Mulher caminha diante de grafite com mensagens religiosas
que pedem proteção
em diversas línguas, em Pamplona, na Espanha. (ALVARO BARRIENTOS/AP)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 18 de março de 2020
Retorno à Idade Média?
O coronavírus será uma pandemia passageira. O que não
passará é o medo da morte, que nos acompanha como uma sombra
Por Mario Vargas Llosa
O coronavírus começa a causar estragos na Espanha. Ou,
melhor dizendo, o espanto causado por esse vírus proveniente da China ocupa
todos os noticiários e rádios e jornais, escolas e universidades, bibliotecas e
teatros foram fechados, as Fallas de Valência foram paralisadas, as sessões
plenárias das Cortes foram suspensas, os eventos esportivos serão realizados
sem público, apesar de os distribuidores dizerem que haverá reposição as
prateleiras dos supermercados são vistas semivazias, o que indica que as
pessoas carregam produtos de primeira necessidade para o que entendem que será
um longo isolamento, e, claro, nas conversas privadas não se fala de outra
coisa.
Tudo isso, em termos práticos, é muito exagerado, mas não há
nada a fazer: a Espanha tem medo, e os Governos, o nacional e os regionais,
fazem frente à pavorosa doença com medidas cada vez mais rigorosas, que, de uma
maneira geral, os espanhóis aprovam e, inclusive, exigem que sejam mais
extensas e intensas. Estatísticas oficiais dizem que até o dia de hoje, 18 de
março, há 309 mortes por culpa da pandemia e que é por gosto que, por exemplo,
a simples gripe seja mais assassina que ela porque causa pelo menos 600 mortes
anuais, e que são muitos mais os que se recuperam do coronavírus que os que
perecem por culpa dele, que a Espanha tem um dos melhores sistemas de saúde do
mundo —acima da média europeia— e que o trabalho que os médicos e profissionais
sanitários vêm realizado em todo o país é eficiente e está à altura do desafio
etc.
Jamais as estatísticas foram capazes de tranquilizar uma
sociedade corroída pelo pânico, e esta é uma boa ocasião para comprovar isso.
Em meio à civilização reapareceu a Idade Média, o que significa que muitas
coisas mudaram desde então, mas muitas outras, não. Por exemplo: o medo da
peste. E, a propósito, a literatura tem um renascer inevitável nestes períodos
de medo coletivo: quando não entende o que acontece, uma sociedade vai aos
livros para ver se eles o explicam. O pior romance de Albert Camus, A peste,
tem um súbito renascimento e tanto na França como na Espanha são feitas
reedições, e esse livro medíocre se transformou em um best-seller.
Ninguém parece notar que nada disso poderia estar ocorrendo
no mundo se a China Popular fosse um país livre e democrático, e não a ditadura
que é. Pelo menos um médico prestigioso, e talvez fossem vários, detectou esse
vírus com muita antecipação e, em vez de tomar medidas correspondentes, o
Governo tentou ocultar a notícia, silenciou essa voz ou essas vozes sensatas e
tratou de impedir que a notícia se difundisse, como fazem todas as ditaduras.
Assim, como em Chernobyl, perdeu-se muito tempo para encontrar uma vacina. Só
se reconheceu a aparição da praga quando esta já se expandia. É bom que ocorra
isto agora e o mundo saiba de que o verdadeiro progresso está mutilado sempre
que não está acompanhado de liberdade. Entenderão isso de uma vez esses
insensatos que acreditam que o exemplo da China, ou seja, o mercado livre com
uma ditadura política, é um bom modelo para o Terceiro Mundo? Não existe tal
coisa: o ocorrido com o coronavírus deveria abrir os olhos dos cegos.
A peste foi ao longo da história um dos piores pesadelos da
humanidade. Sobretudo na Idade Média. Era o que desesperava e enlouquecia os
nossos velhos ancestrais. Encerrados por trás das robustas muralhas que tinham
erigido para suas cidades, defendidos por fossos cheios de águas envenenadas e
pontes levadiças, não temiam tanto esses inimigos tangíveis contra os quais
podiam se defender de igual para igual, enfrentá-los com espadas, facas e
lanças. Mas a peste não era humana, era obra dos demônios, um castigo de Deus
que recaía sobre a massa cidadã e golpeava por igual pecadores e inocentes,
contra a qual não havia nada a fazer, salvo rezar e se arrepender dos pecados
cometidos. A morte estava ali, todo-poderosa, e depois dela as chamas eternas
do inferno. A irracionalidade eclodia em qualquer parte, e havia cidades que
tratavam de aplacar a praga infernal oferecendo-lhe sacrifícios humanos, de
bruxas, bruxos, incrédulos, pecadores não arrependidos, insubmissos e rebeldes.
Quando Flaubert viajou ao Egito, ainda viu leprosos que percorriam as ruas
tocando sinos para advertir às pessoas para que se afastassem se não quisessem
ver (e se contagiar com) suas chagas purulentas.
Por isso, a peste quase não aparece nas novelas de
cavalarias, que são outro aspecto, mais positivo, da Idade Média: nelas há
proezas físicas extraordinárias, Tirante, o Branco, derrota sozinho gigantescos
exércitos. Mas os adversários dos cavalheiros andantes são seres humanos, não
diabos, e o que o homem medieval teme são os diabos, esses demônios que,
escondidos no coração das epidemias, golpeiam e matam sem discriminar culpados
e inocentes.
Esse velho terror não desapareceu de todo, apesar dos
extraordinários progressos da civilização. Todo mundo sabe que, como ocorreu
com a AIDS e com o ebola, o coronavírus será uma pandemia passageira, para a
qual os cientistas dos países mais avançados logo encontrarão uma vacina para
nos defender contra ela, e que tudo isto terminará e será, dentro de algum
tempo, uma notícia murcha da qual as pessoas mal se recordarão.
O que não passará é o medo da morte, do além, que é o que se
aninha no coração destes terrores coletivos que são o temor em relação às
pestes. A religião aplaca esse medo, mas nunca o extingue, sempre fica, no
fundo dos crentes, esse mal-estar que aumenta às vezes e se transforma em medo
pânico, do que haverá uma vez que se cruze aquele limiar que separa a vida do
que há além dela: a extinção total e para sempre? Essa fabulosa divisão entre o
céu para os bons e o inferno para os malvados de um deus brincalhão, que as
religiões prognosticam? Alguma outra forma de sobrevivência que não foram
capazes de notar os sábios, os filósofos, os teólogos, os cientistas? A peste
de repente traz estas perguntas, que na vida cotidiana normal estão confinadas
nas profundezas da personalidade humana, para o momento presente, e homens e
mulheres devem responder a elas, assumindo sua condição de seres passageiros.
Para todos nós é difícil aceitar que tudo de belo que tem a vida, a aventura
permanente que ela é ou poderia ser, é obra exclusiva da morte, de saber que em
algum momento esta vida terá ponto final. Que se a morte não existisse a vida
seria imensamente chata, sem aventura nem mistério, uma repetição cacofônica de
experiências até a saciedade mais truculenta e estúpida. Que é graças à morte
que existem o amor, o desejo, a fantasia, as artes, a ciência, os livros, a
cultura, ou seja, todas aquelas coisas que tornam a vida suportável,
imprevisível e excitante. A razão nos explica isso, mas a injustiça que também
nos habita nos impede de aceitá-lo. O terror à peste é, simplesmente, o medo da
morte que nos acompanhará sempre como uma sombra.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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