Ilustração - SR. GARCÍA
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 17 de março de 2020
Dizer “não”, algo tão simples e tão complexo
Por que dizer não é tão difícil para nós? A negação é uma
das primeiras mensagens que aprendemos a comunicar e, ainda assim, uma das que
mais nos custam transmitir e entender.
Por David Dorenbaum
Por que é tão difícil dizer "não", sobretudo
quando está claro que isso pode nos livrar de apuros? Saber dizer
"não", suas implicações e o que a negação expressa em cada uma das
situações são desafios que temos de enfrentar nos diferentes estágios de nosso
desenvolvimento. Isso é o que nos mostra o filósofo Wilfried Ver Eecke em seu
livro Saying No: Its Meaning in Child Development, Psychoanalysis, Linguistics,
and Hegel, com o exemplo das crianças pequenas que fazem exatamente o contrário
do que lhes pedem os pais, que costumam dizer: “Nosso filho é um verdadeiro
diabinho”. Um comentário para o qual não é incomum a resposta: "Se ele não
for assim agora, quando crescer não será ele mesmo". Por que as crianças
dizem tanto "não"? Uma razão é que o escutam muito. Joan Manuel
Serrat destaca isso na canção Esos Locos Bajitos: Niño, deja ya de joder con la
pelota/ Niño, que eso no se disse/ Que eso no se hace/ Que eso no se toca
[Filho, para, essa bola já tá enchendo, isso não se diz, isso não se faz, não é
pra mexer nisso]. Eles realmente não toleram ser forçados à passividade,
expressam sua oposição e, assim que desenvolvem a capacidade de expressar seus
próprios julgamentos ––com a possibilidade de dizer 'sim' ou 'não'–– podem
discutir e negociar. O "não" dos pequenos é um sinal de força.
Outro exemplo apontado por Ver Eecke é quando os jovens se
rebelam, e os mais velhos, em vez de adotar uma atitude conciliatória com as
manifestações de negatividade dos adolescentes, ofuscam a visão e dizem que os
jovens "não têm nada melhor a fazer com seu tempo”. O filósofo cita outro
caso, comum entre adultos, quando, em um evento social, nos mostram uma bandeja
com bebidas alcoólicas e, enfaticamente, as rejeitamos com um gesto de mão
porque precisamos dirigir um veículo após a reunião. Na realidade, não se trata
somente de uma questão de força de vontade individual. Poderíamos especular
que, neste caso, seria possível aumentar a força do indivíduo para poder dizer
"não" se o restante da comunidade fosse firme em enfatizar a
importância de não dirigir sob a influência do álcool. Em exemplos como esses
vemos o benefício de dizer "não".
No entanto, há outras circunstâncias em que a vontade de
dizer "não" se debilita, nos confunde e nos coloca naquilo que o
filósofo Albert Camus chama de "entre o sim e o não", como quando
achamos difícil decidir se nossas suspeitas têm fundamento ou distinguir entre
a fantasia e a realidade. Sigmund Freud trata da questão no ensaio intitulado A
Negação, no qual propõe que esta pode ser mais reveladora do que uma observação
afirmativa, como quando alguém diz: "A mulher no meu sonho não é minha mãe"
e nos dá a chave da verdade essencial que foi reprimida: na verdade, é sua mãe.
Freud conclui que a dificuldade de dizer "não" deriva do fato de que
no inconsciente não existe esse conceito.
O "não" nos leva de volta às origens da linguagem,
talvez seja uma das primeiras mensagens que comunicamos. O psicanalista e
pioneiro nos estudos do desenvolvimento Rene A. Spitz, em seu livro O Não e o
Sim: A Gênese da Comunicação Humana, propõe que a partir do momento em que o
recém-nascido, com um movimento da cabeça, consegue se distanciar do seio da
mãe, ocorre a primeira manifestação da negatividade. O equivalente a essa
expressão é observado no adulto quando vira a cabeça de um lado para o outro
para indicar negação. Dizer "não" também nos remete aos antecedentes
míticos de nossa cultura —Adão e Eva desafiaram, Édipo transgrediu— e nos
confronta com a necessidade de aceitar que existem limites. Ao fazer isso,
aderimos à lei que rege a vida comunitária. O psicanalista Jacques Lacan
centraliza suas teorias neste princípio fundamental e sustenta que é
precisamente a aceitação do limite imposto pela negatividade o que nos permite
funcionar dentro da realidade. O "não" afirma nossa individualidade,
distingue o que não somos do que somos e opera como o negativo de uma fotografia,
sem o qual ela não existiria. Paradoxalmente, a negatividade tem um efeito
afirmativo. Os braços da Vênus de Milo são um exemplo: não estando presentes na
estátua, acentuam sua identidade.
Então, como explicar a dificuldade que frequentemente enfrentamos
ao não poder dizer "não" na vida cotidiana, no trabalho, dizer
"não" ao sexo quando alguém o demanda, ou "não" à Internet?
Lacan o relaciona com o desafio de aceitar o limite e suas consequências. É
importante considerar que nos momentos em que a capacidade de dizer
"não" se enfraquece e nos paralisa —nos faz temer a rejeição,
antecipar que perderemos o emprego ou a estima da pessoa a quem negamos algo—
talvez estejam em jogo mecanismos inconscientes de repressão. Embora obviamente
exista a possibilidade de ocorrer o que tememos, há alguma maneira de facilitar
esse “não” se estivermos convencidos, mas não nos atrevemos? Nessas
encruzilhadas, é essencial parar e analisar as consequências do que realmente
queremos, para poder aceitar isso intelectual e emocionalmente e poder agir de
modo coerente com a nossa vontade, se for necessário dizer "não".
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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