A virologista Shi Zhengli libera um morcego de uma caverna
chinesa
depois de lhe tirar sangue, em 2004. (INSTITUTO DE VIROLOGÍA DE WUHAN)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
17 de abril de 2020
O coronavírus saiu de um laboratório? A ciência responde às
teorias da conspiração
Donald Trump endossa a versão de que o patógeno tem origem
em um centro de pesquisa chinês, como já acontecera em 2004
Por Manuel Ansede
O pangolim é a maior vítima do tráfico de fauna selvagem,
principalmente na Ásia e na África. Nesses dois continentes há oito espécies
diferentes de pangolim, duas delas em grave perigo de extinção, segundo a UICN:
o pangolim-chinês (‘Manis pentadactyla’) e o pangolim-malaio (‘Manis
javanica’). Esses pequenos mamíferos são conhecidos por sua armadura protetora,
já que se envolvem sobre si mesmos formando uma bola quando se sentem ameaçados.
Sua cobertura escamosa se destina principalmente à medicina tradicional chinesa
em tratamentos contra diversas doenças, como asma, reumatismo e artrite. Além
disso, sua carne é considerada uma iguaria em vários países asiáticos.
Laboratórios chineses de alta segurança deixaram escapar
coronavírus em outras ocasiões. Em 18 de maio de 2004, a Organização Mundial da
Saúde expressou sua “preocupação” depois que dois cientistas do Instituto
Nacional de Virologia de Pequim foram infectados com o vírus da síndrome
respiratória aguda grave (SARS), um coronavírus ―irmão do atual― que apareceu
em 2002 e matou quase 800 pessoas. Nesse vazamento de 2004, o primeiro
pesquisador foi infectado no final de março, mas a ditadura chinesa ocultou o
surto até 22 de abril. O presidente dos EUA, Donald Trump, está agora dando
asas à teoria de que o novo coronavírus também é um vazamento, desta vez do
Instituto de Virologia de Wuhan, onde há anos são feitas pesquisas com vírus
similares de morcegos.
O geneticista Rasmus Nielsen explica ao EL PAÍS o que
significa a palavra “similar”. Eles se parecem um com o outro “mais ou menos
como uma pessoa com um porco”, resume Nielsen, da Universidade da Califórnia em
Berkeley, ao falar sobre o novo coronavírus ―denominado SARS-CoV-2― e o vírus
do morcego RaTG13, pesquisado oficialmente no Instituto de Virologia de Wuhan.
“O SARS-CoV-2 não é uma cepa de RaTG13 que escapou do laboratório”, arrematou
em sua conta no Twitter.
O vírus do morcego RaTG13, pesquisado oficialmente em Wuhan,
se parece tanto com o novo coronavírus “como uma pessoa com um porco”, segundo
o geneticista Rasmus Nielsen.
O virologista australiano Edward Holmes esquadrinhou o
genoma do novo coronavírus, seu manual de instruções para infectar células
humanas com tanto sucesso. “Não há nenhuma evidência de que o SARS-CoV-2 tenha
se originado em um laboratório em Wuhan”, disse Holmes, da Universidade de
Sydney, em um comunicado urgente divulgado nesta quinta-feira em meio ao
crescimento explosivo da teoria da conspiração nos EUA. Em 17 de março, a
equipe de Holmes já havia publicado um estudo genético do vírus na revista
Nature Medicine que “mostra claramente que o SARS-CoV-2 não é um constructo de
laboratório nem um vírus manipulado propositadamente”. As técnicas de
modificação genética dos vírus deixam vestígios. E no novo coronavírus não há
traços dessas pegadas dos cientistas.
No Instituto de Virologia de Wuhan trabalha Shi Zhengli, que
os próprios colegas chamam de Batwoman. A virologista identificou dezenas de
vírus similares ao da SARS em amostras de sangue, saliva e fezes de morcegos de
cavernas chinesas. Em 30 de dezembro de 2019, Zhengli recebeu uma ligação do
diretor de seu instituto para que investigasse um vírus desconhecido que havia
cansado pneumonia em duas pessoas hospitalizadas em Wuhan, segundo ela mesma
contou há um mês à revista Scientific American. “Largue tudo o que está fazendo
e se dedique a isto agora mesmo”, lhe disse o chefe, de acordo com seu relato.
Ao ver que eram coronavírus, ela mesma se perguntou se poderiam ter escapado de
seu laboratório.
Dois pesquisadores trabalham no Instituto de Virologia de Wuhan,
em uma imagem captada em 2017.
Nesta quinta-feira, a Fox News, um canal de televisão
norte-americano muito ligado a Trump, ressuscitou a teoria de que o paciente
zero teria sido um cientista do Instituto de Virologia de Wuhan que
simplesmente estava estudando uma cepa com origem em morcegos. As fontes
citadas pela Fox News, todas anônimas, reconhecem que é apenas uma teoria e
afirmam que há uma investigação aberta. Trump evitou nesta quinta-feira
rejeitar a hipótese da conspiração. “Vamos ver”, declarou. “Cada vez se escuta
mais e mais essa história.” Na terça-feira, o jornal The Washington Post
publicou que a Embaixada dos EUA em Pequim havia alertado em 2018 para a
suposta falta de segurança do Instituto de Virologia de Wuhan e que ali poderia
ter início uma pandemia semelhante ao surto da SARS.
O zoólogo Peter Daszak acha que não faz sentido falar em
vazamento de laboratório quando o salto de vírus de animais para humanos
“acontece todos os dias”
O zoólogo norte-americano Peter Daszak trabalha há anos em
estreita colaboração com a virologista chinesa Shi Zhengli. Daszak preside a
EcoHealth Alliance, uma organização internacional dedicada a investigar doenças
que emergem da vida selvagem e ameaçam a humanidade. Em outubro de 2015, os
dois analisaram o sangue de 218 habitantes de quatro cidadezinhas da província
chinesa de Yunnan, moradores próximos de cavernas com morcegos. Seis das
pessoas, quase 3% do total, tinham anticorpos contra os coronavírus similares
ao SARS procedentes dos animais. Para Daszak, não faz sentido pensa em um
vazamento de laboratório. “Esses saltos [dos vírus e animais para humanos]
acontecem todos os dias”, escreveu ele em sua conta no Twitter.
"Vimos que 3% da população rural no Sudeste Asiático
possui anticorpos contra o coronavírus de morcego. Isso significa que todos os
anos entre um e sete milhões de pessoas são expostas a coronavírus relacionados
à SARS no. É completamente ilógico pensar que não foi isso que levou ao atual
surto ", acrescentou Daszak.
“Não houve acidente no laboratório!”, insistiu. “Entrar em
cavernas de morcegos e caçá-los para comê-los, refugiar-se do clima do Sudeste
Asiático em uma dessas cavernas ou morar perto de uma delas são coisas que
acontecem todos os dias. E é assim que se propagam os vírus”, conclui Daszak,
que debocha da necessidade de recorrer a explicações improváveis. Em 2003,
recorda com ironia, o astrofísico britânico Chandra Wickramasinghe propôs uma
teoria alternativa sobre a origem do vírus da SARS na revista médica The
Lancet: poderia ter vindo do espaço.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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