Imagens reproduzidas do Google e postadas pelo blog,
para ilustrar o presente artigo
Texto publicado originalmente no site do Portal INFONET, em
19 de março de 2020
Peste, Cólera e panelaço
Por Odilon Machado (Do blog Infonet)
Em tempo de Corona vírus, dois textos me vêm à mente: “A
Peste”, de Albert Camus, e “Morte em Veneza”, de Thomas Mann.
Camus narra o surto de uma terrível epidemia de Peste Negra
numa pequena e tranquila cidade chamada Orã, cinzenta e pacífica, cujo povo
curte a vida frugalmente, criando filhos e desenvolvendo seu labor diário,
quase perdida no tempo e esquecida no noticiário.
Em Orã vivia um médico, Bernardo Rieux, que, por primeiro,
passou a perceber um crescimento de doentes febris, evidenciando que grassava
uma pestilência crescente, em óbitos acima do normal e corriqueiro.
À morte dos humanos acompanhava também um crescente
aparecimento de ratos mortos, algo a evidenciar que havia um elo comum a
suspeitar desses roedores.
Tratava-se de Peste Negra, moléstia nunca imaginada em Orã e
até por Bernardo que via a contaminação espalhar-se incontrolavelmente, um
desafio a seus cuidados, e, sobretudo, a convencer as autoridades locais para a
tomada de providências urgentes e radicais, afinal era preciso cuidar dos
enfermos e afastá-los do convívio dos sãos.
Viria por consequência a decretação de quarentena, uma vez
que se assim não fosse feito logo a peste mataria 50% da população.
Camus narra o drama terrível da morte, setecentos corpos por
dia, de homens e mulheres, velhos e crianças, entes queridos sendo privados até
de um sepultamento digno, as pessoas sendo mantidas isoladas quais prisioneiros
em suas casas, quartos e cubículos, e os cadáveres sendo enterrados em valas
comuns, cobertos de rala camada de cal, sem esperança e com desolação, sem cura
e sem imunidade.
Depois, como toda epidemia, a doença como surgiu, sumiu,
incubou, desapareceu, restou a alegria de quem viveu e sobreviveu, a Peste
restando escondida, debelada como surto, esquecida mas não vencida, a morte
sempre vindo, em surpresas sempre esperadas.
Se na Peste de Camus o drama e a dor se fazem cruéis, por
terrível e assustador, algo não recomendável por leitura nestes tempos de
Pandemia de Corona Vírus, quando o mundo e não Orã apenas se vê ameaçado com
perspectivas bem piores, em termos de miséria e sofrimento, Thomas Mann em
Morte em Veneza faz da Cólera e não da Peste um mero cenário para dramas
existenciais, consubstanciais ao estético, a fixação poética, permitindo até o
imaginar senão o degenero, a paixão platônica de um velho caquético por um
adolescente de rara beleza.
Poder-se-á pensar que há laivos de pedofilia na atração de
Gustav Aschenbach, escritor alemão consagrado e respeitado além fronteiras,
pelo jovem polonês Tadzio, um adolescente de rara beleza.
Gustav Aschenbach apaixona-se pela beleza e requinte do
menino encarando-a irresistivelmente como uma imagem perfeita da qual não pode
se afastar nem se aproximar, enquanto meta espiritual e sonho de formosura.
Quanto ao Cólera, a moléstia grassa em Veneza, enquanto as
autoridades abafam a notícia do surto para não espantar os turistas mantidos
sem acesso ao noticiário, por barreira idiomática, e a contaminação crescendo
inclemente, atingindo a todos.
Aschenbach, homem ilustrado, ao perceber o surto da doença,
resolve ir embora, tenta avisar do perigo à família do garoto, não conseguindo
sair de si mesmo, até para isso, incapaz de ir além da atração irresistível que
o paralisa e tolhe o agir.
Há um contexto ditado pelo acaso que impede a sua fuga do
cenário doentio, contaminado. Suas bagagens se extraviam, eis a oportunidade do
homem ilustre ficar, não seguir viagem, contemplar de novo Tadzio, deixar-se
atrair por aquela beleza que o paralisa.
Morrerá na praia do Lido, sozinho, após esboçar em delírio
um último aceno para a sua platônica atração, que não o percebe, indiferente.
Se na Peste de Camus os sobreviventes em quarentena rugiam,
choravam, cantavam e gritavam nos seus cubículos aprisionados, e se em Veneza,
Aschenbach preferiu deixar-se morrer infectado sem correr do sonho estético,
sua razão maior de existir, no nosso viver em prévias de ameaças de corona
vírus, e muita vontade de nada levar a sério, só sorrir, e se divertir, batemos
panelas, prós e contras, o governo, a todo governo, qualquer governo, que nunca
agrada.
Texto reproduzido do site: infonet.com.br
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