segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Marcelo Gleiser e o Sentido da Vida


Publicado originalmente no site da revista TRIP, em 16 de janeiro de 2020

Marcelo Gleiser e o Sentido da Vida

O físico, astrônomo e pesquisador fala sobre espiritualidade, ateísmo, tecnologia e nosso futuro: “A natureza não dá a mínima para a gente”

Por Eduardo Ribeiro

Desde criança, Marcelo Gleiser nutre uma curiosidade muito grande pelos mistérios do universo. Questões sobre como surgiu tudo o que nos rodeia, a origem da própria vida e a inquietude de querer saber se estamos sozinhos no cosmo ocupavam e ainda ocupam sua mente. Ainda adolescente, com cerca de 13 anos, ele conta ter descoberto que muitas dessas questões faziam parte da ciência moderna. E foi assim que começou sua exploração pelos caminhos da física e da astronomia. Em 1981, Gleiser se formou em física na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, fez mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado no King’s College de Londres. Desde 1991, é professor e pesquisador no Dartmouth College, nos Estados Unidos.

Para o intelectual brasileiro, hoje com 60 anos, a espiritualidade e a ciência não são saberes opostos, como se convencionou acreditar ao longo dos séculos. Ele defende, na verdade, que ambos os fatores se complementam. Em março de 2019, em razão de suas reflexões acerca do tema, foi a primeira personalidade brasileira contemplada com o Prêmio Templeton, conhecido como o “Nobel da espiritualidade”, distinção que já foi recebida por nomes como Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá.

Recentemente, lançou o livro O caldeirão azul: O universo, o homem e seu espírito (Record), em que compila textos de sua autoria publicados nos últimos anos em diversas mídias. Talvez este seja o melhor ponto de partida para quem quer tomar primeiro contato com a vasta produção de Gleiser, já que se trata de ensaios que dão generosa amostra de suas ideias sobre ciência e espiritualidade, futuro da humanidade e do planeta e nossa relação com a tecnologia, com uma tônica filosófica e social.

E foi sob esse prisma que, pouco antes de conduzir uma de suas lives no YouTube, Marcelo Gleiser gentilmente reservou um tempo para conversar com a Trip.

Trip. Os seus textos são elogiados por serem acessíveis ao grande público. Essa sua maneira de abordar os assuntos científicos, éticos e cosmológicos é produto intencional, planejado, ou apenas o seu jeito particular de falar das coisas?

Marcelo Gleiser. É difícil separar as duas coisas. Diria que meu jeito de explicar é algo natural e que vem da minha empatia em relação aos que me escutam. Acho que isso é algo que me remete à minha adolescência, pois sempre tive que estudar muito para ter sucesso, eu não era um daqueles caras que sempre sabia tudo. Entendo, também, que as pessoas gostam de histórias e que, ao contar a ciência como uma grande história, desperto o interesse delas.

No senso comum, sempre houve aquela noção de perfeição do universo, mas você mostra, em suas obras, que nessa perfeição também há muita desordem e assimetria. Nesse sentido, você diria que podemos tirar uma preciosa lição de vida se aceitarmos que tudo o que acontece é para o bem, mesmo tragédias e adversidades que enfrentamos no microcosmo de nossas realidades pessoais? Acho que não existe um grande “plano”, para o bem ou para o mal, especialmente arquitetado pela natureza ou, ainda mais vagamente, pelo destino. As coisas acontecem, algumas planejadas por nós e outras de maneira acidental. O essencial é como nos preparamos para isso e como reagimos quando temos que encarar alguma dificuldade. No livro Criação imperfeita, argumento que a imperfeição é a mola criadora da natureza. Vejo isso na gente também. Se fossemos perfeitos, não teríamos a necessidade de criar e crescer. Se criamos para o bem ou para o mal é uma escolha que nos remete ao mundo da ética, e aí o que vale é a história e as intenções de cada um.

É possível rastrear as origens da necessidade que temos da crença no divino? E não acreditar em Deus não seria antinatural para a espécie humana, uma vez que o próprio ateísmo de Richard Dawkins e seus seguidores pode ser considerado também uma forma de religião? Não há dúvida de que as origens da religião vêm de nossos antepassados, que não podiam compreender as ações da Natureza, tanto para o bem (a fertilidade das florestas e rios, por exemplo) ou para o mal (tempestades, terremotos, vulcões). Viam as ações naturais como um grande mistério impenetrável e associaram a ação de deuses a ele. Essa atração pelo desconhecido é uma das características mais essenciais do ser humano; todos nós, ateus ou crentes, somos atraídos pelo desconhecido. A questão de “Deus” é mais complexa e depende do contexto cultural. O que, para nós no Brasil, é a crença “natural” em um Deus bíblico, não faz sentido para os bilhões de hindus e budistas pelo mundo, ou para os nativos da Amazônia ou da Nova Zelândia. A natureza do divino é relativa, mas não a necessidade de crer. O ateísmo mais radical a que você se refere — e existem várias gradações de ateísmo — é, a meu ver, a crença na não crença. Portanto, é uma forma de fé, já que não se pode eliminar a possibilidade da existência de uma ou mais divindades no mundo. No máximo, podemos afirmar que não temos evidência da existência de deuses, o que não é o mesmo de uma prova definitiva. Por isso me coloco como agnóstico e não ateu.

Em sua avaliação, o impacto das tecnologias digitais nas relações sociais tem sido mais positivo ou negativo? Tendo em vista que hoje já conhecemos pessoas que se casam com bonecos e tantas coisas que caberiam num roteiro de Black Mirror surgindo frequentemente em nossos assuntos diários, você acha que o avanço da Inteligência Artificial, da realidade virtual e da robótica, por exemplo, podem dar vazão ao desenvolvimento de comportamentos humanos cada vez mais estranhos no futuro? Não há dúvida de que a tecnologia digital está transformando o mundo, incluindo como as pessoas se comportam e se comunicam. Existem aspectos tanto positivos como negativos disso, como quase tudo. Em termos positivos, as pessoas ganham uma voz individual, uma presença no mundo que não tinham no passado recente. Você tem sua presença no Instagram, no YouTube e, de repente, pessoas no mundo inteiro te “conhecem”, ou podem participar da sua vida de alguma forma. Por outro lado, isso leva a um grande perigo, o de se viver em função dos outros, do que os outros pensam de você. Não só as pessoas, mas os governos e empresas. A privacidade é perdida, e já é manipulada para fins econômicos. Diria que existe, sim, uma ameaça aqui, a de as pessoas perderem a capacidade de se relacionar de forma direta com as outras, sem uma tela como intermediário. Outro problema é o tempo perdido em frente das telas; livros ou atividades criativas, como tocar um instrumento, ficam sendo secundárias aos celulares e videogames, aos vídeos no YouTube. Ou seja, cresce a passividade das pessoas, que acabam sendo mais recipientes de informação do que criadoras de informação. Os criadores de conteúdo são pouquíssimos quando comparados aos que consomem os produtos. Quanto ao futuro, muito provavelmente isso vai se exacerbar cada vez mais. O que é estranho para nós da geração que tem um pé no passado analógico e outro no mundo digital, para nossos filhos, é natural. O que realmente pega é como essa geração vai se relacionar com a natureza. O meu medo é que não entendam o quanto dependemos dela para sobreviver enquanto espécie. Não dá para sobreviver como no mundo virtual, com muitas vidas e mundos imaginários. Temos esse aqui e só. Esse é um problema bem mais urgente do que a possibilidade de uma IA tomar conta do mundo.

“Não temos evidência da existência de deuses, o que não é o mesmo de uma prova definitiva. Por isso me coloco como agnóstico e não ateu” (Marcelo Gleiser).

A ciência é capaz de atestar a força do pensamento e de técnicas de programação mental para conquistar objetivos materiais? Falo de teorias que sugerem que riqueza, pobreza, saúde e doença, felicidade e infelicidade estão associadas a bloqueios e desbloqueios mentais. Não acho que tenha a ver. Obviamente, uma atitude positiva com relação à vida, uma força de vontade grande para se ter sucesso, terão uma influência essencial na vida da pessoa, independente de suas origens. Se você acha que vai fracassar, você vai fracassar. Se você tem traumas que não enfrenta através de terapia, você terá problemas de relacionamento. Mas isso é algo individual, subjetivo, e nada tem a ver com uma influência cósmica. A Natureza não dá a mínima para a gente.

Recentemente, uma reportagem na revista Wired falou sobre um grupo de ativistas usando realidade virtual para tentar conscientizar as pessoas a respeito da tortura inerente ao que chamam de "agricultura animal" —  o confinamento e reprodução de determinadas espécies somente para o abate na indústria alimentícia — , o que inevitavelmente influencia na seleção natural, uma vez que a gerações inteiras dessas espécies — bovinos, suínos e aves — não são dadas as chances de lutar por sua vida, como aconteceria em um ecossistema equilibrado. Depois da descoberta do cultivo e preparo de uma infinidade de alimentos naturais extremamente nutritivos, continuar comendo carne, na opinião dos ativistas, é um costume que só se justifica num “padrão Matrix de vida”, sendo que a grande maioria dos humanos veem graça na “fofura” dos animais não humanos, mas continuam se alimentando da morte desses seres. Que tipo de reflexão podemos fazer sobre isso? Ótima pergunta! Vejo, no século 21, esse apetite insaciável por carne animal como um atraso moral e, mais ainda, um verdadeiro genocídio. São milhões e milhões de animais abatidos diariamente só no Brasil. Não temos o direito de fazer isso com outras criaturas que têm uma razão de viver. Ademais, em termos ambientais, não há nada de mais terrível do que a agropecuária. Se as pessoas conseguissem ao menos reduzir o seu consumo de carne, o mundo se transformaria radicalmente, incluindo o aquecimento global. E sugiro que os restaurantes tenham parte da culpa, por oferecerem pouquíssimas (ou nenhuma) opção vegetariana. As pessoas acham que a culinária vegetariana é ruim, o que é uma grande bobagem. Se come muito bem sem consumir carne. E não consumir carne é comprovadamente melhor para a saúde. Espero que o consumo de carne seja encarado nas próximas décadas como foi o cigarro na década passada! Não entendo como a Geração Z ainda come carne.

Ainda no gancho da pergunta anterior, qual é a sua visão a respeito da chamada bioarte? Gente como o brasileiro Eduardo Kacs, que criou a coelha transgênica fluorescente Alba, e que também traduziu um trecho da Bíblia para código Morse, que, por sua vez, foi transformado em uma sequência de DNA depois inserida em uma bactéria. Contanto que seja feita eticamente, e como um ato criativo positivo sem o intuito de criar o sofrimento animal ou humano, não vejo um problema com uma nova forma de expressão artística. O problema em transformar um animal em uma nova criatura é que imediatamente este animal fica isolado do processo de seleção natural e passa a ser uma curiosidade que serve apenas ao propósito mesquinho dos humanos que o criaram. Qual o intuito de se criar essa nova criatura? Essa é a questão que o bioartista deve responder.

“Existe a ameaça de as pessoas perderem a capacidade de se relacionar de forma direta com as outras, sem uma tela como intermediário” (Marcelo Gleiser).

Não é de hoje que a ciência e o ambientalismo são desacreditados e até minorizados por líderes políticos e de seitas. Mas, na era da pós-verdade, assusta que ideias absurdas como terraplanismo e a negação dos motivos comprovados de catástrofes ecológicas que já estamos testemunhando encontrem tantos adeptos. Como é possível reverter esse quadro? O único modo de reverter essa tendência absurda é expô-la ao ridículo. E isso só pode ser feito quando pessoas com a autoridade real do saber se manifestam publicamente, apresentando os erros dessas crenças e modismos caóticos. Acho que os cientistas no Brasil e no mundo deveriam se manifestar mais publicamente sobre isso, e as escolas deveriam discutir isso no currículo. Só a educação pode combater o obscurantismo cultural.

Qual é o sentido da vida sob o prisma da ciência? A ciência tem uma versão do sentido da vida que não é interessante em termos existenciais. É se reproduzir e basta. Obviamente, o ser humano precisa de muito mais do que isso e essa busca por sentido não é necessariamente uma questão científica. A ciência impõe certos parâmetros nessa busca, mas a razão dela é subjetiva e cultural. Cada um de nós precisa ter uma razão para acordar todos os dias e ir para o mundo. Diria que o sentido da vida é viver uma vida com sentido, buscando sempre a riqueza moral que justifica sua existência, e que faça desse mundo um lugar melhor para os que te seguirem.

Texto e imagem reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário