Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 11 de janeiro de 2020
Ricos e pobres, cada vez mais separados
Mais abastados tendem a morar em bairros separados da
confusão da grande cidade enquanto os menos felizardos enfrentam condições
pós-apocalípticas de poluição e superpopulação
Por Sergio C. Fanjul
Nas cidades as pessoas diferentes vivem em locais
diferentes: se chama segregação urbana. A segregação pode ocorrer por diversos
motivos, como a etnia e os estilos de vida, mas o fator mais importante é o
econômico. Os que têm mais dinheiro podem escolher onde moram, para os mais
pobres a escolha não é tão ampla. Os primeiros moram em bairros melhores, com
melhores serviços, melhor construção e qualidade ambiental. Os pobres precisam
se resignar a morar em bairros onde tudo é um pouco mais precário e até a expectativa
de vida alguns anos menor. A influência da segregação residencial na trajetória
vital das pessoas se chama “efeito bairro”, muitas vezes traduzido em fracasso
escolar, desigualdade e falta de oportunidades.
Estudos e especialistas dizem que a segregação aumenta, em
correlação às crescentes desigualdades provocadas pelo modelo econômico
vigente, o que pode provocar problemas nas megacidades para as quais nos
dirigimos. As Nações Unidas preveem que 68% da população morará em cidades em
2050, na Espanha 80% já estão nelas. As cidades são e serão os cenários dos
conflitos sociais presentes e futuros.
O chamado “efeito bairro” influencia na longevidade, no
fracasso escolar e na falta de oportunidades
“Os ricos e pobres estão morando em distâncias crescentes
uns dos outros, e isso pode ser desastroso à estabilidade social e ao poder
competitivo das cidades”, diz um estudo realizado durante a primeira década
deste século por várias universidades europeias (Socio-Economic Segregation in
European Capital Cities). Entre as causas estão a globalização, a
reestruturação do mercado de trabalho, a diferença de renda, a decadência do
Estado de bem-estar social e a mercantilização da moradia. A gentrificação e a
turistificação são, além disso, processos que contribuem a essa separação entra
as pessoas que, de acordo com suas condições vitais, deixam de conviver com
outros grupos diferentes. Se o interessante das cidades era sua condição de
caldo de pessoas e culturas, essa característica pode estar chegando ao seu
fim.
A centrífuga urbana
As coisas nem sempre foram assim. Na segunda metade do
século XIX, como lembra o sociólogo Richard Sennett em seu recente ensaio
Construir e Habitar, os edifícios, por mais imponentes que fossem, podiam
abrigar oficinas no térreo, depois andares nos quais morava a burguesia e os
andares mais altos, que eram piores e menores, em que moravam trabalhadores
humildes. Havia contato entre as classes sociais, a segregação ocorria no
próprio edifício, nem tanto em escala urbana. Mas com a chegada dos
transportes, como o bonde, já não era preciso que as classes populares morassem
junto com as mais abastadas. A produção industrial as levou à periferia: “A
cidade operava como uma centrífuga que separava especialmente as classes”,
escreve Sennett. O elevador (físico, não social) permitiu que os ricos morassem
em andares altos sem a necessidade de subir escadas. E agora estão na moda as
coberturas de luxo, coisa à época impensável.
Por que a segregação urbana não é desejável? Além das razões
relacionadas com a justiça social, existem outras: “A segregação é prejudicial
do ponto de vista da inovação, as cidades muito segregadas expulsam os
trabalhadores que não podem viver nelas e têm dificuldades para crescer no
futuro”, diz Esteban Moro, pesquisador da Universidade Carlos III de Madri e do
MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts). A aglomeração da diversidade
humana nas primeiras cidades, há 7.500 anos, afirma o ensaísta científico
Steven Johnson em seu livro De Onde Vêm as Boas Ideias, foi o que acelerou o
processo de inovação com invenções simultâneas como o alfabeto, a moeda, a
pavimentação, a roda e a navegação. “Além disso, a segregação impede que
algumas pessoas vejam os problemas das outras, e assim é difícil que se peça
uma redistribuição da riqueza. As pessoas de rendas mais altas podem chegar a
se opor às políticas sociais”, acrescenta Moro.
De fato, o contato traz o carinho e a segregação o anula. De
acordo com as pesquisas em neurociência social de Lasana Harris, da
Universidade de Duke, e Susan Fiske, de Princeton, (citadas pela jornalista
Marta Peirano em seu recente livro O Inimigo Conhece o Sistema), quando não
temos contato com outros grupos perdemos a capacidade de empatizar com eles, e
até se desativam as áreas cerebrais que se ocupam da compreensão e da
identificação. Desumanizamos os diferentes e os preconceitos aparecem.
O fenômeno da segregação pode ser desastroso à estabilidade
social
É verdade que o bairro em que moramos é importante, mas
também é verdade que passamos até 80% de nosso tempo fora de casa, de modo que,
como Moro descobriu analisando dados obtidos de celulares através de técnicas
de big data, os lugares que frequentamos durante o dia também são importantes.
É o que demonstra o projeto Atlas da Desigualdade que o pesquisador desenvolve
no MIT MediaLab, em que analisa outros fatores da segregação além do local de
residência em algumas cidades dos Estados Unidos. Por exemplo, a segregação
também ocorre em lojas e restaurantes, em bares, em cabeleireiros, em shoppings,
os “terceiros lugares” (cada vez mais relacionados com o consumo, e em
decadência em relação às relações digitais) que não são o domicílio e o
trabalho. Os ricos e os pobres não frequentam os mesmos.
Distopias segregadas
Os ricos partiram e agora vivem em um satélite artificial,
longe da superfície terrestre em que os menos felizardos enfrentam condições
pós-apocalípticas de poluição e superpopulação. No satélite dos abastados, por
outro lado, a água é abundante, o ar está limpo e se vive com todas as
comodidades. Isso ainda não passou à realidade, mas é o enredo do filme de
ficção científica Elysium ((Neill Blomkamp, 2013) que se passa no ano de 2154.
Um retrato da segregação levado ao extremo.
Mas, ainda que pareça extremo, um fenômeno não muito
diferente está acontecendo sobre a superfície do planeta. As chamadas gated
communities aumentam, principalmente nos países mais desiguais: bairros
fechados em que os privilegiados moram cercados de muros, câmeras de vigilância
e aproveitando seus próprios serviços. Outro filme retrata uma dessa
comunidades, Zona do Crime (Rodrigo Plá, 2007). E indo ainda mais além, onde a
realidade iguala a ficção: o movimento seasteading, apoiado por papas do Vale
do Silício como Peter Thiel, cofundador do PayPal, pretende criar utopias
anarcocapitalistas para ricos em ilhas artificiais (e paraísos fiscais) nas
águas do Taiti, não sem escândalo, como denuncia o documentário The
Seasteaders, de Jacob Hurwitz-Goodman e Daniel Keller.
Madri é a capital mais segregada da Europa e a segunda mais
desigual, segundo um estudo
Na Espanha, Madri e Barcelona também são amostras de
segregação. Em Madri a segregação ocorre notoriamente no eixo norte-sul: na
parte noroeste, salvo exceções, estão as rendas mais altas; os tradicionais bairros
operários (Vallecas, Usera, Carabanchel etc.) estão abaixo do rio Manzanares,
no sudeste. “Na parte norte está o privilégio, no sul a vulnerabilidade”, diz o
sociólogo Daniel Sorando, da Universidade Complutense de Madri, participante do
estudo pan-europeu citado. De acordo com a pesquisa, Madri é a capital mais
segregada da Europa e a segunda em desigualdade social. Em Barcelona, segundo
aponta o urbanista Oriol Nel·lo, do departamento de Geografia da Universidade
Autônoma de Barcelona, a segregação ultrapassa as divisas da capital catalã e
ocorre entre diferentes municípios: Sant Cugat del Vallès não é a mesma coisa
do que que Sant Adrià de Besòs.
Nesse tipo de capitais a força que separa as classes sociais
é maior, pela constante chegada de visitantes e trabalhadores, muitos deles
altamente qualificados, à procura de oportunidades em grandes empresas. A
socióloga Saskia Sassen (prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais 2013)
batizou esses nodos mundiais de capital e informação de “cidades globais” e,
ainda que muitos lugares queiram se transformar em globais, isso não
necessariamente beneficiará a maioria de seus habitantes.
O direito à cidade
A Nova Agenda Urbana das Nações Unidas, nascida de sua
reunião sobre a Moradia e o Desenvolvimento Sustentável Hábitat III, de 2016
(realizada a cada 20 anos), aponta a segregação como um dos grandes desafios
das cidades. E pela primeira vez coloca o direito à cidade, um conceito criado
pelo filósofo Henri Lefebvre e reivindicado posteriormente pelo geógrafo David
Harvey e diferentes movimentos sociais do século XXI.
“O direito à cidade fala das dimensões que permitem levar
uma vida digna”, diz um especialista
“As injustiças sociais se refletem em questões espaciais: a
segregação, a gentrificação, a especulação se manifestam no modo em que as
pessoas vivem”, diz Antonio Campillo, professor da Universidade de Murcia e
autor do recente ensaio Um Lugar no Mundo, Justiça Espacial e Direito à Cidade.
A precarização tem um componente fundamental, de acordo com o professor, na
falta de posse dos meios de vida mais básicos, como a moradia. “O direito à
cidade fala de todas as dimensões que permitem levar uma vida digna”, diz o
autor; “uma das coisas reivindicadas é a ordenação urbana com critérios de
justiça social e ambiental, e a promoção de políticas participativas para que a
população seja atora na vida da cidade: a cidade é de todos e é preciso fazê-la
entre todos”.
O que mais pode ser feito para aliviar a segregação? “São
necessárias políticas que não podem ser só locais, e sim supralocais e de
caráter transversal”, diz Nel·lo, “não somente melhorar o espaço público e a
acessibilidade, e sim todos os âmbitos da vida da população”. Entre as soluções
apresentadas está o investimento em educação, transporte público, mobilidade
social e urbanismo, regulamentar o mercado da moradia em áreas tensionadas com
preços de aluguel desorbitados, aumentar a moradia social e, principalmente,
misturá-la na cidade sem criar guetos. Nesse sentido, a Prefeitura de Barcelona
aprovou em 2018 um plano em que qualquer nova promoção imobiliária é obrigada a
incluir 30% de moradias acessíveis (as políticas de moradia da Prefeitura
receberam em junho o prêmio European Responsible Housing Award). Desse modo,
pessoas de diferentes estratos compartilharão escadas e empatizarão.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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