Entregador de alimentos de uma empresa de aplicativos nesta segunda-feira,
em Buenos Aires. (Imagem: Juan Ignacio Roncoroni - EFE)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS Brasil, em 9 de abril de 2020
O dia seguinte
“Isto é uma marca da peste”, dizia meu avô quando lhe
perguntava sobre um buraco que tinha na testa
Por Leila Guerriero
Domingo. Buenos Aires. As pessoas se lançaram aos
supermercados em uma debandada de guerra nuclear. Eu também vou. Para comprar
areia para o banheiro das gatas. Não há fila porque é um supermercado chinês,
mas estaria igualmente vazio se fosse de italianos ou de espanhóis, só que os
chineses têm a má sorte que a nacionalidade se note em seus rostos. À noite eu
telefono para o meu pai. Ele está furioso. Ele é apenas 19 anos mais velho do
que eu. Diz que meu irmão e seus funcionários querem trancá-lo em casa por medo
de que os contagie. Digo a ele que não é por eles, mas por ele, que é ele que
não deve ser infectado. Ele grita, indignado: “Eles têm medo, eu não! É uma
guerra contra os velhos, um vírus perfeito para aniquilar estorvos”. Penso
naquela frase que martelam: “É perigoso para os idosos, não tanto para os
jovens”, no alívio que muitos devem sentir ao pensar “Ah, eu tenho 45, 32, 20”.
Nos “salvos?” pelo acaso das datas. Tudo o que parecia sólido é menos sólido do
que o ar.
Até dias atrás falávamos do avanço da direita, da xenofobia,
do nacionalismo, de Trump e de Bolsonaro como as bestas negras. Agora, em um
cenário de guerra química, nas varandas da Itália o hino nacional é cantado e
até os mais hereges se sentem transtornados de patriotismo, atordoados de
emoção, cantando “Estamos prontos para morrer, a Itália chamou”. Os cidadãos
clamam a seus Governos que lhes impeçam de viajar, que os vigiem, que fechem as
fronteiras, que expulsem os estrangeiros, que a polícia patrulhe. A quarentena
obrigatória transformou a delação em orgulho cidadão, a suspeita em
solidariedade: “Denunciou o vizinho porque não cumpria a quarentena”. O
confinamento é vivido como alívio, o controle social como dever. A distância
com o outro como “sinal de amor”.
“Isto é uma marca da peste”, dizia meu avô quando lhe
perguntava sobre um buraco que tinha na testa. Ele era sírio. Na Síria tivera
“a peste negra”. É provável que tenha sido a mesma que matou a família da minha
avó, também síria, que uma manhã de seus 12 anos, foi à missa –eram cristãos
ortodoxos– e, quando voltou, “um ar ruim tinha vindo” e descobriu que os irmãos
e a mãe estavam mortos. Para salvá-la, a avó a colocou em um navio com destino
à Argentina e nunca mais souberam uma da outra. Ela falava daquela manhã
fatídica com um pranto que me envergonhava. Se agora minha avó tivesse 12 anos,
não teria nenhum lugar para se esconder. Nenhum lugar para ir.
Muitos têm medo e vergonha de ter medo. E muitos não têm
medo, mas não podem dizer que não têm medo, porque não ter medo os torna
perigosos.
O homem com quem vivo mencionou há alguns meses, quando
matavam camelos na Austrália para que não acabassem com a água necessária para
apagar incêndios, a frase “rifle sanitário”. Encontro um artigo de 2009,
assinado pelo engenheiro Saúl A. Ubici, de Bahía Blanca. Diz que o rifle
sanitário tem como objetivo “eliminar animais perigosos para deter o avanço da
doença (…) consiste na eliminação pura e simples dos doentes, por precaução.
Uma espécie de eutanásia sem consulta para evitar males maiores”. O artigo fala
de vacas com febre aftosa.
Não sei que peste meu avô teve, qual delas matou a família
da minha avó. Não lamento não ter perguntado a eles. Fico feliz em tê-los
acompanhado na agonia, em ter podido mentir-lhes: “Não se preocupe, amanhã você
estará melhor”. Fico feliz que eles não tenham morrido como agora fazemos
morrer os idosos: sozinhos, talvez com que lembranças, com que medos.
Todos os meus amigos estão longe: na Espanha, no Chile, no
México. Penso naquele poema de Borges: “Quem nos dirá de quem, em nosso espaço,
/ Sem sabê-lo, nos temos despedido?”.
Teremos um mundo depois disso. Mas que mundo teremos depois
disso?
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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