A estudante Nathalya Reis Soares, 15 anos, moradora da Brasilândia, em São Paulo.
Foto: TONI PIRES FELIPE BETIM
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 12 de maio de 2020
Jovens têm choque de consciência sobre privilégios e
injustiças do Brasil durante a pandemia
Adolescentes relatam a angústia, e as percepções sobre as
diferenças sociais do país. “Tem gente que não tem água pra lavar a mão”, diz
Dora. Refúgio na tecnologia ganha outro sentido na quarentena
Nathalya Soares, Clara Mello, Ana Regina Costa e Dora
Fernandes. Quatro adolescentes que vivem realidades sociais diferentes, mas
contam com uma estrutura familiar e de moradia que permitem atravessar a
pandemia de coronavírus dentro de suas casas. Em comum, vivem as angústias de
um confinamento de quase dois meses que praticamente deixou em suspenso suas
vidas. E suas juventudes. “Acho que as pessoas têm vivido a quarentena de forma
muito individual, mas a juventude é uma fase em que as coisas estão pulsando.
Não poder sair é muito cruel”, opina Dora, 19 anos, moradora do rico bairro de
Higienópolis, em São Paulo. Também compartilham preocupações com os estudos,
com suas relações pessoais e com a própria realidade do país. “A escola liberou
agora os estudos online, mas a maioria não conseguiu acessar o site ou enviar
as lições. E e, muito menos para enviar o trabalho”, relata Nathalya, 15 anos,
moradora da periférica Brasilândia e aluna do 9º ano de uma escola da rede
municipal de São Paulo.
As quatro garotas nasceram e cresceram já nos tempos da
Internet e da explosão das novas tecnologias. Pertencem a uma geração que
sentirá os efeitos mais fortes das mudanças no mercado de trabalho e do
aquecimento global. E agora precisam lidar também com uma pandemia de proporções
equiparáveis à gripe espanhola —que matou milhões de pessoas entre 1918 e 1920—
e com potencial para alterar não só seu futuro como também suas percepções
sobre a própria vida. “Por mais que continuemos a usar as redes sociais, nada
substitui o contato físico com as outras pessoas. Acho que vamos valorizar mais
isso tudo. Ouço gente dizer que deveria ter aproveitado mais”, conta Clara, 15
anos e moradora do Leme, bairro de classe média da zona sul do Rio de Janeiro.
A adolescente se dedicava a várias atividades fora de casa.
Entre os que mais sente falta está o futevôlei na praia. Fazer exercícios pelo
aplicativo não é a mesma coisa. Ela ainda está se acostumando a viver 24 horas
no mesmo ambiente —um apartamento de dois quartos— com seus pais e sua irmã.
“Divido o quarto com ela e não tenho privacidade, então fico muito agoniada com
isso. To tendo que conviver com minha família como não fazia há muito tempo”,
conta Clara. “Por outro lado, tem a parte boa de conversar com minha família,
conhecer esse lado que não conhecia. Nunca fui uma pessoa aberta com eles, e
agora esses dias acabo conversando sobre coisas como escola, relacionamentos,
amigos...”.
De forma geral, essas jovens são céticas sobre a
possibilidade de mudanças profundas no mundo após a pandemia. “Quando paro para
pensar que é algo muito histórico, de algo que vamos falar para nossos netos,
fico assustada. Não gosto da ideia de viver essas grandes coisas", opina
Dora. Ela até acredita que sua geração, “que em geral é muito acelerada, quer
tudo na hora”, vai passar a dar valor a outras coisas. "Mas não acho que a
humanidade vai repensar hábitos ou o próprio sistema capitalista”, acrescenta.
Para Ana Regina, 17 anos, moradora do município periférico
de Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana de Recife, o período de
quarentena deixará “uma mensagem para todos de humanidade”. O que isso
significa? Ela explica: "A gente vê que a natureza está voltando, que as
pessoas estão amorosas. E isso fica de lição para o jovem, que dá tanta
importância para a tecnologia, para o mundo virtual, a valorizar mais a família
e as pessoas da escola. Esse mundo virtual não é tão interessante”.
Enquanto esse futuro ainda não chega, Ana Regina vem vivendo
as angústias da quarentena. Aluna do 2º ano do Ensino Médio de uma escola da
rede estadual de Pernambuco, deseja cursar Direito e vem, desde o ano passado,
se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A pandemia de
coronavírus fez com que interrompesse as aulas do cursinho. Sua escola, por
outro lado, foi uma das poucas da rede pública da região a adotar o esquema de
aula online. “Tenho dificuldade porque eles estão mandando muito mais conteúdo.
Ainda que eles passem tudo na plataforma online, não é a mesma coisa estar na
sala de aula explicando e fazendo perguntas", explica.
Com exceção das aulas da escola, conta que seu dia “acaba
sendo vazio”, sem que ela consiga organizá-lo com muito sucesso. Ao contrário
de outras pessoas, séries e filmes da Netflix ou as videoconferências com os
amigos não entraram em sua rotina. A jovem conta estar com o “emocional
bastante fragilizado” e até mesmo o gosto de ler perto do pau-brasil em seu
quintal foi deixado de lado. “Eu adoro ler, mas não tenho conseguido. O que
mais tenho feito é dormir”, explica. Ela elenca os motivos de estar
emocionalmente fragilizada: “Eu tenho problemas de asma e coração e gostaria
muito de poder caminhar, mas não tenho nenhum tipo espaço para fazer exercício.
Não posso estar perto das pessoas que amo, não posso atuar politicamente, não
posso estar na escola estudando...".
Apesar de morar numa região de periferia, Ana Regina, que
mora com a mãe numa casa de três quartos com quintal, considera ter mais
estrutura que muitos de seus colegas. “Enquanto alguns romantizam a quarentena
e falam sobre se reinventar e se adaptar as plataformas online, outras pessoas
nem mesmo tem acesso a internet”. Não surpreende que, diante desse cenário, o
Governo Jair Bolsonaro queira manter as provas do ENEM, uma de suas principais
preocupações. Os adolescentes mais ricos, com mais estrutura para continuar
estudando durante a quarentena, serão beneficiados em detrimento de pessoas com
menos recursos para tal, acredita ela. “É algo feito para os adolescentes mais
ricos, e os prejudicados somos nós. Estamos vivendo na prática um governo que
sempre se apresentou como preconceituoso e misógino”.
A quarentena também afetou a saúde mental de Nathalya, que
mora na Brasilândia com a mãe e o padrasto. A garota conta ter ficado os
primeiros dias de isolamento em seu quarto. Ainda hoje “é horrível" estar
trancada dentro de casa. “Eu adorava sair para um monte de lugares, para
festa... Ia de ônibus para a escola, então estava sempre vendo gente. Estava
sempre rodeada de amigos, então foi um baque no início”. Além da Netflix, se
distrai com ligações com os amigos. “Aí tem que mexer no celular, ver vídeo no
Youtube, para ir passando o tempo, ir enrolando...". A quarentena também
afetou seu horário de sono e fez com que trocasse o dia pela noite: as séries e
filmes têm feito com que durma por volta de cinco da manhã e só acorde na tarde
do dia seguinte.
A adolescente vê as opções de lazer dos jovens da periferia
como ela reduzida, ao contrário de jovens de classe média ou alta. “Eles vão
ter uma piscina dentro do condomínio ou de casa, vão conseguir colocar o som
alto, se divertir... Agora, a gente aqui não dá”. Já Dora, que mora num
apartamento de três quartos em Higienópolis e se considera uma privilegiada,
sempre romantizou o fato de que moradores das periferias e favelas brasileiras
possuem, segundo explica, um senso maior de coletividade, de solidariedade.
“Vivem mais em comunidade, nas ruas, enquanto a gente, por ser mais
individualista, já ficava em casa vendo Netflix", argumenta. “Tenho uma amiga
que foi com namorado para a praia. As pessoas mais ricas subestimam as mais
pobres, como se fossem menos conscientes da doença, e não é assim”.
Faz uns dias que ela deixou com seus pais e seu irmão o
apartamento que vivem para continuar a quarentena no sítio da família em Mogi
Mirim. “Tem árvore, tem piscina, dá para tomar sol”. Também mantém uma rotina
de aulas online da faculdade de Psicologia da PUC de 9h às 16h, aula de violão
às terças e terapia às quartas por Skype, além das conversas constantes com os
amigos por Facetime. Todos esses fatores, além do fato de que ela e seu irmão
podem dormir em quartos separados, aumentaram ainda mais sua consciência sobre
como o Brasil é desigual. "Não são só as coisas materiais, é a
tranquilidade de tomar sol. As pessoas não tem tranquilidade do tempo. A gente
tem a capacidade de relaxar, descansar a mente, enquanto as pessoas estão
desesperadas. A mulher que trabalha na minha casa estava desesperada, com medo
que minha mãe fosse mandá-la embora. Tem gente que não tem água pra lavar a
mão”.
Clara, aluna do 1º ano do Ensino Médio de uma escola privada
do Rio, também conta se reconhecer como alguém com privilégios nessa pandemia.
“Eu já tinha consciência da desigualdade e de que tenho privilégios, mas agora
me dou ainda mais conta disso". Como exemplo ela cita o ensino a
distância, um regime de aulas que, quando começou a pandemia, ela já imaginava
que seu colégio adotaria. Uma forma de perceber como isso por si só era um
privilégio, uma oportunidade que não seria oferecida para todos os jovens de
sua idade, se deu através de seu pai, professor tanto de escola privada como
pública. “Vejo ele sempre tendo reunião e discutindo coisas distantes da minha
realidade, debatendo uma forma de os alunos da escola pública terem acesso ao
conteúdo e não ficarem no prejuízo”.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário