Ai Weiwei, apresentando sua exibição na Kunstsammlung
Nordrhein-Westfalen
no ano passado. (FEDERICO GAMBARINI/GETTY IMAGES)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, 5
de abril de 2020
Ai Weiwei: “O capitalismo chegou ao seu fim”
Mais importante artista chinês, célebre dissidente do regime
comunista, critica a gestão da China sobre a pandemia: “Se este desastre pôde
se expandir, se deve em grande parte pela China ter escondido a verdade”
Por Isolda Morillo
Ai Weiwei é um dos dissidentes chineses que mais denunciou a
falta de direitos humanos que impera no mundo, assim como o dano que a falta de
liberdade de expressão causa na China. O artista vivo mais importante do país
asiático lidera o ranking mundial de autores que atraem mais visitantes aos
museus: no ano passado, 1,1 milhão de pessoas foi a uma de suas exposições
itinerantes no Brasil, mais do que Van Gogh, Klimt e Munch.
A relação entre Ai Weiwei e o Partido Comunista Chinês foi
durante anos como de cão e gato. Após ficar preso por 81 dias acusado de evasão
fiscal, o artista, ao voltar para sua casa, respondeu à vigilância a que era
submetido transmitindo sua vida como protesto. Em 2015, por fim, abandonou seu
país e foi para Cambridge, Inglaterra. Hoje está confinado, ainda que dessa vez
compartilhe os motivos. Ai Weiwei (Pequim, 1957) fala sobre a crise mundial sem
precedentes que a Covid-19 provocou. Aponta o vínculo entre os desastres que
assolam o planeta e a falta de valores humanistas durante uma entrevista que
começa por telefone e termina por e-mail. São questões essenciais em sua obra e
as hasteia com veemência. Talvez sejam as experiencias de sua infância que
forjaram seu caráter crítico: acompanhava seu pai, o poeta Ai Qing, para
realizar trabalhos forçados no campo e limpar latrinas como castigo por suas
críticas ao Partido Comunista. O mais provável é que não possa voltar a seu
país. Acusa o Governo de ter destruído seu estúdio em Pequim sem aviso prévio.
Acaba de publicar um livro de aforismos na Espanha: Humanidad (Humanidade) pela
editora Paidós, em fevereiro de 2020.
Pergunta. O chamado coronavírus está assolando o mundo como
se fosse uma grande tempestade, mudando nosso modo de interagir e viver. Como
vê o que estamos experimentando?
Resposta. A epidemia chegou repentinamente, ninguém estava
preparado para isso. O que se diz é que é um vírus muito democrático porque
ataca todos da mesma forma. Os desastres que vimos antes, incluindo as guerras,
eram de caráter regional. Essa é a primeira vez que me vejo em meio a um
desastre de caráter global.
P. O vírus desatou ondas de racismo. O presidente dos
Estados Unidos chegou a chamá-lo de “vírus chinês”. O que o senhor pensa disso?
R. Não é estranho nomear um vírus baseando-se em seu local
de origem. É como uma pessoa, pode ter nome e apelido. Covid-19 seria seu nome
oficial. Não acho que exista discriminação racial nesse assunto. Além disso,
todas as culturas têm um grau de preconceito em relação a outras. Enquanto
esses preconceitos não prejudicarem a dignidade nacional e a dos indivíduos,
não acho que seja um problema. O grave é que o vírus surgiu e se propagou pela
falta de transparência do Governo chinês. A perda de vidas global foi enorme.
Por isso, não acho ruim que se chame “vírus chinês”. Espero que chamá-lo assim
sirva para que os chineses e seus políticos percebam que a única maneira de
contar com um mundo justo e seguro é garantindo a liberdade de expressão.
P. Qual o papel da liberdade de expressão na propagação do
vírus na China e, depois, no mundo?
R. Ocorreram tantos desastres na China, e cada um deles
esteve ligado a uma coerção da liberdade de expressão. Sua falta é em si um
desastre humanitário. Estamos fartos de saber disso. Do contrário, eu não teria
ficado no estrangeiro. A liberdade de expressão é como um vírus, e pode ser
ofensivo a alguns organismos. O Partido Comunista Chinês é uma organização mais
forte do que qualquer outra no mundo e exerce sua autoridade através do
controle do pensamento e do discurso das pessoas. Se esse desastre pôde se
expandir se deve em grande parte pelo fato da China ter escondido a verdade. A
Organização Mundial da Saúde foi cúmplice disso ao não dar a gravidade e
magnitude devidas ao problema, negando que estivéssemos diante de uma epidemia.
“Os refugiados confinados em acampamentos dos quais não
podem sair deveriam receber ajuda prioritária”
P. O Governo chinês está ajudando muitos países, doando
máscaras e material médico. O que acha dessa estratégia?
R. A China, ao encarar um desastre, em vez de assumir suas
responsabilidades, faz trocas de favores políticos, politizando os princípios
humanitários. O espírito humanitário está sendo distorcido. E me refiro também
a todas as crianças em campos de refugiados. Não podem sair, estão confinadas em
acampamentos, deveriam receber ajudar prioritária, e acrescento os presos. O
Irã ordenou a libertação dos seus enquanto o vírus durar, mas continua sendo um
país sancionado pelos Estados Unidos. Quando a ideologia e a animosidade
política obstruem a solução dos desastres humanitários, isso pode ser
considerado um crime. Atualmente, nenhum país pode condenar outro, o mundo está
no caos. Por que o Reino Unido não liberta Assange? É uma figura fundamental na
liberdade de imprensa e de expressão; agora, entretanto, deverá enfrentar uma
possível extradição aos Estados Unidos e uma pena de até 175 anos. Manter uma
coerência ética não é fácil, as pessoas só percebem os desastres que afetam
suas regiões, mas os desastres estão conectados.
P. Hoje se debate se, para enfrentar a crise, a democracia é
menos eficiente do que um sistema autoritário. O que o senhor acha?
R. Visto da superfície, a China conseguiu controlar
rapidamente a epidemia. Mas pagou um preço que não é visível: a saúde emocional
de toda a sua população, que foi trancada em jaulas como animais, obrigada pela
força a ficar confinada durante mais de dois meses. Uma sociedade que vive sob
um regime autoritário funciona como um exército e as pessoas são como animais
em cativeiro. Após ter vivido sob forte controle por mais de 70 anos, perderam
o valor de se rebelar. Se o Ocidente acha que manter essa situação é benéfica,
será pela estupidez e por motivos sub-reptícios. Muitos têm interesse em fazer
negócios com a China. Basta negar a existência de Taiwan e não se relacionar
com o Dalai Lama.
P. Dizem que as pessoas de países como a Coreia do Sul,
Japão e China são mais submissas. Que o confucionismo faz com que os indivíduos
acatem melhor as ordens.
R. Se o pensamento de Confúcio fosse realmente praticado, o
regime não seria tão violento. Nós chineses não somos nada submissos. É só ver
como tratamos os animais e a brutalidade de certos crimes. O Governo também não
é dócil com seu povo. Promove essa imagem para manter as aparências.
“Nós chineses não somos nada submissos, é só ver como
tratamos os animais e a brutalidade de certos crimes”
P. O que o senhor pensa do modelo chinês? Está em crise?
R. O [Estado chinês] é um grupo de interesse que se tornou
cada vez mais forte com a introdução do capital, se transformou em capitalismo
de Estado. A livre concorrência e a economia de mercado sob a premissa da
liberdade individual não existem, tudo está sob o controle do Partido. O
Ocidente perdeu sua vantagem competitiva, encontrou um competidor poderoso e
incontrolável porque desobedece às regras. O que está acontecendo é uma grande
lição, mas poderemos aprender com essa lição? Nós nos movimentamos por interesses.
Empreendemos projetos somente quando nos trazem lucros, nos esquecendo dos
princípios. A Europa e os Estados Unidos apoiaram o regime chinês, não se
manifestaram sobre o assassinato de um jornalista em uma embaixada da Arábia
Saudita na Turquia. Quando a impunidade é permitida, quem a permite perde o
direito de falar sobre o que é justo e injusto. Se o Ocidente se deixa guiar
somente pelos lucros e os interesses, será bem merecido quando sofrer perdas.
P. Considera que o capitalismo está em crise?
R. O capitalismo chegou ao seu fim. Não pode continuar
desenvolvendo-se moral e eticamente. Causa problemas às pequenas nações, se
apodera dos recursos do planeta, saqueia sem freio. A China alimenta os
interesses das grandes empresas ocidentais e estas tornaram a China cada vez
mais poderosa. Essas empresas não são restringidas por nenhum Estado, nação e
cultura. A China está disposta a fazer coisas que não podem ser feitas no
Ocidente. A globalização está sendo feita sobre a base do desenvolvimento do
capitalismo e o colonialismo. A crise subjacente é palpável, e os desastres por
vir ocorrerão mais de uma vez. Como fazer o desenvolvimento livre de um país de
1,4 bilhão de pessoas sob um regime autoritário? O desenvolvimento de uma
sociedade depende da legitimidade de seus Governos. E após 70 anos no Governo,
o Partido ainda não resolveu esse problema. Essa é a verdadeira crise que a
China enfrenta.
P. Muitos países fecharam suas fronteiras, até a
globalização começou a ser questionada: isso é atribuído à rapidez com que o
vírus se deslocou. Como o senhor vê isso?
R. Se os Estados Unidos constroem um muro que os separa do
México, então onde estão a liberalização e a globalização? Para o capital não
existem barreiras, o capital circula livremente no mundo. O sonho da
globalização é resolver tudo com dinheiro. Os refugiados chegaram às terras
europeias e foram tratados pior do que os prisioneiros. Por acaso abandonaram
seus lares voluntariamente? Os desastres não acabarão, virão um após o outro,
porque os humanos violaram muitos princípios morais.
P. O senhor sabe o que é estar confinado. Viveu isso à força
na China. O senhor está acostumado ao isolamento? O que faz Ai Weiwei confinado
em casa?
R. Entendo o isolamento, é uma medida que responde à
desconfiança das pessoas em relação à ordem social existente. A liberdade
individual só pode se basear na confiança pública. Pessoalmente, não me afeta
em nada. Passo mais tempo com minha família, o que é motivo de alegria. Isso me
permite refletir sobre os assuntos que geralmente me interessam. Penso muito no
humanismo, meu último livro se chama Humanidade. Esse desastre nos fez
comprovar que nesse mundo já não existem regiões e uma liberdade regional. Essa
epidemia nos alertou que o enriquecimento de grupos empresariais e regionais
através da globalização deve acabar. Caso contrário, as desgraças por vir serão
ainda maiores.
P. Do que sente falta da China? Pode voltar a seu país ou
está em estado de exílio absoluto?
R. Não posso voltar, é impossível expressar minhas opiniões
lá. A expressão é vital à criação. Não poder fazê-lo é como perder a vida. Não
tenho saudades. Sinto falta de minha mãe, de meus irmãos. É minha terra, me é
familiar. É meu idioma e tenho amigos lá. Mas, enquanto a China for só um
conceito político, não tenho nenhum desejo de retornar.
P. Como sua infância impactou sua arte? Esteve marcada pelas
experiências de seu pai, que foi enviado para trabalhar no campo durante a
revolução cultural, onde limpou banheiros, morou em buracos escavados no solo.
R. As recordações da infância nos marcam, é como quando uma
árvore cresce, sempre estará ligada às suas razies. É inegável que meu capital
vivencial está ligado às experiências da geração de meu pai. Tudo aquilo que me
ajudou a compreender melhor o valor do humano e a importância de preservar a
vida. Qual é o significado dos direitos humanos? É uma pergunta que me faço
constantemente. E esse tema influenciou minhas obras. Minha vida é uma obra:
minha vida e a própria vida.
Mais repressão
A censura aos dissidentes se intensificou com a crise do
coronavírus. Xu Zhiyong, acadêmico crítico ao Governo, foi preso em 15 de
fevereiro no sul da China após participar de uma reunião com ativistas. Está em
paradeiro desconhecido, investigado por “incitação a subverter o poder do
Estado”. Fundador do movimento Novos Cidadãos, publicou um artigo no começo de
fevereiro alegando que Xi Jinping, o presidente da China, era “incapaz de
lidar” com a crise do coronavírus. A doutora Ai Fen, diretora do setor de
emergências do hospital central de Wuhan, figura que participou dos alertas
lançados sobre o surto quando o Partido Comunista Chinês (PCCh) estava
desesperado para escondê-lo, também deixou de fazer declarações. “As redes
sociais estão sendo sujeitas a um escrutínio maior, recebemos a visita da
polícia por comentários que fizemos em grupos de chat da Internet”, diz uma
escritora dissidente residente em Pequim que pediu para se mante no anonimato.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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