Cena do clipe 'Vai Malandra', de Anitta
Imagem - Reprodução
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 20 de dezembro de 2017
O que pode um funk?
Por Ivana Bentesdisse
Tutudum! Hipnótico o novo clipe de Anitta! Retomando essa
figura meio arquetípica do Brasil, o funk feminino de Anitta incorporou as
questões de gênero conjugando a malandragem com um feminino plural.
Vai, Malandra, o clipe, traz verdadeiros memes visuais,
culturais e musicais que valem por um tratado sociológico. Ainda não se
escreveu, e faz falta, um tratado sobre os corpos pensantes das mulheres, para
além do imaginário em torno da bunda, da raba, do bumbum, do traseiro da mulher
brasileira, que virou um disparador de questões sensações! O corpo sexualizado na era da sua
ressignificação pelas próprias mulheres!
Um corpo que o funk, o samba, o biquíni de fita isolante,
toda a cultura solar carioca já vem dizendo, tem tempo, que não precisa ser
apenas objeto e signo de assujeitamento, toda vez que quiser se exibir.
A bunda (e o corpo das mulheres) pode se deslocar da
objetificação para a subjetivação! A bunda viva de Anitta com sua celulite sem
photoshop é sujeito e não objeto. Se as mulheres fazem o que quiserem com seus
corpos (a Marcha das Vadias explicou isso para a classe média), elas podem
inclusive se “autoexplorarem”, ensina o funk. A bunda ostentação de Anitta no
início do clipe já aponta para esse outro feminismo (de mulheres brancas,
apenas? Acho que não!)
Sabemos que o feminismo negro questiona, e com muitas
razões, o feminismo branco liberal. Pois a emancipação do corpo as vezes se
confunde com sua exposição e objetificação, para um grupo em que racismo e
sexismo significaram a exploração violentíssima do corpo exposto e
hipersexualizdo da mulher negra servindo ao gozo de seus algozes. Mas é sempre
assim?
Foram as mulheres do funk (Tati Quebra Barraco, Deise
Tigrona, Anitta etc.) e depois as meninas pretas do rap e do pop (de Nega Gizza
a Karol Conka) que vem fazendo essa outra política, esse outro feminismo, na
marra. Expondo seus corpos de maneira ativa, muitas vezes escandalosa, falando
de desejo, sexualidade, multi parceiros, posições sexuais, motel, masturbação,
corpo gordo, celulite, beleza negra, sexo anal, oral, sexismo, patriarcalismo,
gozo, de forma explícita e desencanada.
Leila Diniz (mulher branca da Zona Sul) virou musa pelo seu
comportamento libertário, que agradava mulheres e homens, mas existe toda uma
linhagem outra das mulheres negras e brancas periféricas que ainda são
consideradas “vulgares” quando assumem sua virilidade. E fato é que essas
mulheres da periferia meteram o pé, entraram nas universidades e hoje temos
entre as novas divas contemporâneas, de Anitta até uma jovem negra
universitária, fashion e filósofa, como Djamila Ribeiro e outras mulheres
incríveis e lacradoras, como se diz.
Mas voltemos ao corpo. A “surra de bunda” que Anitta mostra
a certa altura no clipe não é só sacanagem ou vulgaridade. Se Anitta decide
oferecer seu bumbum para ser cutucado por dedos masculinos ou feito percussão
de forma lúdica, quem vai achar ruim? Os homens brincaram com seus paus por
séculos e erigiram uma cultura falocêntrica, que se auto homenageia, um
paucentrismo, que produziu “tudo que está aí”.
Deixem as mulheres brincarem com suas bundas, bucetas etc. E
mais: deixem as mulheres ganharem dinheiro e projeção com seus corpos, no
comando da própria monetização de suas vidas – e não sendo assujeitadas. As
mulheres têm que ter o copyright e serem as principais beneficiadas de séculos
de assujeitamento e sexismo.
Essa periferia global, cultural, potente, dos corpos que
falam, do parlamento dos corpos (das mulheres, dos gays, trans) é o que torna
ainda mais intolerável e insuportável o massacre epidêmico dos corpos negros e
periféricos, pela polícia e pelo Estado, ou o feminicídio, em um país como o
Brasil.
Existe uma potência dos corpos periféricos, negros,
femininos, que o funk ostentou, que o rap e o feminismo negro deslocou, tirou
do lugar de “objeto”, numa reviravolta cultural que explicita o outro lado: o
racismo de base da nossa sociedade e as contradições da cultura pop global
brasileira.
Além do funk hipnótico minimalista – “Ê, tá louca, tu
brincando com o bumbum. Tutudum!” -, Anitta coloca os homens de coadjuvantes: o
incrível funkeiro brasileiro MC Zaac e o rapper norte-americano Maejor. Ela
comanda o espetáculo pop.
Desde o início do ano 2000, quando explodiu a produção
cultural das periferias em todos os campos, que certo estranhamento se dá.
Quando se vê que, mesmo querendo entrar no mundo do consumo, das marcas, das
comodidades do mundo capitalismo, parte dos artistas, produtores culturais,
ativistas da periferia que ascenderam socialmente, não querem abrir mão da sua
cultura e pertencimento, do seu território.
Estão aí, no clipe de Anitta, filmado no Vidigal, os memes
culturais da periferia pop e global: a popozuda com o corpo sendo regado por
homens sarados que as servem; o biquíni de fita isolante da Érika do Bronze (a
mulher que monetizou a marquinha de sol! Isso que é startup!); o pobre-star que
pauta os editoriais da moda praia ao ativismo;
a reinvenção do cotidiano que transforma a carroceria de um caminhão
velho em piscina e felicidade; a funkeira negra, gorda e glamourosa, Jojo
Toddynho; a cultura evangélica “Ergo a bandeira da vitória em nome de Jesus”;
as trans, o black power nos corpos e cabelos, as louraças e os meninos de
cabelos descoloridos.
Toda essa cultura da laje, de uma pobreza potente, inventa
mundos, modas, gírias, linguagem, inventa a sua própria vida. Se hoje o Brasil,
associado a corrupção das suas elites, crise ética, perda de direitos, retrocessos
comportamentais, tem outros horizontes, passa por essa força dos corpos e
sujeitos que emergiram das bordas e podem reinventar a nossa trágica e solar
democracia. Os corpos como política.
Anitta e a Teoria King Kong
Uma outra questão: Anitta faz parte da emergência de um
feminino e feminismo viril! O masculinismo e a virilidade podem, sim, ser
apropriados e transformados pelas mulheres, como propõe a Teoria King Kong, de
Virginie Despentes, o manifesto mais ácido para um outro feminismo que chuta
uma quantidade extraordinária de baldes e lugares comuns sobre as mulheres e
reivindica para si as vantagens inerentes à masculinidade e à virilidade.
Do que nos diz Virginie Despentes e que vale para o feminismo viril de Anittas
e que tais eu destacaria:
– “o exercício direto do poder”, pois espera-se que
renunciemos a esse tipo de prazer em função do nosso sexo.
– o direito de comercializar e negociar nossos “encantos” e
explicitar essas relações em contratos saudáveis e claros entre sexos. “Não precisa
nem complicá-lo e nem culpabilizá-lo”. E aqui Despentes está falando,
inclusive, da prostituição como trabalho digno e todos os demais usos
monetizáveis que podemos fazer de nossos corpos. Como fazem as “minas” do funk!
O desafio é um só: abandonar a “arte do servilismo” que diz
que as mulheres não devem se expor, não devem falar alto; não devem se
expressar em tons categóricos; não devem sentar com as pernas abertas; não
devem se expressar num tom autoritário; não devem falar de dinheiro; não devem conquistar
poder; não devem ocupar um posto de autoridade; não procurar prestígio; não rir
muito alto; não ser muito engraçada. A lista de “nãos” é infinita!
Por isso é tão importante as Anittas e as mulheres que estão
produzindo um outro imaginário, mesmo clichês, mesmo questionáveis, mesmo
dentro de um campo de consumo. É possível politizar o pop, o fervo, o funk? Na
real, tudo já é político. Estamos em uma disputa de imaginários.
“O que pode um corpo?”, Pergunta o filósofo. E o que pode um
corpo de uma mulher do funk, o que podem as mulheres das periferias, as negras
e brancas? A mais incrível batalha não começa na mente, começa nos corpos e
pode ser ao som do hipnótico tutudum.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário