Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 15 de março de 2020
Pandemia do Coronavírus
Em 1918, gripe espanhola espalhou morte e pânico e gerou a
semente do SUS
Naquele ano, escolas brasileiras aprovaram todos os alunos.
A busca de remédios milagrosos teve um efeito colateral inusitado, a criação da
caipirinha
Por Ricardo Westin
Parece filme de terror. Cadáveres jazem na porta das casas,
atraindo urubus. O ar é fétido. Os raros transeuntes andam a passos ligeiros,
como se fugissem da misteriosa doença. Carroças surgem de tempos em tempos
para, sem cuidado ou deferência, recolher os corpos, que seguem em pilhas para
o cemitério.
— Por toda parte, o pânico, o assombro, o horror! — exclama
o deputado Sólon de Lucena (PB).
A primeira página da 'Gazeta de Notícias' mostra o caos no
Rio de Janeiro dominado pela gripe espanhola
Imagem: Biblioteca Nacional
Como os coveiros, em grande parte, estão acamados ou
morreram, a polícia sai às ruas capturando os homens mais robustos, que são
forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres. Os mortos são tantos que não há
caixões suficientes, os corpos são despejados em valas coletivas e o trabalho
se estende pela madrugada adentro.
Nota do jornal A Noite critica a prefeitura do Rio por
forçar cidadãos comuns a
enterrar cadáveres durante a epidemia de 1918
Imagem:
Biblioteca Nacional
— Esse grande flagelo parece zombar da fortaleza física do
homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de
combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez — afirma
o senador Jeronymo Monteiro (ES).
O filme de terror ocorreu em 1918, quando a gripe espanhola
invadiu o Brasil. A violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio
Demerara, procedente da Europa. Em setembro desse ano, sem saber que trazia o
vírus, o transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em
Salvador e no Rio de Janeiro.
No mês seguinte, o país inteiro já está submerso naquela que
até hoje é a mais devastadora epidemia da sua história.
A gripe espanhola, como indicam os discursos acima, domina
os debates do Congresso Nacional. As falas dos parlamentares integram o acervo
histórico do Arquivo do Senado e do Arquivo da Câmara, em Brasília, e mostram
como o Brasil de 1918 se comportou diante da doença.
Assim como outros prédios públicos do país, o Senado e a
Câmara, no Rio (que tem o status de Distrito Federal), passam vários dias
fechados. Não há funcionários suficientes para tocar as atividades burocráticas
no auge da epidemia. Muitos convalescem e outros tantos morreram.
— Tendo sido também vítima da espanhola e seriamente, Sua
Excelência está aí rijo, cumprindo seus deveres com aquela atividade rara que
todos lhe reconhecemos — diz, num discurso de boas-vindas, o senador Victorino
Monteiro (RS).
Nem mesmo o presidente da República é poupado. Rodrigues
Alves, eleito em março de 1918 para o segundo mandato, cai de cama
“espanholado” e não toma posse. O vice, Delfim Moreira, assume interinamente em
novembro, à espera da cura do titular. Rodrigues Alves, porém, morre em janeiro
de 1919, e uma eleição fora de época é convocada.
Entre as vítimas ilustres, também figura Olympio Nogueira,
estrela do teatro e da música no Rio, bem no auge da carreira.
— Todas as classes, desde os humildes trabalhadores até
aqueles que gozam do maior conforto na vida, foram alcançados pelo flagelo
terrível, que bem parece universal — constata o deputado Sólon de Lucena. —
Dir-se-ia que a morte, não satisfeita com a larga messe de vidas ceifadas nos
campos de batalha europeus, quis, na sua ânsia de domínio, estender até nós os
seus tentáculos.
Lucena (avô de Humberto Lucena, que seria senador nas
décadas de 1980 e 1990) se refere à Primeira Guerra Mundial. Em outubro e
novembro de 1918, as manchetes dos jornais brasileiros se alternam entre a
gripe espanhola no país e as negociações de paz na Europa. É justamente o vaivém
de soldados que faz o vírus mortal tocar todos os cantos do planeta.
Em todo o Brasil, os hospitais estão abarrotados. As escolas
mandaram os alunos para casa. Os bondes trafegam quase vazios. Das alfaiatarias
às quitandas, das lojas de tecido às barbearias, o comércio todo baixou as
portas — à exceção das farmácias, onde os fregueses disputam a tapa pílulas e
tônicos que prometem curar as vítimas da doença mortal.
— Nos subúrbios do Rio de Janeiro, as ruas ficam cheias de
cadáveres porque as famílias ficam com medo de serem infectadas pelos mortos
dentro de casa. Além disso, a medida facilita o trabalho de remoção das
carroças da limpeza pública — explica a médica e historiadora Dilene do
Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz.
Os parlamentares apresentam uma série de projetos de lei com
o objetivo de, em diferentes frentes, combater a doença e amenizar seus
efeitos. Uma das propostas determina a aprovação automática de todos os
estudantes brasileiros, sem a necessidade dos exames finais.
Citando sua própria experiência como professor da Escola
Politécnica (atual escola de engenharia da UFRJ), o senador Paulo de Frontin
defende o projeto:
— O momento em que se exige do estudante o máximo esforço
são os últimos três meses do ano letivo, quando ele se prepara para o exame
final. Exatamente nessa época, grande parte dos alunos foi atacada pela
epidemia reinante e muitos falecerem. Na Escola Politécnica, choramos a perda de
mais de um. Aqueles que se salvaram estão em uma convalescença que se pode
considerar longe de ser completa.
O senador Mendes de Almeida (MA), dono da Escola Técnica de
Comércio Cândido Mendes (hoje Universidade Cândido Mendes), no Rio, acrescenta:
— Só na minha escola, mais de 35 professores não têm podido
dar as suas aulas por motivo de saúde.
Como 1918 já está chegando ao fim, o presidente interino
Delfim Moreira acha mais prudente não esperar as votações do Senado e da Câmara
e baixa em dezembro um decreto batendo o martelo de uma vez: aluno nenhum
repetirá o ano letivo.
Em outra linha, o deputado Celso Bayma (SC) redige um
projeto de lei ampliando em 15 dias o prazo para o pagamento das dívidas que
vencem em plena epidemia. De acordo com ele, a moratória é necessária porque
muitos comerciantes baixaram as portas, deixaram de lucrar e, por tabela,
ficaram impossibilitados de honrar seus compromissos com bancos e outros
credores.
— Os que vivem estes dias angustiosos sabem que a capital do
país [Rio] tem necessidade de feriados, o mesmo sucedendo com a praça de São
Paulo. Por esse meio, poderão os negociantes encobrir a situação aflitiva em
que se encontram — acrescenta Bayma, sem, contudo, conseguir a aprovação do
projeto.
Faltam estatísticas confiáveis a respeito das vítimas no
Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que a epidemia é avassaladora. O gráfico
de óbitos anuais da cidade de São Paulo mostra um salto gritante quando chega
1918. Num único dia, o Rio chega a registrar mil mortes.
A devastação também pode ser dimensionada pelas ausências na
eleição para o Senado ocorrida apenas na cidade do Rio em novembro de 1918. A
capital tem 36 mil eleitores registrados, mas apenas 5 mil vão às urnas. Na
eleição presidencial de oito meses antes, como comparação, 22 mil cariocas
votaram.
— A eleição de senador foi uma eleição sem eleitorado. Tanto
vale dizer, não foi uma eleição — critica o senador Francisco Sá (CE),
tentando, sem sucesso, anular a votação.
O Governo proíbe as aglomerações públicas. Os teatros e os
cinemas, além de lacrados, são lavados com desinfetante. Pela primeira vez, as
pessoas ficam proibidas de ir aos cemitérios no Dia de Finados — não só para
evitar as multidões, mas também para impedir que se veja o estoque de corpos
insepultos.
— O que vemos são acontecimentos funestos, uma verdadeira
hecatombe — resume o deputado Azevedo Sodré (RJ).
Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos
que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água
tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela.
A procura é tão grande que as farmácias se aproveitam da situação e levam os
preços às alturas. No Rio, a prefeitura reage tabelando o preço dos remédios.
Na cidade de São Paulo, a população em peso recorre a um
remédio caseiro: cachaça com limão e mel. Em consequência, o preço do limão
dispara, e a fruta some das mercearias. De acordo com o Instituto Brasileiro da
Cachaça, foi dessa receita supostamente terapêutica que nasceu a caipirinha.
Coincidência ou não, uma das peças de maior sucesso em São Paulo em 1918 se
chama A Caipirinha.
— A verdade é que a gripe não tem cura — diz o médico Lybio
Martire Junior, presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. —
Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica
apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Até hoje é assim. Basta
lembrar os primórdios da Aids.
Os pobres ao deus-dará
A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em
termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é
raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas
delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência
à população carente são instituições de caridade, como as santas casas e a Cruz
Vermelha.
— As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias
pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância
do vírus — conta o historiador Leandro Carvalho, professor do Instituto Federal
de Goiás e autor de dois estudos sobre a epidemia de 1918.
Dada a multidão que morre todos os dias, começa a correr no
Rio a história de que a Santa Casa de Misericórdia, para abrir novos leitos,
acelera a morte dos doentes em estado terminal. Isso se daria por meio de um
chá envenenado administrado aos pacientes na calada da noite. Nasce, assim, a
lenda do “chá da meia-noite”. Os jornais apelidam o hospital de “Casa do
Diabo”.
O deputado Azevedo Sodré fica indignado com a campanha de
difamação:
— O povo, não sabendo a quem incriminar pela desgraça que o
ferira e pelo abandono em que se achou, revoltou-se contra a Santa Casa de
Misericórdia, que representa quase toda a assistência pública desta capital. O
povo parece não saber que a Santa Casa, afora um subsídio pequeno que lhe
concede o governo, vive do favor do público, desse espírito de filantropia tão
vivo no seio da nossa população.
No auge da crise, prefeitos e governadores se dão conta de
que não podem permanecer de braços cruzados. Com certo atraso, distribuem
remédios e alimentos, improvisam enfermarias em escolas, clubes e igrejas e
convocam médicos particulares e estudantes de medicina.
No âmbito federal, o que existe é a Diretoria-Geral de Saúde
Pública, subordinada ao Ministério da Justiça, mas com atuação bastante tímida,
cuidando apenas da barreira sanitária dos portos e da higiene da capital do
país.
O deputado Sodré afirma que a culpa da epidemia não é da
Santa Casa, mas sim da Diretoria-Geral da Saúde Pública, por ter subestimado as
notícias da gripe espanhola no exterior e não ter imposto quarentena aos navios
vindos de fora, como o Demerara.
— Mesmo dias depois, ao irromperem os primeiros casos no
Brasil, reinava em nossa repartição sanitária a mesma ignorância máxima.
Presenciamos uma quase falência dos nossos serviços de higiene e assistência
públicas.
Sodré, então, apresenta um projeto de lei que promoveria a
diretoria a Ministério da Saúde Pública.
— Salvemos ao menos as aparências. Se ao Governo não sorri a
ideia de um Ministério da Saúde Pública, que nos diga o que pretende fazer,
para que nós, o Congresso Nacional, inteirados do seu desejo, nos movamos,
discutamos e resolvamos consoante as nossas funções no sistema representativo
que rege o país.
Apesar dos apelos, o projeto não avança. De qualquer forma,
o susto da gripe espanhola faz o Governo se mexer. Um ano mais tarde, na virada
de 1919 para 1920, o Congresso Nacional aprova e o presidente Epitácio Pessoa
sanciona uma decisiva reforma na estrutura federal de saúde.
A acanhada diretoria cresce, ganha responsabilidades e é
rebatizada de Departamento Nacional de Saúde Pública. O novo departamento atua
no combate à lepra, à tuberculose, à malária e às doenças venéreas. O escopo
agora é nacional.
Assim, de forma indireta, a gripe espanhola planta tanto a
semente do Ministério da Saúde, que surgirá em 1930 (como Ministério dos
Negócios da Saúde e da Educação Pública), quanto a do Sistema Único de Saúde
(SUS), que será previsto na Constituição de 1988.
Do mesmo modo abrupto com que chega ao Brasil, a gripe
espanhola desaparece repentinamente. Em dezembro, já são raros os contágios.
Foram tantas as pessoas infectadas entre setembro e novembro que o vírus
praticamente não tem mais a quem atacar.
Enfim terminado o filme de terror, os cariocas usam o
Carnaval de 1919 como forma de exorcizar o fantasma da gripe espanhola. O Rio
assiste, nos bailes e nos blocos de rua, àquela que talvez seja a folia mais
desenfreada de que se tem notícia na cidade. Das marchinhas aos carros
alegóricos, o tema da festa é um só: o “chá da meia-noite” — que não bota medo
em mais ninguém
No Carnaval de 1919, os cariocas caem na folia em blocos e
bailes que têm como
tema o "chá da meia-noite", símbolo da
recém-desaparecida
epidemia de gripe espanhola (imagens: 'Careta'/Biblioteca
Nacional)
A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da
seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência
Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Com pesquisa do Arquivo do Senado.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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