Bernando Lima e Daniela Lopes, dois moradores de São Paulo
que apresentaram
os sintomas de coronavírus mas não foram testados.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 18 de abril de 2020
Eles viveram a angústia do coronavírus, mas jamais entrarão
nas estatísticas: “A doença gera muita ansiedade”
Com poucos testes para detectar a covid-19, muitas pessoas
que vão a hospitais com sintomas da doença são apenas medicadas e mandadas para
casa sem a confirmação de que estão infectados
Por Felipe Betim
Daniela Lopes tem quase certeza de que foi infectada pelo
coronavírus. Bernardo Lima também. Ambos ouviram de médicos que tinham a
covid-19 quando foram ao hospital com os sintomas graves da doença. O quase se
deve ao fato de que ambos apresentaram todos os sintomas mais avançados da
covid-19, tais como febre alta, coriza, tosse seca, perda de olfato e
dificuldades respiratórias —a companheira de Lima, que trabalha num hospital,
chegou a ser testada e diagnosticada com a doença. Mas, ao buscarem por auxílio
médico em hospital privado, foram medicados e mandados de volta para casa sem
que realizassem o teste que detecta o novo vírus. Os dois moram na cidade de São
Paulo, epicentro da pandemia de coronavírus no Brasil, com 11.568 casos 853
óbitos confirmados até quinta-feira, 16 de abril, em todo o Estado. Ao menos
até agora, a escassez de testes que identificam uma possível infecção fizeram
com que apenas os pacientes com extrema gravidade fossem testados, de acordo
com a orientação do Ministério da Saúde. Assim, Daniela e Bernardo formam parte
do que especialistas e autoridades definem como uma provável subnotificação de
casos de coronavírus em todo o país.
Conforme explicou nesta semana o infectologista David Uip,
que coordena o grupo que combate a doença em São Paulo, a imensa maioria casos
são, na verdade, “não notificados”, uma vez que 80% deles “são assintomáticos e
os indivíduos nem vão ao posto de saúde”. Mas entre essas pessoas e aquelas que
são testadas e diagnosticadas com o coronavírus estão casos como o de Daniela e
Bernardo, que podem nunca ter a confirmação de que foram infectados e, dessa
forma, constar nos números oficiais. A não ser que sejam submetidos a um dos
testes rápidos oriundos da Coreia do Sul —1,3 milhão de kits foram comprados
pelo Governo João Doria (PSDB), dos quais 725.000 chegaram nesta semana— que
identifica a presença de anticorpos contra o contra o coronavírus. Além disso,
como existe uma fila de cerca de 13.000 testes no Estado de São Paulo,
acredita-se que o quadro apresentado diariamente seja uma fotografia da
pandemia de dias atrás, aumentando ainda mais a desconfiança com relação aos
números apresentados diariamente.
“Não sabia quanta falta de ar deveria sentir para buscar
hospital de novo. É angustiante”
No dia 19 de março, Bernardo Lima, de 37 anos, decidiu ir
para a casa de sua companheira, Julia, para atravessar o período de
distanciamento social que começava a entrar em vigor. Naquela mesma noite
começou a ter uma leve febre, de 37 graus. Foi o começo dos sintomas. Dias
depois, no domingo 22 de março, a persistência da febre fez com que buscasse
pela primeira vez um hospital. Lá escutou da médica que, devido aos sintomas,
provavelmente havia sido contagiado pela covid-19. Mas só em caso de piora
seria testado.
Os sintomas evoluíram então para dor de cabeça, calafrios,
disenteria e falta de ar. Na quarta-feira do dia 25 de março, decidiu buscar
novamente um médico no posto de saúde. “Lá fiz tomografia e constataram que
estava com pneumonia nos dois pulmões. Mas como estavam menos de 25% tomados,
não era grave. Então optaram de novo por não testar e me liberar para casa de
novo. E então a falta de ar começou a piorar de novo”, conta Bernardo, que
trabalha na parte administrativa de uma empresa de infraestrutura de Telecom e,
mesmo no regime de home office, precisou se afastar de suas atividades na fase
mais aguda da doença. “Eu não sabia quanta falta de ar deveria sentir para
procurar um hospital de novo. É o seu corpo lutando contra uma doença que é
nova, desconhecida, mas que você ouviu falar que é grave e pode levar a um
óbito. O processo é angustiante”, relata.
Bernardo decidiu então buscar um médico pela terceira vez e
fazer outra tomografia e exame de sangue. Constataram que a pneumonia
persistia, mas concluíram que a saturação do ar no sangue não estava num nível
muito baixo. Mais uma vez foi mandado de volta para casa. Dessa vez, os
remédios para a H1N1, além do anti-inflamatório Dipirona para aliviar os
sintomas, começaram a fazer efeito. “Vem em ondas, você melhora e depois vem a
fraqueza. Respirar é algo que você está acostumado a fazer sem pensar. Então é
complicado, a doença gera muita ansiedade, muita incerteza”, conta ele.
Naqueles mesmos dias, sua companheira começou a sentir
alguns dos sintomas, ainda que mais brandos —somente a dipirona fez com que
melhorasse seu quadro. Por trabalhar na parte administrativa de um hospital,
conseguiu ser testada e comprovou que havia sido infectada pelo coronavírus, o
que aumenta ainda mais as suspeitas do rapaz. Ele acredita que o contágio
ocorreu quando andava de Uber ou em alguma área pública. Além de deixar
completamente de sair para a rua, inclusive para atividades como ir ao mercado
ou à farmácia, o casal tentou aumentar o isolamento dentro do apartamento de um
quarto. “Eu dormi na sala para minimamente evitar que ela se contagiasse, mas
era tarde”, lamenta ele, já completamente recuperado e sem quaisquer sintomas,
que duraram aproximadamente dez dias.
“O coronavírus rouba nossos rituais mais sagrados”
A pedagoga Daniela de Amorim Lopes, professora do 4º ano de
uma escola privada de São Paulo, de 45 anos, é divorciada e vive apenas com seu
filho de oito anos. No dia 20 de março, dois dias depois de começarem a
quarentena em casa, o menino começou a ter diarreia e coriza —e, mesmo sem
febre, ficou uns quatro ou cinco dias com esses sintomas, o que levou à
suspeita de que fora infectado pelo coronavírus. A partir do dia 25 foi a vez
da própria Daniela. Ela, que tem asma e bronquite, e chegou a ser internada por
causa de H1N1, acordou de madrugada passando mal, congestionada e tossindo
muito. “Liguei então para o convênio médico, que me deu direito a telemedicina.
Me disseram que aparentemente era só uma gripe e para que eu fizesse só
inalação”, conta. “No dia 28, de sexta para sábado, passei muito mal de noite,
tive crise de asma, e fiquei muito assustada por estar sozinha com meu filho.
Resolvi então ir para o hospital Samaritano assim que o sol raiasse, para
chegar quando ainda estivesse vazio”.
No centro médico, deparou-se com um cenário que descreve
como “cena de filme apocalíptico”, com médicos vestindo uniformes que cobriam
todo o corpo, permitindo que “você só visse os olhinhos”. Disseram que de 15
sintomas comuns à covid-19, Daniela apresentava ao menos 13. “O que me chamou
atenção foi a perda do olfato, porque passei a não sentir cheiro. Percebi isso
fazendo café da manhã para meu meu filho. É muita dor no olho, muita dor no
corpo, muito congestionada, coriza, falta de ar...”, explica. "No entanto,
o médico me disse que não era o caso de internação, porque eu ainda conseguia
fazer minhas atividades e eles não estavam testando todo mundo, apenas os casos
de internação”, relata. Porém, como ela tinha quadro de asma e bronquite,
afirmou que ante qualquer dificuldade para respirar ela deveria retornar.
Como seu ex-marido vive com mãe, que tem mais de 60 anos,
Daniela e ele decidiram que o menino deveria seguir em casa. Ainda assim, o
isolamento domiciliar precisou ser endurecido. Isso significou que Daniela
deveria ficar de seu quarto isolada, enquanto seu filho podia circular no resto
da casa. “E quem cozinha? Quem faz as outras tarefas de casa? Foi um momento
muito significativo pra mim. As pessoas me ligaram e começaram a levar comida
congelada, máscara, álcool... Consegui fazer o isolamento por causa dessa rede
de apoio que se formou. Fui muito cuidada, me senti uma pessoa muito
privilegiada", conta a pedagoga.
Ainda assim, o isolamento pode ser um processo bastante
cruel. “Como acho que esteja acontecendo com muitas mães, tive que conversar
com meu filho sobre o que ele faria se eu passasse mal, desmaiasse ou não
acordasse”, lamenta. Outra situação foi a morte da avó de seu ex-marido no dia
30 de março. “Ninguém gosta de velório e enterro, mas me dei conta de como é
violento não poder velar seus mortos. Ela era uma pessoa muito querida e eu me
senti roubada da possibilidade de prestar uma última homenagem, de estar com
meu ex-marido e minha ex-sogra, de a gente se consolar", lamenta.
"Foi muito cruel ouvir que o caixão chegou, que não foi aberto e que logo
enterraram. Não tinha dimensão dessa violência”, relata ela, citando o novo
protocolo dos enterros assumido em cemitérios durante a pandemia. Ainda que o
óbito tenha sido de câncer, ele precisou seguir esse padrão.
Ao longo dos dias, para manter algumas atividades diárias da
casa, teve de mudar rotinas: passou a manter objetos separados, a tomar banho
em horários muito diferentes de seu filho, a manter a casa sempre arejada, além
de sempre usar máscara. Só não conseguiu manter a porta de seu quarto fechada.
De sua cama, mantinha a comunicação com o menino, que ao longo do dia brincava
com seus amigos através do computador. “A noite era o momento mais difícil para
ele. A gente tem uma rotina desde que ele nasceu de ir para o quarto dele à
noite, deitar na cama dele, ler uma história, conversar, contar
piadas...", relata. "Tem todo um ritual para dormir, então vinha até
minha porta e perguntava se não podia ficar em minha cama pelo menos um pouco.
O coronavírus rouba nossos rituais mais sagrados”, lamenta. O isolamento total
durou 10 dias, mas a recuperação total só veio a partir do décimo quinto dia.
A fila de testes e a compra de kits da Coreia do Sul
Até quinta-feira, 16 de abril, o Governo Doria tinha uma
fila de 12.958 exames de coronavírus a serem analisados, segundo o secretário
da Saúde José Henrique Germann. Uma média de 2.000 testes são processados
diariamente, mas a expectativa é a de que a capacidade de processamento aumente
para 5.000 na próxima semana e 8.000 na seguinte, conforme os laboratórios vão
certificando seus aparelhos.
A fila se explica pela pouca quantidade do teste disponível
em São Paulo e no resto do país, o RT-PCR (reação em cadeia da polimerase em
tempo real), que detecta o RNA do vírus em uma amostra de sangue ou secreção
nasofaríngeo —coletado por uma espécie de cotonete pelo nariz ou pela boca. Com
isso, o Ministério da Saúde chegou a afirmar que, em todo país, 84% de todos os
casos não são registrados pelo poder público. Um primeiro estudo abrangente
coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) indica que número de
casos pode ser 7 vezes maior que o apresentado oficialmente. Outra pesquisa,
feita por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de
Brasília, apontam que o número pode ser 15 vezes maior.
A testagem em massa a partir dos novos kits de testes
rápidos, e defendida por diferentes autoridades, entre elas o novo ministro da
Saúde, Nelson Teich, ajudaria a avaliar com mais precisão a evolução da
pandemia no território nacional. Como esses testes identificam os anticorpos
produzidos contra a infecção, um paciente que teve coronavírus, mesmo curado e
já sem sinais do vírus em seu corpo, teria a confirmação de que foi contagiado.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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