Unidades de Pronto Atendimento (UPA) em Fortaleza, adaptadas para enfrentar a pandemia.
Ivanildo Vieira com a esposa, filhos e netos em uma comemoração familiar.
Fotos: Mateus Dantas
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
9 de maio de 2020
A busca por uma UTI para Ivanildo Vieira escancara um
sistema de saúde que já entrou em colapso
Idoso morreu em uma semana, enquanto sua família pedia
socorro ao SUS, ao sistema privado e à Justiça no Ceará. Crise leva Fortaleza a
converter Unidades de Pronto Atendimento em “hospitais”
Por Beatriz Jucá
Ivanildo Vieira Damasceno, de 66 anos, acordou exausto
naquele domingo 26 de abril. Havia passado por uma longa noite mal dormida, com
fortes dores no corpo, tosse e febre. Estava tão cansado que não conseguiu
cuidar dos dois cavalos que cria num terreno próximo de sua casa no Bom Jardim,
um dos bairros mais vulneráveis da periferia de Fortaleza, nem visitar os
clientes para os quais fabricava próteses dentárias populares, como costumava
fazer inclusive nos fins de semana. Naquele dia, tudo o que conseguiu fazer foi
tomar um banho antes de ser levado por um dos seus três filhos até uma Unidade
de Pronto Atendimento (UPA), onde já havia sido examinado e liberado no dia
anterior. Com suspeita da covid-19, Seu Ivanildo, como é conhecido no bairro,
precisou ficar internado porque, além da dificuldade para respirar que passou a
apresentar, tinha duas condições complicadoras para a doença: hipertensão e
diabetes.
Longe da família e sem poder receber visitas, foi perdendo
cada vez mais o fôlego até ter um tubo enfiado na garganta para ajudá-lo a
respirar. Entrou oficialmente na fila por um leito de UTI. Sem respostas dos
órgãos oficiais quando Fortaleza já tem 97% dos leitos ocupados e o Ceará já
soma 13.888 casos da doença, a família de Ivanildo precisou montar uma operação
particular de guerra para que ele tivesse uma estrutura fundamental para
superar a fase mais aguda da doença. Durante vários dias, pediu socorro ao SUS,
peregrinou por uma vaga em vários hospitais privados, foi à Justiça. Mas, no
último domingo, Ivanildo morreu antes de conseguir um leito de UTI.
"A história da nossa família é a história de um sistema
de saúde que já entrou em colapso”, diz Leidiane Gonçalves, nora de Ivanildo.
Ela acompanhou o marido e os cunhados todas as tardes na UPA do Bom Jardim.
Dividiu a angústia de sua família com a de outros parentes de internados, que
faziam fila para saber alguma informação sobre seu estado de saúde, nem sempre
com detalhes. Até o segundo dia de internação de Ivanildo, Leidiane ainda
conseguiu ligar para o celular dele e, numa tentativa de animá-lo, contar que
toda a família aguardava ansiosa pela sua cura. Foi a última vez que se
falaram, porque a partir daí ele já não pôde mais atender as ligações e as
visitas estavam proibidas por conta do elevado risco de contágio do
coronavírus. Quando o quadro de saúde do sogro piorou, Leidiane se viu imersa
―com o marido e os cunhados― em uma saga até então inimaginável para a família:
a luta pelo leito especializado que os médicos haviam recomendado no prontuário,
mas não saía.
“A gente via o jornal dizendo que estavam abrindo mais UTIs
e não entendia porque não davam uma pra ele”, diz Leidiane. Quando há indicação
nas UPAs para internação em UTI, o paciente é registrado na Central de
Regulação de Leitos do Município, que determina para onde ele deve ser
encaminhado. Fortaleza tem, ao todo, 337 leitos de terapia intensiva em
funcionamento para o atendimento de pessoas com a covid-19 na rede pública,
distribuídos em 10 hospitais, sendo um deles o hospital de campanha levantado
em um estádio de futebol para enfrentar a crise. Sete desses hospitais estão
completamente ocupados e os demais têm taxa de ocupação superior a 93% na
terapia intensiva.
O problema é que a demanda por essa estrutura tem crescido
mais rápido do que a capacidade de abrir novos leitos pelo poder público. Se no
momento prefeitura e Governo chamam a grave situação de “exaustão da capacidade
assistencial de saúde” em relatórios apresentados à imprensa, eles projetam que
―mesmo com o esforço em seguir esse ritmo de criação de novos leitos― o
“colapso” chegará no final de maio, caso a velocidade de contágio permaneça a
mesma. Segundo o Governo do Estado, a demanda por um leito de enfermaria ou UTI
cresceu 400% entre os dias 2 de abril e 5 de maio. “Hoje, 800 leitos de
enfermarias, 621 leitos de UTI e 419 ventiladores mecânicos estão sendo
utilizados por pacientes com suspeita ou confirmação da covid-19 no SUS e na
rede privada do Estado”, informa um boletim epidemiológico do Ceará. Para tentar
distribuir a demanda em um maior espaço de tempo, Fortaleza (que concentra a
maioria dos casos do Estado) bloqueou entradas e saídas da cidade e restringiu
a circulação de pessoas e veículos no espaço público.
As medidas mais rígidas são para tentar desacelerar o
aumento da pressão sobre o sistema de saúde, que já atua acima do limite. Um
procedimento de transferência de uma UPA para um hospital que demorava em média
24 horas ou 48 horas antes da pandemia agora pode até ficar sem solução, como
aconteceu com Ivanildo. Nem a Prefeitura de Fortaleza nem o Governo do Estado
dizem qual é o tamanho atual da fila por uma UTI capaz de receber pacientes com
a covid-19. Também não detalham quais são exatamente os critérios que definem
quem tem prioridade quando não há leitos para todos os que o necessitam. A
Prefeitura de Fortaleza diz apenas que a distribuição dessas estruturas “leva
em conta o quadro clínico do paciente e sua estabilidade para o traslado”.
Também não comenta especificamente o caso de Ivanildo.
Sem saber quanto tempo poderia demorar para conseguir um
leito do SUS e vendo a doença matar centenas de pessoas no país dia após dia, a
família do cearense solicitou a documentação com os registros médicos na UPA do
Bom Jardim para pedir socorro à Justiça. Leidiane conta que o pedido só foi
feito na véspera da morte de Ivanildo por conta da demora para conseguir toda a
documentação e que, na manhã seguinte, a advogada que contrataram lhe contou
que havia sido negado. Há dias, a família já apelava também aos hospitais
privados. “Cada hora que passava, a gente sentia que era uma hora a menos que
ele tinha”, conta.
Familiares pesquisaram que uma UTI particular custaria entre
15.000 e 20.000 reais por dia. Filhos e amigos juntaram suas economias e
orçaram o que poderiam levantar com a venda de dois carros da família e um
empréstimo no banco. Calcularam que, com todos os esforços, chegariam a 100 mil
reais ―ou de cinco a sete dias de internação num centro de terapia intensiva.
Passaram então a se dividir e visitar pessoalmente hospitais particulares, mas
nos três que procuraram também já não havia vagas disponíveis. “Era nosso ato
de desespero. O que a gente sente mais nessa perda é que ele ainda podia ter
alguma chance com uma UTI. Talvez ele tivesse morrido lá também, mas a gente
teria tentado pelo menos”, diz Leidiane. No Brasil, seis Estados já têm colapso
na rede privada de UTIs, segundo a Confederação Nacional de Saúde. Além do
Ceará, estão na lista Amazonas, Pará, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro.
Ivanildo Vieira faleceu durante a madrugada de sábado para o
domingo dia 3. O médico disse à família que sua pressão baixou muito e que ele
já não respondia às drogas. Ivanildo morreu longe de Zélia, a companheira com
quem viveu por 40 anos, sem ler a carta que os netos lhe escreveram durante a
internação. Deixou este mundo com o sonho não concretizado de reformar a casa onde
morava para rodeá-la por um amplo alpendre. “O que a gente sente é impotência.
A gente fazia o que estava ao nosso alcance, mas esse esforço parecia pouco.
Era como se a UTI fosse uma coisa endeusada. Só os deuses conseguiriam chegar
lá. A gente merecia um final feliz porque estávamos muito empenhados, mas esse
final não veio”, diz Leidiane.
Ivanildo foi enterrado no mesmo dia que morreu, com o caixão
lacrado e sem o resultado do teste para o coronavírus, que foi coletado, mas
ainda não saiu. Com velório e missas proibidos durante a pandemia, só cinco
familiares foram ao sepultamento. Ali, o ritual religioso se limitou a uma
oração rápida. “Nós perdemos uma pessoa que amamos pra sempre em uma semana. A
covid-19 é rasteira, rápida e letal. As pessoas precisam ficar em casa. Não dá
pra fazer pouco caso do que a gente viveu”, desabafa Leidiane.
Ivanildo não chegou sequer a um hospital. Durante uma
semana, ficou internado numa unidade de saúde que, em tempos normais, não seria
a mais apropriada ao seu quadro de saúde. No SUS, as chamadas Unidades de
Pronto Atendimento são estruturas intermediárias entre o posto de saúde e o
hospital. Elas recebem pacientes com doenças moderadas e têm uma estrutura
mínima para estabilizar os casos mais graves. Em tese, internam as pessoas de
forma transitória enquanto direcionam quem realmente precisa de uma atenção de
maior complexidade aos hospitais. Mas, diante da pressão imposta pela epidemia
do coronavírus, precisaram se adaptar para atender ao máximo de gente possível
ali mesmo.
No Bom Jardim, por exemplo, até a sala de medicação virou
leito de internação, segundo relatam funcionários. Novas camas foram colocadas
no espaço interno e um novo espaço ―com tendas e macas― foi organizado no
terreno vizinho como anexo à unidade de saúde. Lá e também em outras UPAs da
capital cearense, se tenta implementar o mais próximo possível da estrutura de
um leito de UTI para receber pacientes com a covid-19, mas a estrutura
disponível, conforme relatam profissionais de saúde, está longe da terapia intensiva
convencional. Enquanto as vagas nos hospitais de referência não saem, o que era
para ser um serviço de passagem virou um “hospital”.
“Nós mudamos a nossa função. A gente não estava preparado,
mas tentamos suavizar o colapso. A gente tem muita vontade de ajudar, mas tem
dias que é desesperador”, diz uma profissional de saúde de uma UPA de Fortaleza
que preferiu não ser identificada. Ela conta que nessas unidades é possível
entubar os pacientes mais graves, mas não há respiradores para todos. Também não
é possível administrar determinadas drogas (como alguns sedativos) porque não
há todos os equipamentos necessários para monitorar os pacientes. Também não há
médicos intensivistas, que são especializados em UTI, para orientar os
profissionais não especializados no manejo do paciente. “O que temos na UPA foi
sempre uma observação médica adulta e outra pediátrica, com suporte básico.
Temos respirador e medicações básicas, mas não é pra assistência avançada. E
agora a gestão está tendo que organizar quase uma UTI na UPA pra gente poder
tentar ajudar o máximo de gente durante a pandemia”, conta a profissional.
Profissionais de saúde contam que já atuam acima do limite e
que o fluxo de pacientes tem crescido dia após dia. A Prefeitura de Fortaleza
não chama os leitos da UPA de terapia intensiva. Diz que há 150 “leitos de
observação” nessas unidades ― que são geridas por organizações sociais ou pela
gestão municipal ― para pacientes com suspeita de coronavírus e que 98% deles
estão ocupados no momento. Enquanto a capital cearense se aproxima de mil
mortes pela covid-19 e vê a curva de contágio crescer rapidamente, foram
instalados contêineres frigoríficos nas Unidades de Pronto Atendimento para
preservar o corpo de pacientes falecidos pela covid-19 nessas unidades. A
Prefeitura não respondeu ao EL PAÍS qual é a ocupação desses equipamentos no
momento. Disse apenas que seriam usados “se necessário”.
Profissionais de saúde ouvidos pelo EL PAÍS contam que não
era raro haver mortes nas UPAs, mas que elas estão muito mais frequentes por
conta da pandemia. O avanço da doença levou o medo de ser infectado agora ao
cotidiano de quem trabalha nessas unidades. Uma profissional de saúde conta que
virou automática a revisão mental que faz todos os dias, enquanto se desloca ao
trabalho, sobre cada cuidado que precisa ter para não ser infectada. Há dias
―como foi o plantão da quinta-feira (7) ― que mal há tempo para comer ou ir ao
banheiro. A máscara não sai do rosto. “A gente tá lutando aqui, mas estamos
acima de todos os limites”, conta. O trabalho é recompensado quando, mesmo com
a escassez de estrutura, os pacientes que estão ali superam a doença. "UPA
não é referência para a covid-19, mas na falta de espaço nos hospitais
destinados aos pacientes com coronavírus, precisa cuidar desses pacientes. A
gente comemora quando dá alta na UPA. Não conseguimos transferir essa pessoa,
mas conseguimos salvá-la”.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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