Uildéia Galvão, médica de Manaus que atende paciente da
covid-19.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
01 de maio de 2020
Manaus testemunha a 'hora da morte’ por covid-19. “As
pessoas morrem sozinhas. Sozinhas, sozinhas, sozinhas.”
A médica Uildeia Galvão atua em condições precárias no PS 28
de agosto, na capital do Amazonas, um retrato do colapso que se espalha pelo
Brasil
Por Josette Goulart
“Os pacientes que têm
covid sentem muita sede. Tem momento que eles querem muita água. E aí você vê o
paciente pedindo água e… você não pode, você não consegue, você está entubando
alguém, vendo um outro paciente mais grave. E você não tem ninguém para dar
essa assistência para esse paciente”. A médica Uildéia Galvão trabalha 12 horas
por dia, todos os dias. Às vezes, 20 horas por dia, para dar conta dos
pacientes que chegam ao Pronto Socorro 28 de agosto, em Manaus. A capital do
Amazonas é uma das mais afetadas no Brasil pela crise do coronavírus e tem sido
palco das histórias mais tristes da pandemia no Brasil. Superlotação em
hospitais, avalanche de corpos nos cemitérios, centenas de mortos que não
conseguem chegar ao hospital e morrem em casa.
Galvão atende os 120 leitos da Sala Rosa do PS, para onde
são encaminhados os doentes graves de covid-19. Médica há 25 anos, ela não
consegue aceitar essa nova modalidade de ‘hora da morte’ trazida pelo
coronavírus: “É difícil você ver pessoas morrerem sozinhas. Sozinhas, sozinhas,
sozinhas. Sozinhas”. Sim, ela repete o “sozinhas” cinco vezes como quem não
acredita nas próprias palavras que saem da sua boca.
No 28 de agosto, não dá tempo de fazer uma teleconferência
por celular na hora da despedida. No 28 de agosto, não dá tempo para nada.
“Você vê pacientes quatro dias sem tomar banho, sem ter o asseio, porque você
não tem o recurso humano ali para fazer isso”. O colapso do sistema de saúde de
Manaus parece que estava para acontecer a qualquer momento, mas o coronavírus
apressou as coisas. A doutora Galvão diz que é verdade que muitos profissionais
de saúde pegaram o vírus e foram afastados, mas a bem da verdade, segundo ela,
é que não havia recursos humanos suficientes há muito tempo.
Em plena pandemia, os profissionais de saúde dos
pronto-socorros de Manaus estavam ainda para receber o salário de fevereiro. Em
plena pandemia, os profissionais de saúde dos PSs de Manaus precisam comprar
seus próprios equipamentos de proteção. Em plena pandemia, muitos dias sem que
o laboratório de saúde pública do Amazonas não recolhesse material para fazer
os testes de covid-19. E não é atraso em divulgar resultados. Não há coleta de
material para produzir resultados mesmo. "E olha que só estamos atendendo
pacientes realmente graves”, diz Uildeia.
Oficialmente, o Estado somava 476 mortes por covid-19 até
sexta, e 5.723 infectados. Mas as imagens nos noticiários de cemitérios lotados
e o choro na TV de famílias desesperadas deixam claro que a subnotificação ali
é enorme. A distorção de dados parece mesmo gritante. Ao longo das semanas, o
Brasil viu as imagens tenebrosas de enterros em valas comuns na cidade de
Manaus até de madrugada. Pergunto à doutora Galvão se ela viu as imagens. “Não
sei nem se é tocante, não sei se é trágica. Mas reflete realmente o nosso dia a
dia. Tem sido bem difícil mesmo”.
Há duas semanas, o prefeito Arthur Vírgilio foi para as
redes sociais dizer que a média diária de sepultamentos triplicou na cidade.
Agora, quadruplicaram. No último domingo, houve um pico de 140 mortos. A média
diária tem sido de 100. Em outros anos, os dias com maior pico de mortos não
ultrapassava a 35 sepultamentos. No entanto, os dados informados ao Ministério
da Saúde davam conta de apenas 17 mortos.
O prefeito ainda fez um outro alerta: o alto percentual de
pessoas que morrem em casa, sem atendimento médico. Na segunda, mais de um
terço das pessoas morreu em casa. A tempestade perfeita chegou em Manaus.
Juntou um sistema de saúde já fragilizado, uma pandemia que levou uma avalanche
de pacientes aos hospitais, uma população envelhecida aos 60 anos com uma série
de doenças, propícias ao coronavírus e para coroar um completo desrespeito ao
isolamento.
De acordo com os dados da start up In Loco, que tem feito um
acompanhamento do movimento de celulares pelo país, desde o início do
distanciamento social, em meados de março, o Amazonas foi o Estado que
registrou os menores percentuais de adesão ao #fiqueemcasa. Durante a semana,
bateu menos de 50%.
Mas ainda tem um outro ingrediente: o governador do Estado,
Wilson Lima, do PSC. O pessoal não parece muito feliz com o governador, não. Na
segunda, a assembleia legislativa do estado aprovou um pedido de intervenção
federal na saúde do Amazonas. O pedido já foi encaminhado ao governo federal.
Também o Sindicato dos Médicos entrou com um pedido de impeachment do governador
na Assembleia Legislativa. O pedido foi aceito.
Além disso, o Ministério Público Federal e o Ministério
Público do Estado dizem que o governador não está sendo transparente nos gastos
com a pandemia. Uma ação foi ajuizada pedindo que o governador divulgue como
gastou cada tostão que recebeu do governo federal para o combate ao
coronavírus. E os profissionais da saúde fazem coro. O governo do Estado não
respondeu aos diversos questionamentos feitos pela reportagem.
Desde que falamos com a doutora Galvão pela primeira vez,
ela diz que algumas coisas melhoraram. Os equipamentos de proteção passaram a
ser entregues, mesmo que em sistema de racionamento. “Mas é até bom que sejam
racionados para não faltar”. Foram abertos mais leitos de retaguarda, o que
ajudou a desafogar os prontos-socorros. E o Governo do Estado abriu uma linha
de comunicação direta com os médicos, além de prometer organizar um cronograma
para atualizar os pagamentos de 2020, para que os salários não atrasem mais.
Enquanto tudo isso acontece ao seu redor, a doutora Galvão,
mesmo que sutilmente, demonstra seu ressentimento com os governantes do Estado.
Ela fala daqueles que vão à mídia dizer que as pessoas estão morrendo porque
falta atendimento. Isso recai sobre o pessoal que está na linha de frente,
trabalhando quatro vezes mais do que trabalhavam e enfrentando a revolta da
população. “A população tem dificuldade imensa de entender que não é o
profissional de saúde que é responsável por criar estrutura de atendimento
razoável para que a probabilidade de sucesso seja a melhor. Entendeu? E a gente
não consegue desmistificar isso."
— Qual é seu medo? pergunto.
Do outro lado do telefone, um segundo de silêncio e a
resposta:
— Meu medo é que isso demore muito. É exaustão. É muito cansativo.
É exaustão mesmo.
— Você já está há quantos dias nesse ritmo?
— (um suspiro ainda maior que o primeiro). Nesse ritmo?
Desde o dia 20 de março... por aí.
— Já faz 30 dias.
— É… já faz 30 dias.
Conversamos mais um pouco. Ela acha que o pico será na
próxima semana. E conta sua desesperança com o descaso aos profissionais que
não têm um líder que elabore um plano de ação. Ela acha que nem dá mais tempo.
Sofre ao constatar que famílias largam seus velhinhos no hospital. “Eu disse
para a minha filha que nem sempre é só problema do sistema de saúde. Existe uma
crise humanitária também”.
Faço uma última pergunta:
— Se você pudesse falar em rede nacional, qual recado você
daria?
A doutora responde, sem pestanejar:
— Fiquem em casa. Fiquem em casa o tempo que for possível e
necessário. Deem atenção aos seus velhinhos, aos seus pais… A gente tem que
aprender alguma coisa com isso. A gente vê hoje uma polaridade não só de
política, de tudo, de ideia, de sentimento, ou você é isso ou você é aquilo. Eu
acho que a gente tem que repensar tudo isso e ver para onde a gente quer andar
com o nosso país, com nossa política. Não é possível que a gente não vai
aprender que tem que ser mais humano, mais gentil e mais educado e saber
escolher melhor quem são as pessoas que vão definir o futuro dos nossos netos,
bisnetos. A gente tem hoje o que a gente tem, vai ter que aprender a conviver
com isso fazendo o nosso melhor. Mas, no futuro, não é possível não ter algum
mecanismo de mudança.
Josette Goulart é fundadora e editora da Lagartixa Diária,
@lagartixadiaria
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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