Rodrigo Bessa, à esquerda, no enterro da mãe, Edenir,
suspeita de ter contraído coronavírus, no Rio (Foto: Leo Correa/AP)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
28 de abril de 2020
“Vamos ter um luto pela falta de consciência. Muitos vão se
arrepender de não ter ficado em casa”
Ana Claudia Quintana Arantes, médica geriatra e especialista
em cuidados paliativos, diz que as perdas causadas pela covid-19 causarão luto
no Brasil “pela falta de consciência” sobre a gravidade da doença
Por Marina Rossi
“Como você está lidando?”, pergunta a médica Ana Cláudia
Quintana Arantes, geriatra e especialista em cuidados paliativos. Em tempos de
pandemia de coronavírus, a pergunta “tudo bem?”, costumeira em um cumprimento,
nunca foi tão retórica. Neste momento em que o mundo contabiliza, dia a dia, o
crescente número de infectados e mortos em decorrência da doença, um terço da
população mundial está em casa em quarentena e muito se fala em perdas
econômicas adiante, a médica contabiliza as perdas emocionais.
Especialista em cuidar de quem está muito próximo ao final
da vida, ela já prevê que a humanidade passará por três tipos de luto. Além do
luto real, das perdas objetivas, ela acrescenta o luto antecipatório —a
percepção de que a morte está chegando. “Além disso, vamos ter um luto pela
falta de consciência. Muitas pessoas vão se arrepender de não ter tido cuidado
antes e vão pensar 'eu poderia ter ficado em casa, poderia ter convencido as
pessoas a ficarem em casa”, afirma. “Haverá arrependimento coletivo também”,
aposta.
Desde que a pandemia se instalou, o número de mortos já
passaram de 210.000 ao redor do mundo e mais de 3 milhões de pessoas ficaram
doentes. No Brasil, o mortos passam de 4.500 nesta segunda-feira. Há países, no
entanto, que estão se mostrando mais eficazes em suas políticas de combate à
doença, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, que realizam testagem em massa na
população. Mas em outros lugares, os símbolos de luto e dor são os mais fortes
desde a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, que começa a ver a diminuição de
casos, mas ainda contabiliza duas centenas de mortos por dia, as imagens de
caminhões transportando corpos para serem enterrados em outras regiões por
causa do colapso dos cemitérios da Lombardia se tornaram a prova da
agressividade da pandemia. Na Espanha, uma pista de patinação no gelo dentro de
um shopping se transformou em um imenso morgue para receber os corpos. Necrotérios
temporários, hospitais de campanha em campos de futebol, despedidas dos
parentes feitas por meio de uma tela de celular, já que ninguém pode se
aproximar de uma pessoa infectada. A pandemia do novo coronavírus que se
alastrou por quase o mundo inteiro aponta para uma imensa cicatriz que será
formada por cenas surreais e a sensação de um luto coletivo.
Para a médica, que é autora de dos livros A morte é um dia
que vale a pena viver (Sextante, 2019) e Histórias lindas de morrer (Sextante,
2020), o momento de uma pandemia é peculiar também sob o ponto de vista da
morte. “Num cenário de pandemia, não há condição de dar sentido ao processo [da
morte]. As pessoas vão morrer sozinhas, ninguém vai poder pegar na mão, pois as
visitas são proibidas”.
A despedida também já está sendo solitária. No Brasil, os
casos confirmados de óbitos pela covid-19 devem obedecer a um protocolo que
prevê a não realização de velórios, os corpos devem ser enterrados com os
caixões lacrados e a uma distância dos familiares, já que um corpo ainda pode
transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. Por isso, além das mais de
4.500 pessoas que já morreram com a doença confirmada, até mesmo os casos
suspeitos da doença, ou cuja morte se deu por para respiratória ou por razões
não definidas, estão passando pelo mesmo processo. A despedida está sendo
privada até mesmo àqueles que não confirmaram ter o vírus no corpo. Quem perde
um parente que mora longe também encontra dificuldades de transporte para
chegar a enterros e despedidas. Há ainda quem está preso longe de casa, num
contexto de queda drástica no número de viagens aéreas internas e externas. “A
experiência da dignidade no meio disso tudo [da pandemia] está difícil de ser
encontrada”, afirma Ana Claudia Quintana.
No meio de previsões ainda tão nebulosas, a médica, enfim,
responde à pergunta feita no início desta entrevista. “Como estou lidando?
Ajudando a fortalecer as campanhas de solidariedade”, diz. “É o único jeito.”
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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