Desde os anos 90, quando descobriu a cena dos hackers em Madri,
a jornalista espanhola Marta Peirano estuda a tecnologia de forma crítica
Foto: ÁLVARO MINGUITO
Publicado originalmente no site da BBC NEWS BRASIL, em 23 de fevereiro de 2020
‘Somos cada vez menos felizes e produtivos porque estamos
viciados na tecnologia’
Diana Massis
Da BBC News Mundo
"Há um usuário novo, uma notícia nova, um novo recurso.
Alguém fez algo, publicou algo, enviou uma foto de algo, rotulou algo. Você tem
cinco mensagens, vinte curtidas, doze comentários, oito retweets. (...) As
pessoas que você segue seguem esta conta, estão falando sobre este tópico,
lendo este livro, assistindo a este vídeo, usando este boné, comendo esta
tigela de iogurte com mirtilos, bebendo este drinque, cantando esta
música."
O cotidiano digital descrito pela jornalista espanhola Marta
Peirano, autora do livro El enemigo conoce el sistema (O inimigo conhece o
sistema, em tradução livre), esconde na verdade algo nada trivial: um sequestro
rotineiro de nossos cérebros, energia, horas de sono e até da possibilidade de
amar no que ela chama de "economia da atenção", movida por
tecnologias como o celular.
Nesse ciclo, os poderosos do sistema enriquecem e contam com
os melhores cérebros do mundo trabalhando para aumentar os lucros enquanto
entregamos tudo a eles.
"O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que
você oferece em troca", diz a jornalista.
Desde os anos 90, quando descobriu a cena dos hackers em
Madri, até hoje, ela não parou de enxergar a tecnologia com um olhar crítico e
reflexivo. Seu livro narra desde o início libertário da revolução digital até
seu caminho para uma "ditadura em potencial", que para ela avança aos
trancos e barrancos, sem que percebamos muito.
Marta Peirano foi uma das participantes do evento Hay
Festival Cartagena, um encontro de escritores e pensadores que aconteceu na
cidade colombiana entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro. A seguir, leia a
entrevista concedida à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
BBC News Mundo - Você diz que a 'economia da atenção' nos
rouba horas de sono, descanso e vida social. Por quê?
Marta Peirano - A economia da atenção, ou o capitalismo de
vigilância, ganha dinheiro chamando nossa atenção. É um modelo de negócios que
depende que instalemos seus aplicativos, para que eles tenham um posto de
vigilância de nossas vidas. Pode ser uma TV inteligente, um celular no bolso,
uma caixinha de som de última geração, uma assinatura da Netflix ou da Apple.
E eles querem que você os use pelo maior tempo possível,
porque é assim que você gera dados que os fazem ganhar dinheiro.
BBC News Mundo - Quais dados são gerados enquanto alguém
assiste a uma série, por exemplo?
Peirano - A Netflix tem muitos recursos para garantir que,
em vez de assistir a um capítulo por semana, como fazíamos antes, você veja
toda a temporada em uma maratona. Seu próprio sistema de vigilância sabe quanto
tempo passamos assistindo, quando paramos para ir ao banheiro ou jantar, a
quantos episódios somos capazes de assistir antes de adormecer. Isso os ajuda a
refinar sua interface.
Se chegarmos ao capítulo quatro e formos para a cama, eles
sabem que esse é um ponto de desconexão. Então eles chamarão 50 gênios para
resolver isso e, na próxima série, ficaremos até o capítulo sete.
BBC News Mundo - Os maiores cérebros do mundo trabalham para
sugar nossa vida?
Peirano - Todos os aplicativos existentes são baseados no
design mais viciante de que se tem notícia, uma espécie de caça-níquel que faz
o sistema produzir o maior número possível de pequenos eventos inesperados no
menor tempo possível. Na indústria de jogos, isso é chamado de frequência de
eventos. Quanto maior a frequência, mais rápido você fica viciado, pois é uma
sequência de dopamina.
Toda vez que há um evento, você recebe uma injeção de
dopamina — quanto mais eventos encaixados em uma hora, mais você fica viciado.
BBC News Mundo - Todo tuíte que leio, todo post no Facebook
que chama minha atenção, toda pessoa no Tinder de quem gosto é um 'evento'?
Peirano - São eventos. E na psicologia do condicionamento,
há o condicionamento de intervalo variável, no qual você não sabe o que vai
acontecer. Você abre o Twitter e não sabe se vai retuitar algo ou se vai se
tornar a rainha da sua galera pelos próximos 20 minutos.
Não sabendo se receberá uma recompensa, uma punição ou nada,
você fica viciado mais rapidamente.
A lógica deste mecanismo faz com que você continue tentando,
para entender o padrão. E quanto menos padrão houver, mais seu cérebro ficará
preso e continuará, como os ratinhos na caixa de [B.F.] Skinner, que inventou o
condicionamento de intervalo variável. O rato ativa a alavanca obsessivamente,
a comida saindo ou não.
'Todos os aplicativos existentes são baseados no design mais
viciante
de que se tem notícia', diz Marta Peirano
BBC News Mundo - Os adultos podem entender isso, mas o que
acontece com as crianças que apresentam sintomas de abstinência quando não
estão conectadas ao Instagram, YouTube, Snapchat, Tik Tok por exemplo?
Peirano - As redes sociais são como máquinas caça-níqueis,
quantificadas na forma de curtidas, corações, quantas pessoas viram seu post. E
isso gera um vício especial, porque trata-se do que a sua comunidade diz — se o
aceita, se o valoriza. Quando essa aceitação, que é completamente ilusória,
entra em sua vida, você fica viciado, porque somos condicionados a querer ser
parte do grupo.
Eles [as empresas] conseguiram quantificar essa avaliação e
transformá-la em uma injeção de dopamina. As crianças ficam viciadas? Mais
rápido do que qualquer um. E não é que elas não tenham força de vontade, é que
elas nem entendem por que isso pode ser ruim.
Não deixamos nossos filhos beberem Coca-Cola e comer balas
porque sabemos que o açúcar é prejudicial; mas damos a eles telas para serem
entretidos, porque dessa forma não precisamos interagir com eles.
BBC News Mundo - E o que podemos fazer?
Peirano - Interagir com elas. Uma criança que não tem uma
tela fica entediada. E uma criança entediada pode ser irritante, se você não
estiver disposto a interagir com ela, porque talvez você prefira estar fazendo
outras coisas.
BBC News Mundo - Olhando para sua própria tela, por exemplo?
Peirano - Vemos famílias inteiras ligadas ao celular e o que
está acontecendo é que cada um está administrando seu próprio vício. Todo mundo
sabe que os jogos de azar são ruins, que a heroína é ruim, mas o Twitter, o
Facebook, não — porque eles também se tornaram ferramentas de produtividade.
Então, eu, que sou jornalista, quando entro no Twitter é
porque preciso me informar; a cabeleireira no Instagram estará assistindo a um
tutorial; há uma desculpa para todos.
O vício é o mesmo, mas cada um o administra de maneira
diferente. E dizemos a nós mesmos que não é um vício, mas que estamos ficando
atualizados e mais produtivos.
BBC News Mundo - Poderíamos nos caracterizar como viciados
em tecnologia?
Peirano - Não somos viciados em tecnologia, somos viciados
em injeções de dopamina que certas tecnologias incluíram em suas plataformas.
Isso não é por acaso, é deliberado.
Há um homem ensinando em Stanford (universidade) àqueles que
criam startups para gerar esse tipo de dependência.
Existem consultores no mundo que vão às empresas para
explicar como provocá-la. A economia da atenção usa o vício para otimizar o
tempo que gastamos na frente das telas.
Peirano diz que todos estamos viciados, mas cada um
administra
— e justifica — seu vício de uma maneira diferente
BBC News Mundo - Como você fala no livro, isso também
acontece com a comida, certo? Somos manipulados por cheiros, ingredientes, e
nos culpamos por falta de vontade e autocontrole (na dieta, por exemplo).
Peirano - É quase um ciclo de abuso, porque a empresa
contrata 150 gênios para criar um produto que gera dependência instantânea.
Seu cérebro é manipulado para que a combinação exata de
gordura, açúcar e sal gere uma sensação boa, mas como isso [a combinação] não
nutre o corpo, a fome nunca passa, e você experimenta um tipo de
curto-circuito: seu cérebro está pedindo mais, porque é gostoso, mas o resto do
seu corpo diz que está com fome.
Como no anúncio da Pringles, "Once you pop, you can't
stop" [depois que você abre, não consegue parar, em tradução livre]. O que
é absolutamente verdade, porque abro um pote e até que eu o coma inteiro, não
consigo pensar em outra coisa.
Então, dizem: 'bem, isso é porque você é um glutão'. O
pecado da gula! Como você não sabe se controlar, vou vender um produto que você
pode comer e comer e não fará você engordar, os iogurtes light, a Coca-Cola sem
açúcar.
E a culpa faz parte desse processo. No momento, no Vale do
Silício, muitas pessoas estão fazendo aplicativos para que você gaste menos
tempo nos aplicativos. Esse é o iogurte.
BBC News Mundo - Essa conscientização, de entender como
funciona, ajuda? É o primeiro passo?
Peirano - Acho que sim. Também percebo que o vício não tem
nada a ver com o conteúdo dos aplicativos.
Você não é viciado em notícias, é viciado em Twitter; não é
viciado em decoração de interiores, é viciado em Pinterest; não é viciado em
seus amigos ou nos seus filhos maravilhosos cujas fotos são postadas, você é
viciado em Instagram.
O vício é gerado pelo aplicativo e, quando você o entende,
começa a vê-lo de maneira diferente. Não é falta de vontade: eles são
projetados para oferecer cargas de dopamina, que dão satisfação imediata e
afastam de qualquer outra coisa que não dá isso na mesma medida, como brincar
com seu filho, passar tempo com seu parceiro, ir para a natureza ou terminar um
trabalho — tudo isso exige uma dedicação, já que há satisfação, só que não
imediata.
BBC News Mundo - De tudo o que você cita, manipulações,
vigilância, vícios, o que mais a assusta?
Peirano - O que mais me preocupa é a facilidade com que as
pessoas estão convencidas a renunciar aos seus direitos mais fundamentais e a
dizer: quem se importa com meus dados? Quem se importa com onde eu estive?
Há 40 anos, pessoas morriam pelo direito de se encontrar com
outras pessoas sem que o governo soubesse suas identidades; pelo direito de ter
conversas privadas ou pelo direito de sua empresa não saber se há uma pessoa
com câncer em sua família.
Custou-nos muito sangue para obtê-los (os direitos) e agora
estamos abandonando-os com um desprendimento que não é natural — é implantado e
alimentado por um ecossistema que se beneficia dessa leveza.
BBC News Mundo - Quando você envia um email, sabe que outros
podem lê-lo, mas de fato pensamos: quem se importará com o que eu escrevo?
Peirano - Ninguém realmente se importa, até o momento que se
importe, porque todo esse material é armazenado e, se estiver disponível para o
governo, ele terá ferramentas para contar qualquer história sobre você. E você
não poderá refutá-lo.
Se o governo quiser colocá-lo na cadeia porque você produz
um material crítico, ele pode encontrar uma maneira de vinculá-lo a um
terrorista. Bem, talvez seus filhos tenham estudado juntos por um tempo e possa
ser mostrado que as placas dos seus carros coincidiram várias vezes na mesma
estrada por três anos. Nesse sentido, seus dados são perigosos.
O vício em aplicativos não tem a ver diretamente com o
conteúdo deles,
mas com seu design, que desperta injeções de dopaminas
BBC News Mundo - Você diz no livro que "2,5 quintilhões
de dados são gerados todos os dias", incluindo milhões de e-mails, tuítes,
horas de Netflix e pesquisas no Google. O que acontece com tudo isso?
Peirano - Estamos obcecados com nossos dados pessoais,
fotos, mensagens... Mas o valor de verdade é estatístico, porque suas
mensagens, com as de outras bilhões de pessoas, informam a uma empresa ou a um
governo quem somos coletivamente.
Eles os usam primeiro para os anunciantes. E depois para
criar previsões, porque este é um mercado de futuros.
Eles sabem que quando, em um país com certas
características, o preço da eletricidade sobe entre 12% e 15%, acontece X; mas,
se sobe entre 17% e 30%, outra coisa Y acontece. As previsões são usadas para
manipular e ajustar suas atividades — para saber, por exemplo, até onde você
pode prejudicar a população com o preço das coisas antes ela se revolte contra
você ou comece a se suicidar em massa.
BBC News Mundo - Como o que aconteceu no Chile, com
manifestações motivadas inicialmente pelo aumento no preço da passagem do
metrô..?
Peirano - Talvez o governo chileno não esteja processando
dessa maneira, mas o Facebook está, o Google está — porque todas as pessoas na
rua têm o celular no bolso. E elas o carregaram durante os últimos anos de sua
vida.
O Facebook sabe em que bairros aconteceu o que e por quê;
como as pessoas se reúnem e como se dispersam; quantos policiais precisam
chegar para que a manifestação se dissolva sem mortes.
BBC News Mundo - Mas quem está disposto a ficar sem o
celular, a internet? Qual é o caminho para o cidadão normal?
Peirano - O problema não é o celular, não é a internet.
Todas as tecnologias das quais dependemos são ferramentas da vida
contemporânea, voluntariamente as colocamos em nossos celulares. Mas elas não
precisam da vigilância para funcionar, nem precisam monitorar você para prestar
um serviço. Eles não precisam disso, o que acontece é que a economia de dados é
muito gulosa.
BBC News Mundo - Os negócios são tão lucrativos que vão
continuar a fazê-lo da mesma maneira ainda que tentemos impor limites?
Peirano - É muito difícil para um governo enfrentar
tecnologias que facilitam esse controle populacional, que é interessante. Mas a
ideia é exigir que isso aconteça.
Se, agora, você desativar todos os sistemas de
geolocalização do seu celular, eles continuarão a geolocalizá-lo.
Assim como no Facebook ou no Twitter, em que você pode
bloquear o que posta para algumas pessoas ou para todos — somente você... e o
Facebook veem. O que acontece nos centros de dados deles, acontece para você e
para eles. Você não pode bloquear o Facebook, porque você está no Facebook.
'Se, agora, você desativar todos os sistemas de
geolocalização do seu celular,
eles continuarão a geolocalizá-lo', alerta
jornalista espanhola
BBC News Mundo - Você está sugerindo que precisamos nos
rebelar e exigir privacidade?
Peirano - Mas não contra empresas. É natural que elas se
beneficiem de uma fonte de financiamento tão barata e gloriosamente eficaz.
O que não é natural é que um governo destinado a proteger os
direitos de seus cidadãos o permita. E a questão é que cada vez mais governos
chegam ao poder graças a essas ferramentas.
Então, o que deve ser feito? Precisamos começar a
transformar essa questão fundamental em um debate política nos níveis local e
mais amplo, ou seja, em ação coletiva, ação política.
BBC News Mundo - Esse debate está acontecendo em algum lugar
do mundo?
Peirano - Nas primárias democratas da campanha presidencial
dos EUA deste ano, essa é uma das questões cruciais. Está em debate se essas
empresas devem ser gerenciadas de outra maneira ou serem fragmentadas, porque
além de tudo também são um monopólio.
No entanto, na Europa e na América Latina, nos cansamos de
falar sobre notícias falsas, seus efeitos, campanhas tóxicas... Na Espanha,
houve três eleições gerais em três anos e nenhum político fala sobre isso.
BBC News Mundo - O sistema é nosso inimigo, então?
Peirano - Somos integrados a e dependemos de sistemas que
não sabemos como funcionam ou o que querem de nós. Facebook, Google e outros
dizem que querem que nossa vida seja mais fácil, que entremos em contato com
nossos entes queridos, que sejamos mais eficientes e trabalhemos melhor, mas o
objetivo deles não é esse, eles não foram projetados para isso, mas para sugar
nossos dados, nos manipular e vender coisas.
Eles nos exploram e, além disso, somos cada vez menos
felizes e menos produtivos, porque somos viciados [na tecnologia].
Texto e imagens reproduzidos do site: bbc.com
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