domingo, 2 de fevereiro de 2020

O filósofo que disse sim ao amor livre e não à guerra

Imagem - Juan Colombato 

Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASILE, em 1 de fevereiro de 2020

O filósofo que disse sim ao amor livre e não à guerra

O pensador britânico Bertrand Russell sempre andou na contracorrente, e suas ideias de abertura foram qualificadas como lascivas e perigosas. Hoje sua morte completa 50 anos

Por Francesc Arroyo 

Bertrand Russell (1872-1970), figura central da filosofia do século XX, não foi um homem unidimensional. Além do conhecimento, preocupavam-no também os assuntos políticos e sociais de sua época. Dedicou os últimos anos de sua vida a combater as armas nucleares, impulsionar o Tribunal contra os Crimes de Guerra e se opor à intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. Seu ativismo antibelicista e feminista, aliás, lhe causou muitos problemas: foi preso duas vezes (1918 e 1961), expulso do Trinity College, em Cambridge, e acusado de lascívia e inclusive de indução ao suicídio. Não lhe importava: respondia só à sua consciência.

Foi um livre-pensador. Em 1920, viajou à Rússia e conheceu Lênin, que o decepcionou. De volta, não poupou críticas ao novo regime comunista, o que não implicava elogios ao Ocidente. Quando questionado sobre o que tinha contra o “mundo livre”, respondeu imediatamente: “Que não é livre”.

E foi um pensador muito precoce. Ainda adolescente, iniciou uma pesquisa sobre três questões que o afligiam: Deus, a imortalidade e o livre-arbítrio. Concluiu que “não havia razões para acreditar” em nenhuma delas.

O amor livre e a luta contra o rigor da moralidade imperante marcaram sua trajetória. Em 1957, o bispo de Rochester lhe escreveu: “Em seu livro, Casamento e Moral, não se podem ocultar as patas fendidas da lascívia (…). Às vezes devem acossá-lo lembranças de assassinatos, suicídios e a incalculável dor causados pelos experimentos de jovens unidos fora do matrimônio”. Não foi a única crítica. Mas muito do que atribuíam a ele não constava no livro. Ele de fato defendia a igualdade de direitos (políticos e sexuais) entre homens e mulheres, e qualificava como “superstição cristã” a ideia de que o sexo fosse impuro, herança, dizia, de Paulo de Tarso: “Se não tiverem o dom da continência, casem-se. Pois mais vale se casar do que se abrasar”. Acrescentava que a ética cristã degrada a mulher, que tinha começado a ser livre ao decair a noção de pecado, ajudada pelos anticoncepcionais e sua incorporação ao trabalho, que lhe dava independência. Propunha a educação sexual e aprofundar a igualdade: “Manter o antigo exige que a educação das jovens procure torná-las estúpidas, supersticiosas e ignorantes; requisito cumprido pelas escolas onde a Igreja intervém”, porque “a ignorância nunca pode fomentar a conduta reta, nem pode o conhecimento estorvá-la”. Além disso, sugeria os “casamentos de teste” e defendia que as relações extraconjugais não causavam dano a ninguém.

Casamento e Moral saiu em 1929 e foi um sucesso. Mas lhe causou mil problemas, sobretudo nos Estados Unidos, aonde viajou em 1938 e onde teve que ficar, forçado pela guerra. Ia ministrar um curso na Universidade de Chicago e pensava intitulá-lo As Palavras e os Fatos, conectando com a perspectiva do atomismo lógico, que sugeria analisar os problemas filosóficos decompondo-os em seus elementos linguísticos mínimos. O título pareceu claro demais para a academia e foi rebatizado como Correlação entre Hábitos Motrizes Orais e Somáticos. O reitor da Universidade, um neotomista, não gostava dele e não renovou seu contrato.

Tampouco foi bem acolhido na Universidade da Califórnia. Já se via sem renda (a guerra o impedia de receber dinheiro do Reino Unido) quando lhe apareceu um convite do City College de Nova York. Sua chegada à instituição provocou um protesto maciço de clérigos católicos. A mãe de uma aluna (não matriculada nas classes de Russell) queixou-se alegando que sua presença era “perigosa para a virtude de sua filha”. Perante o tribunal, suas obras foram descritas como “lascivas, libidinosas, luxuriosas, venéreas, erotomaníacas, afrodisíacas, irreverentes, parciais, falsas e privadas de fibra moral”. Sem trabalho, se pôs a escrever a História da Filosofia Ocidental e sobreviveu graças a uma antecipação pela obra.

O laicismo lhe chegou quase por herança. Quando ficou órfão, aos quatro anos, descobriu-se que seu pai, visconde de Amberley, tinha deixado estabelecido que não fosse educado pela família, e sim por outras pessoas, que eram ateias e poderiam protegê-lo dos “males de uma formação religiosa”. Os avós ameaçaram mover uma ação judicial, o que inclinou os tutores a lhes ceder a custódia.

Ainda adolescente, decidiu que o casamento era nefasto, e que o racional era o amor livre. Corria o final do século XIX. Descobriu o sexo e a masturbação, uma prática que manteve até os anos 20, quando se apaixonou por Alys Pearsall Smith, que seria sua primeira esposa. Naqueles anos já trabalhava nos três volumes de Principia Mathematica, que seria publicado entre 1910 e 1913, escritos conjuntamente com Alfred North Whitehead. Com eles iluminaram a filosofia analítica, uma das principais correntes do século XX.

O casamento, dizia, lhe forneceu estabilidade. Mais tarde, recomendaria a seus alunos (homens e mulheres) a convivência pré-matrimonial para escapar das premências sexuais da idade. Com Pearsall cobria uma de suas paixões (“a ânsia de amor”) e podia se dedicar às outras duas: “A busca pelo conhecimento e a piedade pelo sofrimento da humanidade”.

Sua atividade filosófica ficou às vezes subordinada à política. Mesmo assim, sua influência aumentava, com a ajuda do Círculo de Viena, que impulsionou a análise linguística como método para abordar (e dissolver) os problemas filosóficos. Também de um de seus discípulos: Ludwig Wittgenstein, cujo Tractatus prefaciaria, facilitando sua publicação. Russell o descreve como “apaixonado, profundo, intenso, dominante”. Um dia, Wittgenstein lhe perguntou: “Você acha que sou um perfeito idiota?”. “Por que você quer saber?”, respondeu Russell. “Se eu for, virarei aviador; se não, vou me tornar filósofo”, disse o discípulo.

Encabeçou um manifesto contra as armas nucleares assinado com Albert Einstein
Pearsall o acompanhou em suas campanhas pela igualdade das mulheres, mas a relação entre ambos já tinha decaído quando ele se tornou objetor contra a participação inglesa na Primeira Guerra Mundial. Sua atividade foi incessante: escreveu cartas e manifestos, participou de comícios e sugeriu que a função do exército era mais sufocar revoltas operárias do que defender as fronteiras contra um hipotético inimigo. Por isso foi acossado pelos belicistas e até por mulheres que criticavam seu feminismo militante. O Departamento de Guerra o considerou perigoso e o proibiu de se aproximar da costa, para que não se comunicasse com submarinos alemães. Finalmente, foi condenado a seis meses da prisão e expulso do Trinity College, embora tenha sido readmitido em 1944. Anos mais tarde, recordaria sua temporada na prisão como prazerosa, dedicado à leitura e à escrita, e visitado pela ativista Dora Black, que seria sua segunda esposa, e por sua amante naqueles anos, Colette O’Neil.

Embora Black fosse contrária ao casamento, eles se casaram em 1921, pouco antes do nascimento de seu primeiro filho: John Conrad. O segundo nome aludia a seu amigo Joseph Conrad. Pouco depois nasceu uma menina, Kate, e surgiu um problema: nenhuma escola era satisfatória. O casal decidiu fundar uma que fosse livre, mas acabou sendo um desastre. “Muitos dos princípios que regiam a escola eram errôneos. Um grupo de crianças não pode ser feliz sem uma certa medida de ordem e rotina”, porque “deixá-las em liberdade era estabelecer o reino do terror em que os fortes faziam sofrer os fracos. Uma escola é como um mundo: só o Governo pode evitar a brutalidade e a violência”, escreveu Russel em sua autobiografia.

Em 1944, ele pôde deixar os EUA e voltar à Inglaterra, onde já não era tão mal visto, e em 1950 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura (!) sem ter publicado nenhuma obra de ficção. Estimulado pelo prêmio, reelaborou alguns contos e os publicou num livro.

Russel se opôs à Primeira Guerra Mundial, mas não à Segunda. Achava que enfrentar o nazismo era uma obrigação moral. Odiava nazistas e fascistas na mesma medida. Em 1922, não pôde viajar à Itália para um congresso de filosofia. Mussolini anunciou que nada lhe aconteceria, mas qualquer italiano que falasse com ele seria morto.

Tentou convencer as autoridades de Israel a reverem a situação dos palestinos

Terminada a guerra, Russell se mobilizou contra as armas atômicas e a favor de um Governo mundial, convencido de que outro confronto não deixaria vencedores nem vencidos. Em 1955, foi publicado um manifesto contra as armas nucleares encabeçado por sua assinatura e pela de Albert Einstein. Considerava que a mera exposição do perigo bastaria para abrir os olhos das pessoas. Isso não aconteceu, o que o levou a pensar que “havia descoberto um fato político”, que “possivelmente” as pessoas preferem morrer a verem vivos os seus inimigos. Uma reflexão que o incitou a combater os nacionalismos e propor que todas as armas ficassem sob o controle de um Governo mundial.

A crise dos mísseis de Cuba acentuou a consciência de que era preciso se mover em todas as direções. Ele então escreveu aos Governos envolvidos e tentou provocar mobilizações com pouco sucesso. Paralelamente, procurou convencer Israel a revisar a situação dos palestinos. O resultado de toda essa atividade foi a criação da Fundação Russell para a Paz, à qual se dedicou até o limite de suas forças. Também se opôs à Guerra do Vietnã e a qualquer violação dos direitos humanos, participando, ao lado de Jean-Paul Sartre, do Tribunal contra os Crimes de Guerra.

Uma das consequências dessa iniciativa foi a sua segunda entrada na prisão (desta vez, só por uma semana) acusado de desobediência civil. Tinha 88 anos. Foi acompanhado, tanto na desobediência como na condenação, por sua quarta esposa, Edith Finch, com quem viveria até a morte. Pouco antes, escreveu que estava convencido de que, por mais desastroso que parecesse o presente, “a melhor parte da história humana não reside no passado, mas no futuro”.

Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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