetivas e cognoscíveis - que delimitam o espaço do permitido e do proibido no que diz respeito à sexualidade. O consentimento individual não seria suficiente para delimitar uma prática proibida por essas leis. Devido a isso, muitos cristãos se sentem rejeitados ou excluídos de uma Igreja que lhes propõe práticas nas quais eles não se veem contemplados. Ou então sentem-se desconfortáveis diante de uma concepção quase que meramente jurídica da prática da sexualidade que não se coadunam de forma positiva com a vivência existencial da fé e a experiência espiritual da Transcendência Divina como experiência de amor e misericórdia.

Diante disso, é urgente voltar, parece-nos, ao texto bíblico do relato da Criação que possibilita uma reflexão teológica sobre a condição humana sexuada. O texto do Gênesis diz que Deus criou o homem macho e fêmea: "Ele os criou à imagem de Deus e os criou macho e fêmea "ish ischah” (Gn 1:27), mas é preciso observar que a sexualidade no texto bíblico não se refere apenas à genitalidade. A diferença sexual afeta todos os elementos da corporeidade humana. Ela não afeta apenas o corpo, mas caracteriza o ser humano como um todo. Não são as glândulas que têm demandas sexuais, mas todo o ser humano. Os apetites sexuais não são direcionados apenas para os órgãos sexuais do outro sexo, mas para a outra pessoa como um todo, como portadora da determinação sexual. A diferenciação sexual não se limita à esfera biofísica, mas também atinge a esfera psicológica, pois é um constitutivo antropológico. A sexualidade é uma parte ineludível de todo ser humano, mas o ser humano não se reduz à sua sexualidade. É Eros, não logos. e encontra a raiz de sua compreensão no impulso vital que lança o indivíduo humano em direção ao outro por meio do desejo, da proximidade, do contato, da comunicação, a fim de alcançar a comunhão.

A sexualidade orienta o homem em direção à alteridade: "Não é bom que o homem esteja só; eu lhe darei uma companheira como ele" (Gn 2:18). O ser humano único encontra sua plenitude na enriquecedora diferença e reciprocidade a ele dadas pelo outro. Essa reciprocidade no amor é expressa na doação sexual: "Adão conheceu Eva, sua mulher" (Gn 4:1). A diferenciação sexual na verdade pertence à semelhança do humano com o divino, ou seja, ela o torna capaz de amar e ser amado. Como parte da criação, a sexualidade, por um lado, é distinta da divindade e, por outro lado, é caracterizada como a vontade e a marca de Deus em Sua criação.

O ser humano é sexuado e isso revela sua relacionalidade marcada pela alteridade. Essa alteridade que o configura em sua identidade constitutiva é o que revela sua vocação para ser a imagem de Deus, que é comunhão em seu ser mais íntimo. O próprio termo - comunhão - fala da identidade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo e da identidade do ser humano, criatura desse Deus, criado à sua imagem e semelhança. Ser humano é ser um filho da comunhão e não da solidão, é ser chamado e destinado à comunhão.

A criatura humana é relacional e transcendente, aberta ao mundo, aos outros, a Deus. É criatura destinada à comunhão. Por isso não se pode falar das núpcias entre o barro e o sopro, entre a terra e o céu, entre a argila e o espírito sem evocar a sexualidade. Esta não deve ser temida ou rejeitada como perigo ou lugar de tentação, mas acolhida como constitutiva de humanidade e caminho de plenitude.

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Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo: Paixão por Deus em tempos de descrença” (Editora Rocco), entre outros livros.

Texto reproduzido do site: jb com br

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

'A era da fragilidade', por Fernando Schüler para a revista 'Veja'

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 18 de fevereiro de 2024

A era da fragilidade

O ambiente tóxico criado pelas guerras culturais atuais surge como um jogo em que todos perdem. Fernando Schüler para a Veja:

Ronaldo e Raquel marcam o primeiro encontro em um restaurante bacana. Ambos jovens, a expectativa é grande, mas nada funciona. “Gosto dele”, diz Ronaldo, seco, depois de escutar Raquel falando de seu “horror” com uma volta de Trump à presidência americana. Milei, mudança climática e mais dois ou três assuntos arruinaram o que deveria ter sido um encontro romântico. Coisa de doido? Não, infelizmente. É o que vai se repetindo nos almoços da turma do escritório, no grupo de WhatsApp da faculdade, nos almoços de família. Efeito de um dos mais curiosos fenômenos da nossa época: a distância que se cria, mundo afora, entre as posições ideológicas de homens e mulheres jovens, na faixa dos 18 aos 30 anos. Em grandes democracias como os Estados Unidos, Alemanha, Coreia do Sul ou Reino Unido, a diferença entre rapazes “conservadores” e gurias “progressistas” gira em torno dos 30%, e continua crescendo. No Brasil, o Datafolha mostrou o dobro da preferência pela esquerda, entre as mulheres, contra um equilíbrio entre eleitores masculinos.

John Burn-Murdoch, do Financial Times, acha que o movimento #MeToo foi o gatilho do processo. O movimento que desencadeou uma onda de denúncias em torno do assédio sexual. Exagero. O #MeToo é parte do Zeitgeist atual, mas não é seu originador. Não há uma explicação consensual para o fenômeno, mas algumas hipóteses. O gap ideológico cresceu com rapidez a partir da última década. A época do Great Awokening, o despertar dos temas associados à “justiça social” e seu “pânico moral” (expressão de Mark Lilla) em torno das questões de identidade de gênero, raça e orientação sexual. É exatamente nesse período, que se inicia por volta de 2011, que crescem de maneira assustadora os índices de depressão entre adolescentes. Não de maneira uniforme, mas obedecendo a uma gradação: meninos conservadores menos vulneráveis. Depois as meninas conservadoras, os meninos progressistas e, no fim da fila, mais sujeitas às tendências depressivas, as meninas progressistas. Catherine Gimbrone, da Universidade Columbia, diz que “alunos conservadores relataram consistentemente menos sintomas de internalização”. Isto é, sua vulnerabilidade ou percepção negativa dos dramas cotidianos, das ofensas, das desgraças do mundo, reais ou imaginárias, é menor.

É apenas uma hipótese. A cultura subjacente ao Great Awokening é binária. O feminino surge como polo positivo diante da “sociedade patriarcal” e seus demônios. Isso se reflete no plano da retórica, da estética e no ajuste na estrutura de direitos. A partir daí, sua contraface: a migração dos homens mais jovens para posições conservadoras. Algo que me lembrou da socióloga Arlie Hochschild e sua imagem genial para definir a mentalidade conservadora americana. Arlie passou cinco anos vivendo em uma comunidade ultraconservadora no sul dos EUA. Concluiu que aquelas pessoas percebiam seu mundo como uma longa fila em que todos aguardam, trabalhando duro, porque sabem que lá na frente há o “sonho americano”. Em um certo momento, porém, começam a perceber que há um monte de gente furando a fila. E o resultado é a raiva social. Se observarmos no mundo real das oportunidades educacionais, teremos um sinal do espectro desenhado por Hochschild: 60% dos estudantes universitários americanos, hoje, são mulheres, e nos processos de admissão do ano passado superaram os alunos homens em torno de 35%. Estudantes homens evadem mais do ensino médio, são pressionados pelo mercado de trabalho. No Brasil, não é diferente. No último Enem, 61,3% dos estudantes eram mulheres, contra 38,7% de homens. O curioso é reação engajada. De um lado, o silêncio; de outro, manifestações de que tudo é “muito positivo”. Significa que a desigualdade ou a falta de “diversidade” só é ruim para um lado. Para o outro, é bem-vinda. Sob o manto de palavras generosas, recriamos um hiato entre a retórica e o mundo real.

Os sintomas estão aí. O ambiente tóxico criado pelas guerras culturais atuais surge como um jogo em que todos perdem. Novas formas de exclusão, por um lado, e uma permanente sensação de fragilidade e perda de autodomínio, por outro. O resultado é a exacerbação de um tipo de cultura da vitimização, segundo a psicóloga Rahav Gabay, da Universidade de Tel Aviv. O mindset vitimista traz algumas marcas definidas: uma contínua busca pelo reconhecimento de sua condição de “vítima”; uma crença em sua própria “superioridade moral” em relação aos demais; a baixa empatia pelo sofrimento dos outros, sejam eles os “conservadores”, os “privilegiados” ou qualquer um do lado “errado” das clivagens sociais. E, por fim, a propensão de “ruminar sobre vitimizações passadas”. A “ferida purulenta”, na expressão de Nietzsche. O que mais me chamou a atenção foi a conexão entre o mindset da vítima e a perda do sentido da potência individual. A crença perversa de que “a vida de cada um está sob o controle de forças externas a si mesmo”. O avesso do “você quer, você pode”, na frase de Obama que tanto irrita os detratores do mérito.

Deveríamos caminhar na direção precisamente oposta. Evitar os excessos da política e seu assalto sobre a vida pessoal. Preservar um saudável ceticismo, e uma distância segura, diante de qualquer grande narrativa, de esquerda ou direita. Levar a sério, e não apenas seletivamente, a ideia de diversidade, aceitando que cada um tenha a sua tribo. E entender que jamais deveríamos destruir uma velha e terna amizade por causa do que alguém acha de Lula ou Bolsonaro, Greta Thunberg ou Elon Musk. Este último, aliás, perdeu sua própria filha, que ainda na adolescência decidiu que o pai era um bilionário desprezível, responsável pelos males do planeta. O que nos resta, no fundo, é um tipo de atitude. O psicólogo Scott Kaufman sugere trocar o mindset da vítima pelo “mindset do crescimento”. A ideia de que nossos traumas “não precisam nos definir”, e que é justamente a “sabedoria de lidar com o sofrimento que pode nos fazer pessoas melhores”. De minha parte, sigo as lições do velho turco ao Cândido e sua trupe, na obra-prima de Voltaire. A ideia de que, diante de “todo o mal que há na terra”, o mais prudente era reconhecer que sabíamos muito pouco. Que era preciso retomar o controle. Esquecer “o que se passa em Constantinopla” e aprender que, para além de toda a pretensão humana, “cultivar o próprio jardim” era o melhor que tínhamos a fazer.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Filme de diligência

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 2 de fevereiro de 2024

Filme de diligência

Não é que Nelson Rodrigues tenha necessariamente se inspirado nesses filmes, se bem que isso pode ter acontecido, mas ele viveu num contexto bem próprio dos filmes de diligência. Josias Teófilo para a Crusoé:

A revista O Cruzeiro de 21 de janeiro de 1956 publicou uma sessão chamada Arquivos Implacáveis com Nelson Rodrigues. O dramaturgo respondeu dez itens do que gosta e do que detesta. Entre os que detesta estão “samba”, “psicanalista”, “qualquer político”, “sujeito inteligente”. Entre os que gosta estão “visitar cemitérios”, “mulher bonita e burra”, “fluminense” e… “filme de diligência”. O que seria filme de diligência? Não é um termo usual. Na verdade eu nunca o tinha ouvido.

Diligências eram as grandes carruagens que levavam passageiros, malas e correspondências entre as cidades americanas. Estamos falando, portanto, de filmes de faroeste. Um dos clássicos dessa arte é justamente No tempo das Diligências, de 1939, estrelado por John Ford.

Mas há também quem trate assim os filmes sem diálogos inteligentes, sem referências artísticas, sem o método stanislavski de atuação. Eles também não têm a jornada do herói, bons valores a serem passados ao espectadores. É cinema puro e límpido. Diálogos simples. Um problema que se resolve – de preferência a solução de um crime, ou a trama para realizá-lo. Tudo em preto e branco e tons de cinza. E o mais: nesses filmes praticamente não existe a bondade no mundo. Os bandidos são maus, a polícia também. Os bandidos são frios, totalmente insensíveis. As vítimas também. Toda e qualquer pessoa fuma. Fuma em qualquer ambiente e sem parar.

Esse tipo de filme foi feito num período soturno da historia da humanidade: o período entre as guerras, e posterior à Segunda Guerra – quando a Europa estava sendo reconstruída, e o trauma daquele período ainda estava no ar.

Foi uma época de espiões, fotógrafos de guerra que arriscavam a vida para realizar fotos (como Robert Capa), cineastas filmaram no front em meio a bombardeios (como John Ford), escritores que foram soldados, jornalistas que desapareciam. Foi uma época de perigos e desencontros. Isso ficou impresso nos filmes de Fritz Lang (M), Marcel Carné (Le quais des brumes), Julien Duvivier (Les temps des assassins), Alfred Hitchcock (Rebecca), John Ford (No tempo das diligências), e tantos outros. E na dramaturgia de Nelson Rodrigues, que viu os filmes desses diretores nos antigos cinemas do Rio de Janeiro – provavelmente na Cinelândia.

Não é que Nelson Rodrigues tenha necessariamente se inspirado nesses filmes, se bem que isso pode ter acontecido, mas ele viveu num contexto bem próprio dos filmes de diligência. Teve um irmão morto. Passou privações materiais e a fome. Foi jornalista policial. Internou-se num sanatório. Lá conviveu com loucos, assassinos. Cobriu assassinatos, suicídios e daí tirou inspiração para peças e crônicas memoráveis.

Nelson Rodrigues poderia muito bem ser personagem de um filme de Marcel Carné na Paris dos anos 1950. Ou num filme americano contracenando com Humphrey Bogart, fumando e frequentando cemitérios.

Por vezes em suas peças tem-se a mesma impressão que nos filmes de diligência: todo mundo é mau. E os personagens repetem: “Eu sou um canalha”, como em Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende. Trata-se da história do jovem Edgar, convidado a casar-se com uma jovem, filha do seu patrão. Edgar, entretanto, ama Ritinha, uma moça que se prostitui para sustentar a família depois que a mãe foi demitida injustamente dos Correios. As irmãs acabam se prostituindo, e o responsável é exatamente o patrão de Edgar, que usa do dinheiro para corromper as jovens. “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer”, é dito na peça.

É tanto mau que o espectador fica atordoado. É maldição atrás de maldição (se bem que o final da peça é feliz, de certa forma). Por que tudo isso? Manuel Bandeira explica: “A ficção de Nelson Rodrigues está cheia de coisas atrozes e imorais. É verdade, a vida também, mas quem, acreditando em Deus, ousaria classificá-lo de imoral. Por que a vida, criação de Deus, está cheia de coisas atrozes e imorais?“. Tal explicação serve perfeitamente para os filmes de diligência.

Texto e imagem reproduzidos dp blog: otambosi blogspot com

Facebook: 20 anos depois, qual é a importância da plataforma como mídia?

Facebook - (Crédito da foto: Adobe Stock)

Meio & Mensagem, de 5 de fevereiro de 2024 

Facebook: 20 anos depois, qual é a importância da plataforma como mídia?

Responsável por mudar a forma como pessoas e marcas interagem, rede social ainda tem na comunicação de massa e segmentação elementos importantes para as marcas

Por Bárbara Sacchitiello

Nesse domingo, 4, completaram-se exatos 20 anos em que quatro estudantes da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, criaram a tela inicial da plataforma que viria a ser, anos depois, a maior e mais importante rede social do mundo: o Facebook.

Fruto das jovens mentes de Mark Zuckerberg, de seu colega brasileiro, Eduardo Saverin, e dos estudantes Dustin Moskovitz, Chris Hughes e Andrew McCollum, o Facebook foi elaborado para funcionar como um misto de dados e plataforma de comunicação para os estudantes de Harvard.

Não demorou para que a popularidade da rede extrapolasse as paredes da universidade, ganhando fama em outras instituições de ensino e, posteriormente, em outras cidades e partes do mundo.

As duas décadas de existência do Facebook abrangem não só o período de maior transformação na forma como as pessoas se comunicam e interagem pelos meios digitais como também contemplam a ascensão da internet como o território principal para a publicidade e conexão das marcas com os consumidores em todo o mundo.

Em uma sociedade ávida por curtir, comentar e compartilhar, algo difundido globalmente sobretudo pela força do Facebook, só uma rede social acabou sendo pouco. Se por anos foi o nome e corpo de uma única companhia, desde 2021, o Facebook é um dos (porém, ainda o mais lucrativo), pilar de negócios da Meta, companhia que agregou as operações do Instagram e WhatsApp, que lançou uma nova rede social (o Threads) e que mudou de nome ao tomar para si a missão de difundir, pelo mundo, o conceito do metaverso.

O Facebook em números

O aniversário de 20 anos foi completado dias depois da divulgação do balanço trimestral da Meta, que apresentou os resultados referentes ao quarto trimestre de 2023.

Nos meses de outubro, novembro e dezembro, a companhia (considerando Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads) teve um lucro líquido de US$ 14,02 bilhões, o que representa um significativo aumento de 201% em comparação com o mesmo período de 2022.

Analisando somente o Facebook, dados divulgados pela Meta no segundo semestre do ano passado mostraram que a rede social alcançou a marca de mais 3,08 bilhões de usuários ativos no mundo, o que torna a rede social, mesmo 20 anos depois de seu lançamento, ainda a mais utilizada no planeta.

Facebook, 20 anos: revolução e legado

Com números ainda tão superlativos em todo o planeta, o Facebook é um raro caso de uma rede social que conseguiu manter e preservar seu papel junto aos usuários e aos anunciantes, uma vez que a publicidade ainda é a principal fonte de receitas da companhia. Ainda que, ao longo dos anos, outras redes sociais tenham ocupado seu espaço no cotidiano das pessoas e das marcas, não dá para retirar o Facebook seu papel de elemento revolucionário na conexão instantânea entre as pessoas.

“Em um curto espaço de tempo, o Facebook cresceu por meio da conexão entre marcas, pessoas e fontes de informação. Com o tempo, apresentou diferentes produtos imersivos dentro da plataforma, evoluindo para ambientes com possibilidade de compra, troca e inspiração e foi, muitas vezes, de extrema relevância pra o resultado dos negócios”, relembra Glaucia Montanha CEO da Artplan São Paulo e CEO da Convert Digital Business.

O Facebook revolucionou, de forma rápida e intensa, a forma como as pessoas se conectam e interagem, também na opinião de Marcos Vinicius Costa, diretor de operações da Media.Monks. “É uma rede social que uniu de forma fácil o compartilhamento de informações, fotos, vídeos, atualização de status com amigos e familiares, trazendo o diferencial de fazer isso de forma pessoal e instantânea”, diz.

Outro diferencial, citado por Costa, está na criação de comunidades com interesses comuns, além da possibilidade de ter dado às empresas a chance de ter um canal direto de comunicação com seus clientes.

Ao analisar a importância do Facebook para a conexão humana, Henrique Fogaça, diretor de mídia da W+K São Paulo, faz uma referência. Para ele, o Facebook solidificou um caminho que já havia sido aberto pelo Orkut, rede social que teve no Brasil um de seus mais populares territórios. Porém, a plataforma de Zuckerberg conseguiu ir além, melhorando a experiência do usuário, investindo em novos features para a plataforma e fazendo aquisições importantes ao longo do tempo, como a do Instagram.

“Essas aquisições contribuíram muito para o portfólio da companhia e aumentaram a capacidade de alcance, interação e geração de conversas das marcas com os usuários”, reforça Fogaça.

Qual a importância do Facebook hoje?

Já há alguns anos, contudo, são comuns as análises e percepções de que o Facebook não detém, entre os usuários, o mesmo prestígio dos primeiros anos. Muitas pessoas que eram frequentadores ativos deixar de postar textos e fotos e até mesmo deixaram a rede social. As gerações mais jovens, também, vêm dando preferência aos recursos e ferramentas de outras redes, como Instagram e TikTok.

Ainda que o público não seja o mesmo de outrora, profissionais de mídia consideram que, como plataforma de mídia, o Facebook ainda é uma rede social fundamental para os anunciantes, tanto pelo uso que a plataforma ainda tem no Brasil como pelos recursos oferecidos às empresas.

“É fundamental para as empresas estarem presentes nessa rede social, pois ela é altamente versátil e oferece um alcance massivo de publico devido às suas dimensões”, diz Costa, da Media.Monks. O diretor cita como exemplo a veiculação avançada de anúncios segmentos e as otimizações das campanhas como vantagens importantes da rede social.

Mesmo após 20 anos – e com diversas outras redes sociais lançadas e competindo pela atenção do usuário, o Facebook ainda é um dos maiores players de alcance do Brasil. A opinião é de Fogaça, da W+K São Paulo. “Sua granularidade de segmentação traz uma maior segurança na assertividade das audiências e na eficiência das campanhas”, pontua.

A CEO da Artplan e da Convert também concorda com os demais profissionais sobre a relevância do Facebook como plataforma de mídia. Ela relembra um estudo de janeiro de 2023, divulgado pela Statista, que mostrava que o Facebook era o quarto país do mundo com maior número de visitantes da rede social, tendo, na época, 109 milhões de usuários. “Mesmo com a queda de público, segundo as pesquisas, sabemos que essa rede social possui um inventário relevante”, diz Glaucia.

Entretanto, ela alerta que a forma de se relacionar com as marcas e pessoas mudou muito a partir do surgimento e evolução de outras plataformas. ‘É certo que o Facebook possui um papel importante como plataforma de mídia, porém sua maior eficiência está no uso combinado com diferentes meios, formatos e demais ferramentas. Temos uma audiência polarizada que se comporta de formas diferentes em cada meio em que se apresenta maior conexão e afinidade. Dessa forma, a escolha do uso de uma plataforma precisa estar alinhada ao propósito, o que torna o cenário ainda mais desafiador”, analisa.

Texto e imagem reproduzidos do site: www meioemensagem com br/midia

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Filhos são coisa do passado quando as relações viram gestão estratégica

Artigo compartihado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de  4 de fevereiro de 2024

Filhos são coisa do passado quando as relações viram gestão estratégica

Procriar é um compromisso sólido demais para uma existência que, hoje, se move apenas pelo líquido. Luiz Felipe Pondé via FSP:

Uma mega tendência, dizem os especialistas, em futuro próximo, é a queda sustentada da natalidade no Brasil. Essa mega tendência é comum em países que se modernizaram. No Brasil, esse é um problema a mais porque o país envelheceu e não enriqueceu. Jovens geram mais riqueza e custam pouco, idosos geram menos riqueza e custam caro –pura estatística, inteligentinhos idosos ofendidos não precisam sair me xingando.

Esse processo não deverá mudar, porque as causas são históricas, sociais, existenciais e econômicas. Esse tipo de coisa não se muda com um workshop de mentoria ou mentiras do marketing. E a principal razão é associada aos "ganhos" da modernidade.

Uma nova sabedoria popular afirma por aí que, em matéria de filhos, o pior são os primeiros 40 anos. Afora a anedota, reside aqui uma motivação bastante séria para a queda da natalidade, filhos viraram um ônus grave para os candidatos a pais e mães –altamente neuróticos hoje. Melhor não os ter.

Filhos, durante milênios, foram o simples resultado da alta atividade sexual na espécie. Sem TV, sem celular, sem jantares sociais, sem carga exaustiva de trabalho, a humanidade, de média etária jovem, tinha no sexo sua principal diversão —isso para não falar no imenso número de estupros sistemáticos que deixavam as meninas grávidas já desde a primeira menstruação. Como se costumava saber, quando mulheres jovens transam e homens gozam dentro delas, a chance de engravidar é enorme.

O "progresso moderno" da humanidade transformou essa relação milenar num processo passível de grande espaço para gestão estratégica. O comportamento sexual e afetivo das pessoas passou a ser visto como um dos tópicos da agenda de planejamento de carreira. O que antes acontecia de modo espontâneo, assim como se respira, se transformou em objeto de cálculo de consequências. Essa passagem do espontâneo, impensado, ao calculado é a modernidade entre as pernas das mulheres.

Filhos hoje são matéria de contabilidade. Pesa-se muitas coisas antes de deixar um espermatozoide apressado chegar a um óvulo desavisado. Evidente que acidentes continuam a acontecer, mas ser moderno é exatamente calcular tudo de forma eficiente para evitar acidentes. A própria noção de que a maternidade seja um telos –finalidade essencial– da condição feminina é considerado machismo.

Filhos hoje são sinistros jurídicos. Implicam custos imensos em caso de separação –casamentos hoje são solúveis em água e filhos são uma imensa pedra em meio a reorganização da vida pós-casamento. Homens reclamam que no Brasil qualquer juiz toma um terço da sua renda sem a menor atenção ou análise mais detida da situação do ex-casal, quase como uma punição, enquanto mulheres reclamam que os pais fogem da responsabilidade e as deixam a ver navios com o pepino a ser descascado, atrapalhando, inclusive, sua futura vida sexual, afetiva e profissional.

O fato é que filhos são sólidos demais para uma existência que se move no líquido, como diria Bauman (1925-2017). Quando você tem um filho com uma pessoa, você está ligado a ela para sempre, o que, em nossos dias, pode implicar um enorme problema em vários níveis dos cálculos existenciais que caracterizam a vida contemporânea.

Filhos implicam em escola, saúde, atenção, finais de semana, férias, fracassos nas expectativas de que serão o que os pais pensam que seriam quando crescessem, incertezas quanto ao retorno do afeto dado a eles quando crianças, enfim, um mergulho que coloca você diante da contingência. Aliás, como dizia o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), quando um homem casa e tem filhos, oferece reféns para a contingência.

Mulheres veem filhos como um alto risco para sua independência e carreira profissional. O maior ônus biológico é delas, indiscutivelmente. Além das variáveis psicológicas e estéticas em jogo, são tomadas como por um tsunami de novos eventos, transformações e sentimentos. A mulher emancipada pensa mil vezes antes de ter um filho, dois nem pensar. E isso não vai mudar. O futuro é dos idosos solitários. Parabéns, modernidade!

Texto e imagem reeproduzidos do blog: otambosi blogspot com

domingo, 28 de janeiro de 2024

"A morte segundo Nelson", por Ruy Castro

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 26 de janeiro de 2024

A morte segundo Nelson

Nelson Rodrigues tinha um caso de amor com a morte, óbvio nas suas muitas frases sobre ela. Ruy Castro para a FSP:

Sobre o furto, há dias, do busto de Nelson Rodrigues no Cemitério São João Batista, arrisquei aqui que ele veria nisto uma consagração. Houve quem duvidasse. Mas Nelson tinha uma relação especial com a morte. Eis algumas de suas grandes frases sobre ela.

"A morte é anterior a si mesma. Começa antes, muito antes. É todo um lento, suave, maravilhoso processo. O sujeito já começou a morrer e não sabe." "Morrer significa, em última análise, um pouco de vocação. Há vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas." "Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo, todo homem tem um olhar de contínuo." "O sujeito procura esquecer que o homem é também o seu próprio cadáver." "Há na morte por intoxicação alimentar um inevitável toque humorístico, que humilha o cadáver e compromete o velório."

"Há em qualquer infância uma antologia de mortos." "A morte natural é própria dos medíocres. O medíocre morre de gripe, de pneumonia ou da empada que matou o guarda. Já o grande homem morre tragicamente. Veja Lincoln, Gandhi, Kennedy." "Há uma inteligência da morte, assim como há uma bondade da morte. O que vai morrer já olha as coisas, as pessoas, com a doçura do último olhar. Eu diria que é a saudade antes do adeus." "Nada mais falso do que o medo de morrer, e eu diria que fazemos tudo para morrer o mais depressa possível. Os nossos hábitos, os nossos usos, os nossos vícios, as nossas irritações mal disfarçam a vontade, a urgência, a fome da morte."

"A solidão do morto não começa no túmulo. Para qualquer morto, a pior forma de solidão é a capela. As pessoas abandonam o velório e vão tomar cafezinho, refrigerantes, comer sanduíches. A morte tem por fundo um alarido de xícaras e pires." "Não há morto canastrão. Vestido de noivo, com sapatos engraxados, todo morto tem a face, o ríctus, o perfil do grande ator."

Não são lindas de morrer?

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

'Redescobrir a leitura é preciso', por Carlos Alberto Di Franco, via Estadão

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de janeiro de 2024

Redescobrir a leitura é preciso

A nova geração tem mais acesso à informação que qualquer outra antes dela. Mas isso não se reflete em um ganho cultural. Carlos Alberto Di Franco via Estadão:

A dependência das ferramentas da era digital é um fato. Os adolescentes não desgrudam do celular. Passam horas navegando na web ou absortos nos videogames. Mas não só eles. Todos, jovens e menos jovens, estamos reféns do mundo digital.

Para o norte-americano Nicholas Carr, formado em Harvard e autor de livros de tecnologia e administração, a dependência no uso da internet está empobrecendo nossa cultura, matando talentos e causando distúrbios psíquicos. Ele não fala do uso da internet, mas da compulsividade virtual.

Segundo Carr, o uso exagerado da internet está reduzindo nossa capacidade de pensar com independência e profundidade. “Você fica pulando de um site para o outro. Recebe várias mensagens ao mesmo tempo. Isso desenvolve um novo tipo de intelecto, mais adaptado a lidar com as múltiplas funções simultâneas, mas está perdendo a capacidade de se concentrar, ler atentamente ou pensar com profundidade.”

A nova geração de adolescentes tem mais acesso à informação que qualquer outra antes dela. Mas isso não se reflete em um ganho cultural. De fato, há uma perda considerável de qualidade da mão de obra. Os índices de leitura e de compreensão de texto vêm caindo intensamente. A conclusão é que, apesar do maior acesso às tecnologias, não se vê um ganho expressivo em termos de apreensão de conhecimento.

A internet é uma formidável ferramenta. Mas não deve perder o seu caráter instrumental. O excesso de internet termina em compulsão, um tipo de desvio que já começa a preocupar os especialistas em saúde mental. Usemos a internet, mas tenhamos moderação. Precisamos, todos, redescobrir o prazer e a beleza da leitura.

Estou de férias e dando voltas ao tema desta coluna. Qual será o tema? Bingo! Ocorreu-me compartilhar com você, amigo leitor, algumas obras. Espero, quem sabe, que o estimulem em suas férias de verão. Vamos lá:

O Óbvio Ululante – As Primeiras Confissões (Editora Agir, Rio de Janeiro). Como dizia Nelson Rodrigues, “a arte da leitura é a releitura”. Comentário certeiro. Acabo de reler as memórias de Nelson Rodrigues, suas Confissões, condensadas no magnífico Óbvio Ululante. Trata-se de um dos maiores cronistas que o Brasil já teve. Seu conhecimento da alma humana, com seus picos de grandeza de seus abismos de miséria, fica esculpido num texto insuperável. Nelson foi um criador de tipos antológicos. Como o anônimo cidadão que lhe serviu para criar Palhares, o canalha, o que “atacava as cunhadas nos corredores”. Ou a imortal grã-fina “com nariz de cadáver”. Ou, ainda, o sacerdote que o inspirou a criar o “padre de passeata”. Seu texto, brilhante e saboroso, dissecava a alma humana e radiografava a sociedade. Mas o que mais me impressiona é a atualidade do pensamento rodrigueano. Um livro fascinante.

O Quinto Movimento – Propostas para uma Construção Inacabada (Já Editora, Porto Alegre). Seu autor, Aldo Rebelo, é um estadista. Quatro vezes ministro de Estado, deputado federal em muitas legislaturas, presidiu a Câmara dos Deputados e, como relator, dotado de grande capacidade de convencimento, conseguiu aprovar um Código Florestal irretocável. Trata-se de um depoimento sobre a centralidade da questão nacional que, segundo Rebelo, “é a ideia de que a nação é o eixo organizador da vida social na presente etapa da história da civilização: a convicção segundo a qual o Estado nacional é a organização apta para proteger os valores da dignidade da pessoa humana e a crença na certeza de que viver em um país livre de qualquer submissão a outro país é o mais sagrado dos direitos do homem depois do direito à vida”. Dotado de uma cultura extraordinária e uma incontida paixão pelo Brasil, Aldo Rebelo apresenta propostas que merecem uma reflexão. A coragem e sinceridade do autor é uma lufada de esperança num ambiente tão conturbado e num momento tão crucial da nossa história. Um livro obrigatório para quem quer entender o Brasil.

A Igreja das Revoluções (Editora Quadrante, São Paulo). Esse é o último título da História da Igreja de Cristo, a monumental obra de Daniel-Rops. O autor, membro da Academia Francesa de Letras, estava trabalhando no 11.º, que trataria do Concílio Vaticano II, quando faleceu. A multissecular história da Igreja, intimamente relacionada com a história da civilização, é um banho de cultura e um magnífico prazer intelectual.

O Fio de Ariadne – A Literatura e o Labirinto da Vida (Cultor de Livros, São Paulo). Rafael Ruiz, em seu livro, procura olhar para a literatura como um caminho que leva o ser humano à plena realização, ou seja, é um trajeto que humaniza o ser humano. Nas palavras do autor, o livro funciona como um mapa que nos leva “em busca do humano”. Esse mapa nos guia através de histórias já muito conhecidas, apontando-nos as armadilhas e os tesouros do coração do homem. Ulisses, El Cid e os personagens de O Senhor dos Anéis viajam e regressam conosco, transformados. Frankenstein e os personagens de Dostoievski viajam, mas nunca retornam. E nós?

A literatura é o Waze que nos conduz na aventura da vida.  

Texto reproduzido do blog: otambosi blogspot com

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Entrevista com Sofia Coppola: "Admiro a Priscilla por ter deixado o Elvis"

Crédito da foto: © Getty Images

Publicação compartilhada do site da revista VOGUE, de 10 de janeiro de 2024 

Entrevista com Sofia Coppola: "Admiro a Priscilla por ter deixado o Elvis".

Por Lolita Mang 

Para assinalar a estreia de Priscilla, a Vogue falou com Sofia Coppola durante a sua estadia em Paris. Conheça a realizadora.

Sofia Coppola é uma daquelas artistas que não intelectualiza o seu processo criativo. Esses artistas existem, mas são poucos e raros. Quando os jornalistas apontam semelhanças entre os seus filmes, fica muitas vezes espantada: "Oh, não tinha reparado". É como se o seu cinema fosse o cinema do inconsciente. No entanto, é difícil ver nas trajetórias de suas personagens femininas um destino inconsciente, tanto que elas se sustentam nas mesmas etapas, nos mesmos obstáculos específicos da experiência das mulheres. Em Priscilla - que chega aos cinemas NOS a 7 de março - uma cena da emancipação é pontuada por I Will Always Love You de Dolly Parton. No ecrã, uma mulher, Priscilla Beaulieu, que deixa Graceland de uma vez por todas. Na banda sonora, uma mulher também, e não menos importante: Dolly Parton, compositora e intérprete do êxito I Will Always Love You, ela própria admiradora de Elvis Presley. Mais ainda, ela adorava-o. Reza a história que o "Rei do Rock'n'Roll" esteve muito perto de fazer um cover de I Will Always Love You, o que deixou a cantora country muito feliz. Mas na véspera da famosa gravação, o empresário de Elvis Presley, mais conhecido por "Coronel", telefonou a Dolly Parton e exigiu obter os direitos de edição da canção. Parton recusou, fazendo uma das escolhas mais importantes da sua carreira. Afinal de contas, foi Whitney Houston que fez um cover da música em 1992. A canção tornou-se objeto de culto quase instantaneamente, e fez de Dolly Parton uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos. Será que Sofia Coppola sabia deste episódio histórico quando escolheu a canção de culto de Parton para encerrar o seu último filme? Essa é a pergunta que gostaríamos de lhe ter feito.

Priscilla Beaulieu, um arquétipo cinematográfico de Sofia Coppola

Corria o ano de 1985 quando o livro Elvis and Me foi publicado nos Estados Unidos, quase para indiferença geral. Escrito por Priscilla Beaulieu, com a ajuda de Sandra Harmon, este livro de memórias traça a polémica relação entre a jovem mulher e o cantor - sem dúvida a coisa mais próxima que a América alguma vez viu de um casal da realeza. O caminho de Priscilla cruzou-se com o de Elvis quando ela tinha apenas 14 anos e ele 24, mudando-se pouco depois para Graceland, onde terminou a sua adolescência antes de casar com o homem que ainda considerou, em 2023, "o grande amor da sua vida".

Elvis and Me, Sofia Coppola lembra-se de ter lido há alguns anos: "Fiquei surpreendida ao descobrir como era fácil identificar-me com ela. Embora este casal seja muito famoso na cultura americana, eu não sabia nada sobre a história de Priscilla. Não fazia ideia, por exemplo, que ela tinha vivido na Graceland quando ainda andava na escola secundária", explicou em Paris. No entanto, Priscilla tem todas as características de uma heroína coppolesca, ou quase. De jovem adolescente a mulher adulta, viveu uma vida reclusa numa prisão dourada. Os seus tormentos, tal como o seu tédio, são em tudo semelhantes aos das irmãs Lisbon em The Virgin Suicides, ou aos de Marie Antoinette, como outra figura da realeza: "Há uma ligação entre todos os meus filmes, isso é certo. Quando comecei a pensar em Priscilla, perguntei-me se não seria demasiado semelhante a Marie Antoinette. Mas, para mim, é diferente: A Priscilla queria ir para Graceland. Ela tem sempre uma escolha e, de facto, é ela que escolhe ir.

Não é difícil encontrar o que as heroínas de Sofia Coppola têm em comum. Filha do cineasta Francis Ford Coppola, passou a sua infância nas rodagens dos filmes do pai, espalhados por todo o mundo. Criada num mundo de homens, optou desde cedo por retratar apenas a vida das mulheres, por vezes confinadas a culturas que não foram feitas para elas. Priscilla não é exceção, onde a personagem principal, interpretada pela impressionante Cailee Spaeny (vencedora da Taça Volpi de Melhor Atriz no Festival de Veneza), se vê presa entre duas culturas masculinas por excelência: a religião, por um lado, e a música rock, por outro. Considerada por Elvis Presley como um símbolo de pureza suprema, é-lhe recusado o direito de o acompanhar a Hollywood, onde ele aproveita a sua solidão para a trair. Em muitos aspectos, a Priscilla de Coppola assemelha-se à jovem noiva interpretada por Scarlett Johansson em Lost in Translation, relegada para o seu quarto no Park Hyatt de Tóquio enquanto o seu marido fotógrafo desaparece para trabalhar com uma série de celebridades. Uma relação fictícia inspirada no casamento de Sofia Coppola com o cineasta Spike Jonze, que terminou em 2003.

Por trás das fachadas douradas, a violência

Do Château Marmont em Somewhere ao Château de Versailles em Marie-Antoinette, sem esquecer a villa de Paris Hilton em Bling Ring, Sofia Coppola desenvolveu um gosto por lugares que vê como prisões douradas: "O que se passa por trás das aparências? Qual é a diferença entre um conto de fadas e a vida real? Os locais são filmados como personagens por si só. No caso de Priscilla, a realizadora tentou recriar as paredes de Graceland em Toronto - mas numa escala muito maior: "Nunca tinha feito isso antes, construir um cenário de raiz", confessa. Mas foi o diretor de fotografia Philippe Le Sourd, com quem Sofia Coppola trabalha desde o seu filme The Beguiled (2017), que completou a atmosfera única do local.

Como Priscilla Beaulieu escreveu nas suas memórias, e como Sofia Coppola mostra no ecrã, o que se esconde por trás do portal único de Graceland é a violência de um homem impulsivo que goza do seu próprio domínio sobre aqueles que o rodeiam: "Agarrou-me pelo braço, empurrou-me violentamente para a cama e explicou com gestos fortes que eu tinha atirado as almofadas com demasiada força. No calor da discussão, bateu-me no olho", lê-se numa passagem de Elvis and Me, que Coppola transcreveu fielmente para o ecrã. As adaptações de Coppola são quase sempre fiéis. De The Virgin Suicides, de Jeffrey Eugenides, a Marie Antoinette, de Evelyne Lever, a realizadora gosta de usar os diálogos das obras que adapta para o grande ecrã, por vezes até à última palavra. Mais adiante, Priscilla escreve: "Só muito mais tarde é que percebi a importância de ele me mostrar que ainda tinha o controlo da situação. Sempre que eu expressava a minha opinião de uma forma demasiado brutal, ele lembrava-me que pertencia ao sexo forte e que eu, como mulher, tinha de ficar no meu lugar".

Feminismo sem nome

Priscilla deve ser visto como um filme feminista? Sofia Coppola mantém-se discreta sobre esta questão. Mas tem-no feito desde o seu primeiro filme: retratar a vida de mulheres condenadas ao silêncio pela história. É uma obsessão que atravessa toda a sua filmografia. Um exemplo é a sua curta-metragem Lick the Star, que mostra um grupo de raparigas adolescentes a conspirar para envenenar todos os rapazes do liceu. Um ato vingativo e revolucionário, cortado pela raiz pela rivalidade feminina. Uma história que ecoa em The Beguiled, outra adaptação da realizadora, em que as raparigas de um colégio interno são confrontadas com a chegada de um soldado ferido, alterando as suas vidas. É um lembrete sombrio de que as mulheres nunca podem ser vitoriosas num mundo governado pelo patriarcado.

No entanto, é preciso dizer que, com o tempo, o cinema de Sofia Coppola se tornou mais otimista. Enquanto as heroínas de The Virgin Suicides estavam condenadas a uma morte certa, a heroína de On The Rocks, filme discretamente lançado na Apple TV + em 2020, encontra o marido antes do final do filme, as suas suspeitas de infidelidade dissipadas. Neste legado, Priscilla está do lado otimista, uma vez que continua a controlar o seu próprio destino. Nesta história, é a saída [de Priscilla] da Graceland que fascina a cineasta mais do que qualquer outra coisa: "Admiro-a pela sua coragem em deixar Elvis, porque afinal, era tudo o que ela conhecia".

À medida que os minutos passam, a conversa de Sofia Coppola desvia-se de Priscilla, dos seus filmes e dos últimos lançamentos cinematográficos do ano. Lamenta não ter visto (ainda) Anatomy of a Fall, de Justine Triet. Embora a heroína interpretada por Sandra Hüller pareça muito distante das da realizadora americana, inspira uma última pergunta: poderemos ver mulheres sombrias e maquiavélicas no centro das próximas histórias de Sofia Coppola? "Sabe, quase adaptei um romance de Edith Wharton, The Custom of the Country. Há uma mulher bastante terrível no centro da história. Mas a empresa com que estava a trabalhar não aceitava fazer um filme com uma mulher tão pouco amável como protagonista", confessa, sem nomear a Apple TV+, que financiaria o projeto de adaptação. "Interessa-me sempre mais a ideia de retratar mulheres. Identifico-me mais facilmente com as suas histórias. E é ainda mais interessante se pudermos ver todas as suas facetas!", acrescenta.

Priscilla é um filme que quase não chegou a ver a luz do dia por falta de dinheiro: "Perdemos o financiamento mesmo antes da rodagem. Foi muito complicado, não vou escondê-lo", explica Sofia Coppola. Embora os filmes da realizadora estejam longe de ser comerciais, poder-se-ia pensar que o seu nome, por si só, é suficiente para abrir todas as portas da indústria cinematográfica, especialmente as dos produtores: "A indústria cinematográfica americana é demasiado tradicional. É preciso preencher caixas e cumprir requisitos muito específicos. Hoje em dia, as pessoas olham para os algoritmos para ver se querem investir no filme. Fico contente por ainda existirem audiências como o público francês. São mais aventureiros do que nós". Devemos culpar um sistema de produção americano obsoleto, ou os lugares de decisão serem ainda ocupados por homens que não se interessam por histórias que não lhes dizem respeito? Tal como Sofia Coppola, desta vez deixamos a questão em aberto.

Texto e imagem reproduzidos do site: www vogue pt