Trabalhos de desinfecção em um vagão do metro de Seul, na
Coreia do Sul,
depois do surto da MERS de 2015. (Foto: KIM HONG-JI/REUTERS)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 20 de abril de 2020
Os outros coronavírus que habitam entre os humanos
Todos os agentes patogênicos aparentados com o atual
saltaram de animais para pessoas no último século
Por Miguel Ângel Criado
Contando com o causador da atual pandemia da Covid-19, a
ciência já identificou e isolou sete coronavírus circulando entre os humanos.
Todos saltaram de animais para pessoas em pouco mais de um século, mas os mais
patogênicos emergiram nos últimos 20 anos. Ainda há milhares deles na natureza,
a imensa maioria por descrever. Os últimos foram publicados há poucos dias.
Pesquisadores do Instituto Smithsonian (EUA) anunciaram no
começo de abril a descoberta de seis novos coronavírus em morcegos de Myanmar
(ex-Birmânia). Durante dois anos, colheram amostras da garganta e do reto de
quase 500 exemplares de uma dezena de espécies desses quirópteros. Também
levaram a laboratório parte do guano (fezes acumuladas) depositado no chão das
cavernas. Uma décima parte das amostras apresentou resultado positivo para seis
vírus da família dos Coronaviridae. Todos eram novos para a ciência e, embora
seus descobridores não acreditem que representem uma ameaça, ainda têm que
estudá-los para determinar o risco de que possam saltar para os humanos.
Além do fato de seu descobrimento, os autores do estudo
destacam o local onde ocorreu. As três cavernas onde as amostras foram colhidas
não ficavam nas profundezas da selva, embora no passado talvez ficassem. A
missão destes pesquisadores norte-americanos é parte de um projeto mais amplo
chamado Predict, que busca antecipar-se à emergência de novas zoonoses (agentes
patogênicos animais que passam a humanos). Nesta ocasião, as cavernas de
Myanmar se encontravam em áreas de desmatamento recente causado pelo avanço
humano.
“No mundo inteiro, os humanos estão interagindo com os
animais com uma maior frequência. Por isso, quanto mais soubermos sobre estes
vírus nos animais, o que provoca suas mutações e como se propagam para outras
espécies, melhor poderemos reduzir seu potencial pandêmico”, dizia, em uma nota
de sua instituição, o principal autor do descobrimento, o veterinário Marc
Valitutto. Um estudo de 2017 estimou que só entre os morcegos há mais de 3.200
espécies de coronavírus.
Esse contato mais intenso poderia estar por trás do primeiro
coronavírus que saltou de um animal para os humanos, ao menos até onde se sabe.
Nos anos sessenta, a pesquisadora britânica June Almeida identificou os vírus
HCoV-229E e HCoV-OC43. As primeiras letras se referem a coronavírus humanos e,
depois do hífen, vem a denominação do vírus em si. Encontrou-os em pessoas que
apresentavam sintomas típicos de um resfriado.
O HCoV-OC43 não saltou de nenhum morcego: vinha de muito
mais perto, das vacas. Um grupo de cientistas holandeses conseguiu sequenciar
seu genoma completo em 2005. Ao compará-lo com outros coronavírus, verificaram
que tinha uma semelhança genética de 99,6% com um coronavírus bovino (BCoV). O
relógio molecular de ambos, baseado fundamentalmente em sua taxa de mutação, e
a distância genética sugerem que se separaram por volta de 1890. Na segunda
metade do século XIX houve uma enorme pandemia de origem bacteriana entre as
vacas. Seu sacrifício maciço pode, segundo os autores desse estudo, ter exposto
os humanos ao BCoV. Seu impacto teria passado despercebido entre a pandemia de
gripe daquele ano.
Os outros cinco coronavírus humanos já apareceram no século
XXI. Dois deles só se manifestam com sintomas leves indistinguíveis do
resfriado. De fato, junto aos dois identificados nos anos sessenta, provocam a
cada inverno entre 10% e 30% dos resfriados, sendo a maioria dos acompanhados
de diarreia. Um deles, o HCoV-NL63, foi identificado pela primeira vez em bebês
holandeses em 2004. Naquele mesmo ano, um homem de 71 anos de Hong Kong foi o primeiro
a ser detectado com o HCoV-HKU1. Estes coronavírus pouco patogênicos saltaram
de animais, mas já não precisam mais destes para se propagarem.
“Estão plenamente adaptados aos humanos e podem circular
entre a população continuamente”, conta Dong-Yan Jin, professor da Universidade
de Hong Kong, que há anos estuda os coronavírus. “Observamos uma sazonalidade
neles, com a maioria dos casos no inverno. No verão, ocultam-se em um reduzido
número de pessoas, embora sua atividade seja reduzida”, acrescenta. Jin, como
Valitutto, também considera que o crescente contato humano com os animais
explica ao menos em parte a emergência dos coronavírus.
O primeiro coronavírus patogênico foi o da pandemia da SARS
de 2002 e 2003. O caso zero parece se relacionar com o consumo de carne de um
animal selvagem vendido em um mercado na China. Análises feitas pouco depois
mostraram que 13% dos vendedores de animais e carnes dos mercados da província
onde o surto começou tinham anticorpos contra o SARS-CoV. Dez anos mais tarde,
a história da exposição animal se repetiu com o MERS-CoV, o coronavírus de
maior letalidade (até 34,4% dos infectados morriam). Por sorte, depois que
saltou dos camelos, sua transmissão entre humanos não se manteve. É uma de suas
diferenças em relação ao atual SARS-CoV-2 que, sendo muito menos letal, tem a
mesma alta transmissibilidade entre humanos que os coronavírus leves.
“Tanto o SARS1 como o SARS2 emergiram dos mesmos
sarbecovírus [subgênero de coronavírus] que circulam entre os
morcegos-de-ferradura, o que mostra que há vírus de morcegos que podem saltar
aos humanos”, diz David Robertson, professor do Centro para a Pesquisa de Vírus
da Universidade de Glasgow (Reino Unido). Mas não o fizeram nem direta nem
imediatamente. Na primeira SARS, o animal intermediário do qual o vírus passou
aos humanos pode ter sido a civeta-das-palmeiras, um pequeno carnívoro do sul
da Ásia.
Embora vários estudos genéticos apontem o pangolim, o animal
intermediário do atual coronavírus ainda não está claro. O reservatório natural
são os morcegos, mas não é uma origem de anteontem. O vírus de morcego mais
próximo geneticamente ao causador da pandemia é o RaTG13, identificado em 2013.
Mas o estudo filogenético entre este vírus e o humano realizado por Robertson e
seus colegas mostra que ambos divergiram de um ancestral comum entre 40 e 70
anos atrás. O pesquisador britânico não descarta que possa haver outro
coronavírus de morcego mais próximo do humano que ainda não foi identificado.
À pergunta de por que ele surge agora, Robertson responde
que simplesmente porque conseguiu. “Também há provas de estudos serológicos
para outros vírus similares ao da SARS que passaram a humanos, o que sugere que
também se produziram transmissões falhas”, diz. De fato, várias pesquisas, a
mais recente publicada em setembro do ano passado, poucos meses antes da atual
pandemia, apontavam infecções locais provocadas por coronavírus, mas que não
foram além de alguns quantos casos.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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