Trabalhador voluntário desinfeta terminal de ônibus em
Curitiba.
Foto: Daniel Castellano/AFP
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 1 de abril de 2020
O que já se sabe até agora sobre o novo coronavírus no
Brasil
São Paulo lidera o número de casos no país, que ainda luta
para ampliar testagem e para garantir insumos médicos
Por Gil Alessi
Pouco mais de um mês se passou desde a chegada do
coronavírus ao Brasil, em 25 de fevereiro. Além de doentes e mortos (veja aqui
os números em tempo real), a doença deixou também um rastro de insegurança,
medo, ansiedade e muitas dúvidas. Devo sair ou ficar em casa? Sou jovem, estou
imune? Compro cloroquina na farmácia para me prevenir? Tendo em vista o grande
volume de informação (verdadeira e falsa) sendo produzida e difundida na
Internet, é normal se sentir sobrecarregado e confuso. Veja aqui o que já se
sabe sobre a doença no Brasil e como o país se prepara para enfrentá-la.
A evolução da doença no Brasil
O Brasil registrou seu primeiro caso de infecção pelo
coronavírus em 25 de fevereiro, em São Paulo. Trata-se de um homem de 61 anos,
que havia retornado recentemente de uma viagem à região da Lombardia, epicentro
da epidemia na Itália. A situação escalou rapidamente. Em 13 de março o Governo
do Estado anunciou que já havia transmissão sustentada em SP, ou seja, já não
era possível rastrear como as pessoas estavam se contaminando (algo que ocorre,
por exemplo, com uma gripe comum). A primeira morte provocada pela Covid-19
ocorreu em 17 de março, também em São Paulo. Mais de um mês depois, o país já
tinha, em 1º de abril, 6.836 infectados em todos os Estados, e um total de 240
óbitos.
Desde o dia 19 de março a epidemia começou a se espalhar a
um ritmo acelerado, com uma média de 300 a 400 novos casos registrados a cada
dia, até que no dia 31 houve um recorde de 1.138 confirmados em 24 horas. Ou
seja, a curva de novas infecções no Brasil ainda está subindo acentuadamente, o
que torna impossível prever quando atingiremos o pico da doença no país, e sua
retração. O país admite que não possui estrutura para testar a maior parte dos
casos suspeitos, o que provavelmente elevaria ainda mais o número de infecções
confirmadas.
Até o momento foram feitos poucos estudos sobre o
achatamento da curva de infecções (um indicativo da regressão da doença) no
Brasil, em função do pouco tempo decorrido desde o início da pandemia. Um
deles, feito pelo professor de física da Universidade de São Paulo (USP) José
Fernando Diniz Chubaci e publicado na Folha de S.Paulo, afirma que São Paulo
conseguiu “achatar” a curva com uma política de incentivo ao isolamento social
e fechamento dos comércios não essenciais —outros especialistas e também os
técnicos do Ministério da Saúde afirmam ainda ser cedo para criar uma relação
causal entre as duas coisas. Dias depois da publicação do trabalho de Chubaci o
Estado de São Paulo bateu recorde de novas infecções, com incremento de 54% nos
casos diagnosticados entre 30 e 31 de março. Por isso, o mantra tem sido não
afrouxar o distanciamento social.
Uma doença que atinge idosos, mas também jovens
Ao contrário do que afirma o presidente Jair Bolsonaro, que
chegou a classificar a pandemia de coronavírus como uma “gripezinha” que ataca
apenas idosos “com outras doenças”, os dados estatísticos do Ministério da
Saúde apontam para uma conclusão diversa. Se a morte de pessoas com menos de 60
anos representa apenas 10% do total no país, quase a metade dos casos graves da
doença ocorrem em pessoas desta faixa etária. Além disso, já foram registradas
mortes de jovens sem comorbidades no Brasil (e em vários outros países), um
alerta para as autoridades da área de Saúde e para o Governo Federal. Em São
Paulo, quase a metade dos infectados pelo vírus tem entre 20 e 39 anos,
conforme contou o repórter Breiller Pires. Mesmo que o quadro da imensa maioria
destes jovens não evolua para uma situação crítica, eles podem requerer
internação, o que ajuda a saturar o sistema de saúde. Além disso, todos os
infectados podem ajudar a propagar a doença, ainda que não manifestem sintomas.
Chegou ao Brasil com os ricos, mas tem potencial para
massacrar os pobres
Os primeiros casos de coronavírus registrados no Brasil
foram de pessoas das classes média e alta que haviam retornado de viagens ao
exterior (principalmente à Itália). Isso fez com que muitos considerassem a
Covid-19 como sendo uma “doença de rico”. Se no início essa era uma leitura
possível —incentivada em parte pelo contágio massivo de pessoas em um casamento
de luxo em Itacaré, na Bahia—, o quadro atual é bem diferente. Com os
reiterados pedidos de autoridades para que as pessoas fiquem em casa para
evitar a proliferação da doença, boa parte das classes mais altas conseguiu
aderir ao modelo de trabalho via home office. Já o trabalhador informal e o
trabalhador das classes mais baixas, que não consegue realizar sua função de
casa, é obrigado a ir para a rua buscar o sustento —são os entregadores,
pedreiros, vendedores ambulantes entre outros. Assim, aumentam sua exposição ao
vírus.
Além disso existe um ponto crítico no Brasil, que diz
respeito à condição precária em que mora boa parcela da população. As favelas,
mas também os cortiços e ocupações em área urbana, são ideais para a propagação
do coronavírus: pouca ventilação e grande densidade demográfica. Vale lembrar
que as comunidades mais pobres do país são ambientes onde doenças que atacam o
sistema respiratório, como pneumonia e tuberculose, já proliferam em maior
escala do que nos bairros de classe média. Muitas vezes o sistema imunológico
desta população de baixa renda também está enfraquecido devido à má-nutrição, o
que facilita a contaminação por vírus como a Covid-19.
Sem cura nem remédio
"Aquele remédio lá, o hidróxido de cloroquina, está
dando certo em todo o lugar”, disse o presidente Jair Bolsonaro em fins de
março. Apesar do otimismo do mandatário, na realidade existem poucos estudos
que atestem a eficiência da cloroquina e da hidroxicloroquina (duas drogas
utilizadas para tratar malária e doenças auto-imunes) no tratamento da
Covid-19. O Ministério da Saúde liberou seu uso para os casos de pacientes graves
hospitalizados com coronavírus: “Esse medicamento já provou que tem ação na
evolução do ciclo do vírus, mas os estudos em humanos estão em curso. Essa é
uma alternativa terapêutica que estamos dando aos profissionais de saúde para
tratarmos esses pacientes graves que estão internados”, disse o ministro da
Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reconhecendo, no entanto, que não existem
estudos conclusivos sobre o assunto. Segundo ele, existe uma pesquisa que
mostra a relação entre o uso da cloroquina e a redução no tempo de internação,
mas “foi um levantamento feito em apenas um hospital”. Diversas equipes de
pesquisa ao redor do mundo trabalham na elaboração de uma vacina, mas não
existe previsão de quanto ela estará disponível —algumas estimativas dão conta
de que entre elaboração e a fase de testes este processo levará cerca de um
ano.
O retorno à normalidade
Logo após a confirmação da primeira morte pelo coronavírus
no Brasil, em 17 de março, o ministro Mandetta afirmou que “vamos passar 60 a
90 dias de muito estresse (...) nós teremos aí em torno de 20 semanas, a partir
do surto epidêmico, que serão extremamente duras”. A expectativa do Governo é
de que o pico de casos da doença ocorra até junho, possivelmente em abril, e a
partir daí o número de novos contágios comece a cair. “Agosto, setembro a gente
deve estar voltando [à redução de casos] desde que a gente construa a chamada
imunidade de mais de 50% das pessoas”, afirmou o ministro, que destacou que se
tratam de projeções, e que não existe “bola de cristal” quando se trata de um
assunto complexo como uma pandemia. A situação ainda não foi normalizada nem
mesmo nos primeiros países atingidos pela crise, como a China, que identificou
o casos de coronavírus em janeiro: Wuhan, epicentro da pandemia no país, ainda
tem áreas em quarentena.
A falta de testes
A Organização Mundial de Saúde defende que o maior número
possível de pessoas se submeta ao teste para coronavírus em todos os países.
“Testar, testar e testar”, afirmou o diretor da entidade, Tedros Adhanom. A
testagem permite que uma pessoa infectada, mas sem sintomas, seja colocada em
isolamento domiciliar, evitando que contamine outras, além de permitir o
dimensionamento correto da crise em cada país —e a consequente elaboração de
políticas públicas para enfrentá-la. O problema é que, com exceção de Japão,
Alemanha, Coreia do Sul e mais alguns países que produzem os reagentes e
componentes utilizados nos kits de teste, o resto do mundo depende da
importação de materiais.
O Brasil é uma destas nações. O Ministério da Saúde
reconheceu pela primeira vez que faltam testes para diagnóstico de coronavírus
em 17 de março. Sem ter como realizar a testagem massiva da população (uma das
razões do sucesso da Coreia do Sul no combate à doença), o país acumula uma
fila de pacientes aguardando o exame. Até mesmo alguns óbitos com suspeita de
coronavírus também não são confirmados, como informa a repórter Marina Rossi.
Apenas em São Paulo, o Governo de João Doria (PSDB) afirmou que mais de 12.000
pessoas estão na fila para serem testadas para a doença, mas que apenas 50
destes casos são graves. Para tentar contornar a situação, Mandetta afirmou no
dia 30 que já foram comprados 5 milhões de testes, e que “receberemos 500.000
nos próximos dias”.
Prova de fogo para o SUS
Seja como for, o consenso é correr contra o relógio para
aumentar a capacidade de reação do SUS. “Claramente, em final de abril nosso
sistema de saúde entra em colapso”, afirmou o ministro Mandetta em 25 de março.
A afirmação, feita no contexto de apelar às medidas de isolamento social,
reflete a realidade de que as redes de saúde não são estruturadas para lidar
com pandemias e com o aumento em massa e ao mesmo tempo da demanda. E isso vale
para o Sistema Único de Saúde, o SUS, um dos maiores e mais consolidados
sistemas públicos do mundo.
Um dos principais agravantes é que as internações de pessoas
com quadros graves da Covid-19 podem durar mais de 20 dias, saturando
completamente os leitos de terapia intensiva.Há 32.000 leitos de UTI para
adultos no país, divididos praticamente ao meio entre os sistemas público e
privado, mas já funcionavam com mais de 80% de ocupação antes da pandemia. Para
liberar espaço, a recomendação é que cirurgias eletivas sejam adiadas, por
exemplo. O Governo federal já anunciou que vai adquirir mais 2.000 leitos de
tratamento intensivo. No final de contas, tudo depende da efetividade das
medidas de controle da doença e isolamento social para evitar a transmissão do
vírus e o consequente “colapso” do sistema. Algumas cidades, como São Paulo e
Rio de Janeiro, aproveitaram o gramado de estádios como o Pacaembu e o Maracanã
para montar hospitais de campanha, com capacidade para 200 e 400 leitos,
respectivamente, como contou o repórter Diogo Magri.
Bolsonaro, a “gripezinha” e o isolamento político
Desde o início da pandemia do coronavírus o presidente Jair
Bolsonaro tratou a grave crise de saúde pública como uma “gripezinha”, o que
lhe valeu o apelido de “líder negacionista do coronavírus” na revista americana
The Atlantic. Confrontado com a alta mortalidade da doença, ele reagiu afirmando
que “infelizmente algumas mortes terão, paciência, acontece, e vamos tocar o
barco”. Além da retórica considerada irresponsável por especialistas e
governadores, o mandatário faz questão de se expor e participar de eventos que
incluam aglomerações, uma prática desestimulada pelas autoridades de Saúde.
Primeiro o presidente participou de um protesto contra o Legislativo,
cumprimentando apoiadores e posando para fotos, em 15 de março, quando já
haviam sido registrados 200 casos de coronavírus no país. No dia 29, com o
vírus já tendo alcançado todos os Estados do país, Bolsonaro foi às ruas
novamente para cumprimentar simpatizantes, sem máscara ou luvas, em um pequeno
tour pelas cidades satélites de Brasília.
As ações do presidente na condução da crise fizeram com que
ele ficasse isolado não apenas no cenário internacional (onde pouquíssimos
líderes mundiais tratam a pandemia de forma leviana), mas também no Brasil. Até
mesmo alguns aliados de primeira hora de Bolsonaro anunciaram o rompimento com
o mandatário, como ocorreu com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). Em
meio à perda de apoio político, alguns pedidos de impeachment chegaram a ser
protocolados, nenhum com grandes chances de prosperar no momento -apesar do
ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello enviar um deles para a
Procuradoria-Geral da República analisar. Acuado, Bolsonaro calibrou o tom em
seu pronunciamento em cadeia de rádio e televisão na noite do dia 31: deixou de
lado os ataques à imprensa, aos governadores e referências à pandemia como
sendo uma “gripezinha”.
A economia em primeiro lugar e o "isolamento
vertical"
Um dos grandes temores do presidente Bolsonaro e de seu
ministro Paulo Guedes em meio à pandemia é com relação à deterioração da
situação econômica do país —que vinham em lenta recuperação antes mesmo do
coronavírus. Com boa parte da força de trabalho em isolamento social voluntário
(seguindo, muitas vezes, as orientações dos governadores), e com comércios não
essenciais e parte das indústrias fechadas, a expectativa é de que haja uma
retração maior no Produto Interno Bruto. No dia 26 o Banco Central projetou um
PIB zerado para este ano: se antes da Covid-19 o estimado era um crescimento de
2,1%, agora passou para 0,2%. Esta piora nos indicadores econômicos é esperada
em quase todos os países que adotaram o confinamento como forma de deter a
pandemia.
Para tentar minimizar o custo financeiro (e político) de um
agravamento da crise econômica, o presidente se posicionou de forma contrária
às recomendações da OMS e de especialistas em saúde, e tentou alavancar a
campanha “O Brasil não pode parar”, estimulando a população jovem a seguir
trabalhando como se não houvesse uma pandemia em curso. “Se a economia parar
vamos perder muito mais vidas”, disse. Bolsonaro então passou a defender
publicamente o fim do isolamento, e a adoção de uma outra modalidade de
isolamento, chamado de vertical. Este método, cuja eficácia carece de
comprovação científica e é visto com ceticismo pela comunidade médica, consiste
em manter os jovens trabalhando normalmente e isolar apenas os idosos
―ignorando o fato de que em algum momento estes grupos entrarão em contato. Ao
defender esta tese Bolsonaro entrou em rota de colisão com os governadores,
que, em sua imensa maioria, determinaram o fechamento de todas as atividades
comerciais não essenciais e estimularam a população a ficar em casa.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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