Publicado originalmente no site da revista TRIP, em 16 de
janeiro de 2020
Marcelo Gleiser e o Sentido da Vida
O físico, astrônomo e pesquisador fala sobre
espiritualidade, ateísmo, tecnologia e nosso futuro: “A natureza não dá a
mínima para a gente”
Por Eduardo Ribeiro
Desde criança, Marcelo Gleiser nutre uma curiosidade muito
grande pelos mistérios do universo. Questões sobre como surgiu tudo o que nos
rodeia, a origem da própria vida e a inquietude de querer saber se estamos
sozinhos no cosmo ocupavam e ainda ocupam sua mente. Ainda adolescente, com
cerca de 13 anos, ele conta ter descoberto que muitas dessas questões faziam
parte da ciência moderna. E foi assim que começou sua exploração pelos caminhos
da física e da astronomia. Em 1981, Gleiser se formou em física na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, fez mestrado na Universidade Federal
do Rio de Janeiro e doutorado no King’s College de Londres. Desde 1991, é
professor e pesquisador no Dartmouth College, nos Estados Unidos.
Para o intelectual brasileiro, hoje com 60 anos, a
espiritualidade e a ciência não são saberes opostos, como se convencionou
acreditar ao longo dos séculos. Ele defende, na verdade, que ambos os fatores
se complementam. Em março de 2019, em razão de suas reflexões acerca do tema,
foi a primeira personalidade brasileira contemplada com o Prêmio Templeton,
conhecido como o “Nobel da espiritualidade”, distinção que já foi recebida por
nomes como Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá.
Recentemente, lançou o livro O caldeirão azul: O universo, o
homem e seu espírito (Record), em que compila textos de sua autoria publicados
nos últimos anos em diversas mídias. Talvez este seja o melhor ponto de partida
para quem quer tomar primeiro contato com a vasta produção de Gleiser, já que
se trata de ensaios que dão generosa amostra de suas ideias sobre ciência e
espiritualidade, futuro da humanidade e do planeta e nossa relação com a
tecnologia, com uma tônica filosófica e social.
E foi sob esse prisma que, pouco antes de conduzir uma de
suas lives no YouTube, Marcelo Gleiser gentilmente reservou um tempo para
conversar com a Trip.
Trip. Os seus textos são elogiados por serem acessíveis ao
grande público. Essa sua maneira de abordar os assuntos científicos, éticos e
cosmológicos é produto intencional, planejado, ou apenas o seu jeito particular
de falar das coisas?
Marcelo Gleiser. É difícil separar as duas coisas. Diria que
meu jeito de explicar é algo natural e que vem da minha empatia em relação aos
que me escutam. Acho que isso é algo que me remete à minha adolescência, pois
sempre tive que estudar muito para ter sucesso, eu não era um daqueles caras
que sempre sabia tudo. Entendo, também, que as pessoas gostam de histórias e que,
ao contar a ciência como uma grande história, desperto o interesse delas.
No senso comum, sempre houve aquela noção de perfeição do
universo, mas você mostra, em suas obras, que nessa perfeição também há muita
desordem e assimetria. Nesse sentido, você diria que podemos tirar uma preciosa
lição de vida se aceitarmos que tudo o que acontece é para o bem, mesmo
tragédias e adversidades que enfrentamos no microcosmo de nossas realidades
pessoais? Acho que não existe um grande “plano”, para o bem ou para o mal,
especialmente arquitetado pela natureza ou, ainda mais vagamente, pelo destino.
As coisas acontecem, algumas planejadas por nós e outras de maneira acidental.
O essencial é como nos preparamos para isso e como reagimos quando temos que
encarar alguma dificuldade. No livro Criação imperfeita, argumento que a
imperfeição é a mola criadora da natureza. Vejo isso na gente também. Se
fossemos perfeitos, não teríamos a necessidade de criar e crescer. Se criamos
para o bem ou para o mal é uma escolha que nos remete ao mundo da ética, e aí o
que vale é a história e as intenções de cada um.
É possível rastrear as origens da necessidade que temos da
crença no divino? E não acreditar em Deus não seria antinatural para a espécie
humana, uma vez que o próprio ateísmo de Richard Dawkins e seus seguidores pode
ser considerado também uma forma de religião? Não há dúvida de que as origens
da religião vêm de nossos antepassados, que não podiam compreender as ações da
Natureza, tanto para o bem (a fertilidade das florestas e rios, por exemplo) ou
para o mal (tempestades, terremotos, vulcões). Viam as ações naturais como um
grande mistério impenetrável e associaram a ação de deuses a ele. Essa atração
pelo desconhecido é uma das características mais essenciais do ser humano;
todos nós, ateus ou crentes, somos atraídos pelo desconhecido. A questão de
“Deus” é mais complexa e depende do contexto cultural. O que, para nós no
Brasil, é a crença “natural” em um Deus bíblico, não faz sentido para os
bilhões de hindus e budistas pelo mundo, ou para os nativos da Amazônia ou da
Nova Zelândia. A natureza do divino é relativa, mas não a necessidade de crer.
O ateísmo mais radical a que você se refere — e existem várias gradações de
ateísmo — é, a meu ver, a crença na não crença. Portanto, é uma forma de fé, já
que não se pode eliminar a possibilidade da existência de uma ou mais divindades
no mundo. No máximo, podemos afirmar que não temos evidência da existência de
deuses, o que não é o mesmo de uma prova definitiva. Por isso me coloco como
agnóstico e não ateu.
Em sua avaliação, o impacto das tecnologias digitais nas
relações sociais tem sido mais positivo ou negativo? Tendo em vista que hoje já
conhecemos pessoas que se casam com bonecos e tantas coisas que caberiam num
roteiro de Black Mirror surgindo frequentemente em nossos assuntos diários,
você acha que o avanço da Inteligência Artificial, da realidade virtual e da
robótica, por exemplo, podem dar vazão ao desenvolvimento de comportamentos humanos
cada vez mais estranhos no futuro? Não há dúvida de que a tecnologia digital
está transformando o mundo, incluindo como as pessoas se comportam e se
comunicam. Existem aspectos tanto positivos como negativos disso, como quase
tudo. Em termos positivos, as pessoas ganham uma voz individual, uma presença
no mundo que não tinham no passado recente. Você tem sua presença no Instagram,
no YouTube e, de repente, pessoas no mundo inteiro te “conhecem”, ou podem
participar da sua vida de alguma forma. Por outro lado, isso leva a um grande
perigo, o de se viver em função dos outros, do que os outros pensam de você.
Não só as pessoas, mas os governos e empresas. A privacidade é perdida, e já é
manipulada para fins econômicos. Diria que existe, sim, uma ameaça aqui, a de
as pessoas perderem a capacidade de se relacionar de forma direta com as
outras, sem uma tela como intermediário. Outro problema é o tempo perdido em
frente das telas; livros ou atividades criativas, como tocar um instrumento,
ficam sendo secundárias aos celulares e videogames, aos vídeos no YouTube. Ou
seja, cresce a passividade das pessoas, que acabam sendo mais recipientes de
informação do que criadoras de informação. Os criadores de conteúdo são
pouquíssimos quando comparados aos que consomem os produtos. Quanto ao futuro,
muito provavelmente isso vai se exacerbar cada vez mais. O que é estranho para
nós da geração que tem um pé no passado analógico e outro no mundo digital,
para nossos filhos, é natural. O que realmente pega é como essa geração vai se
relacionar com a natureza. O meu medo é que não entendam o quanto dependemos
dela para sobreviver enquanto espécie. Não dá para sobreviver como no mundo
virtual, com muitas vidas e mundos imaginários. Temos esse aqui e só. Esse é um
problema bem mais urgente do que a possibilidade de uma IA tomar conta do
mundo.
“Não temos evidência da existência de deuses, o que não é o
mesmo de uma prova definitiva. Por isso me coloco como agnóstico e não ateu” ( Marcelo Gleiser).
A ciência é capaz de atestar a força do pensamento e de
técnicas de programação mental para conquistar objetivos materiais? Falo de
teorias que sugerem que riqueza, pobreza, saúde e doença, felicidade e
infelicidade estão associadas a bloqueios e desbloqueios mentais. Não acho que
tenha a ver. Obviamente, uma atitude positiva com relação à vida, uma força de
vontade grande para se ter sucesso, terão uma influência essencial na vida da
pessoa, independente de suas origens. Se você acha que vai fracassar, você vai
fracassar. Se você tem traumas que não enfrenta através de terapia, você terá
problemas de relacionamento. Mas isso é algo individual, subjetivo, e nada tem
a ver com uma influência cósmica. A Natureza não dá a mínima para a gente.
Recentemente, uma reportagem na revista Wired falou sobre um
grupo de ativistas usando realidade virtual para tentar conscientizar as
pessoas a respeito da tortura inerente ao que chamam de "agricultura
animal" — o confinamento e
reprodução de determinadas espécies somente para o abate na indústria alimentícia
— , o que inevitavelmente influencia na seleção natural, uma vez que a gerações
inteiras dessas espécies — bovinos, suínos e aves — não são dadas as chances de
lutar por sua vida, como aconteceria em um ecossistema equilibrado. Depois da
descoberta do cultivo e preparo de uma infinidade de alimentos naturais
extremamente nutritivos, continuar comendo carne, na opinião dos ativistas, é
um costume que só se justifica num “padrão Matrix de vida”, sendo que a grande
maioria dos humanos veem graça na “fofura” dos animais não humanos, mas
continuam se alimentando da morte desses seres. Que tipo de reflexão podemos
fazer sobre isso? Ótima pergunta! Vejo, no século 21, esse apetite insaciável
por carne animal como um atraso moral e, mais ainda, um verdadeiro genocídio.
São milhões e milhões de animais abatidos diariamente só no Brasil. Não temos o
direito de fazer isso com outras criaturas que têm uma razão de viver. Ademais,
em termos ambientais, não há nada de mais terrível do que a agropecuária. Se as
pessoas conseguissem ao menos reduzir o seu consumo de carne, o mundo se
transformaria radicalmente, incluindo o aquecimento global. E sugiro que os
restaurantes tenham parte da culpa, por oferecerem pouquíssimas (ou nenhuma)
opção vegetariana. As pessoas acham que a culinária vegetariana é ruim, o que é
uma grande bobagem. Se come muito bem sem consumir carne. E não consumir carne
é comprovadamente melhor para a saúde. Espero que o consumo de carne seja
encarado nas próximas décadas como foi o cigarro na década passada! Não entendo
como a Geração Z ainda come carne.
Ainda no gancho da pergunta anterior, qual é a sua visão a
respeito da chamada bioarte? Gente como o brasileiro Eduardo Kacs, que criou a
coelha transgênica fluorescente Alba, e que também traduziu um trecho da Bíblia
para código Morse, que, por sua vez, foi transformado em uma sequência de DNA
depois inserida em uma bactéria. Contanto que seja feita eticamente, e como um
ato criativo positivo sem o intuito de criar o sofrimento animal ou humano, não
vejo um problema com uma nova forma de expressão artística. O problema em
transformar um animal em uma nova criatura é que imediatamente este animal fica
isolado do processo de seleção natural e passa a ser uma curiosidade que serve
apenas ao propósito mesquinho dos humanos que o criaram. Qual o intuito de se
criar essa nova criatura? Essa é a questão que o bioartista deve responder.
“Existe a ameaça de as pessoas perderem a capacidade de se
relacionar de forma direta com as outras, sem uma tela como intermediário” (Marcelo Gleiser).
Não é de hoje que a ciência e o ambientalismo são
desacreditados e até minorizados por líderes políticos e de seitas. Mas, na era
da pós-verdade, assusta que ideias absurdas como terraplanismo e a negação dos
motivos comprovados de catástrofes ecológicas que já estamos testemunhando
encontrem tantos adeptos. Como é possível reverter esse quadro? O único modo de
reverter essa tendência absurda é expô-la ao ridículo. E isso só pode ser feito
quando pessoas com a autoridade real do saber se manifestam publicamente,
apresentando os erros dessas crenças e modismos caóticos. Acho que os
cientistas no Brasil e no mundo deveriam se manifestar mais publicamente sobre
isso, e as escolas deveriam discutir isso no currículo. Só a educação pode
combater o obscurantismo cultural.
Qual é o sentido da vida sob o prisma da ciência? A ciência
tem uma versão do sentido da vida que não é interessante em termos
existenciais. É se reproduzir e basta. Obviamente, o ser humano precisa de
muito mais do que isso e essa busca por sentido não é necessariamente uma
questão científica. A ciência impõe certos parâmetros nessa busca, mas a razão
dela é subjetiva e cultural. Cada um de nós precisa ter uma razão para acordar
todos os dias e ir para o mundo. Diria que o sentido da vida é viver uma vida
com sentido, buscando sempre a riqueza moral que justifica sua existência, e
que faça desse mundo um lugar melhor para os que te seguirem.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário