A era dos intelectuais Nutella
Por Ademir Luiz
O suprassumo da representação que podemos desejar da
“inteligência coletiva” brasileira contemporânea seria uma reunião de Karnal,
Cortella, Barros Filho e Pondé no programa Encontro com Fátima Bernardes
Em uma cena do filme “As Invasões Bárbaras” (2003), do
cineasta Denys Arcand, um grupo de intelectuais conversa sobre a teoria de que
“a inteligência não é uma qualidade individual, como se costuma pensar. É um
fenômeno coletivo, nacional, intermitente”. Em seguida apresentam exemplos. O
primeiro é Atenas, ano 416 a. C., dia da estreia da peça “Electra”, de
Eurípedes. No anfiteatro estavam seus dois rivais, Sófocles e Aristófanes, e
também seus dois amigos, Sócrates e Platão. O segundo exemplo ocorreu em
Florença, Itália, no ano de 1504. Havia no Palazzo Vecchio duas paredes com
trabalhos de dois pintores. À direita, Leonardo da Vinci. À esquerda,
Michelangelo. Um aprendiz: Rafael. Um administrador: Maquiavel (quase caí na
tentação de fazer uma piadinha com as Tartarugas Ninjas). Terceiro exemplo:
Filadélfia, Estados Unidos, 1776 e 1789. Declaração da Independência e
Constituição dos Estados Unidos escrita por Adams, Franklin, Jefferson,
Washington, Hamilton e Madison. Acrescentaram: “nenhum outro país teve essa
sorte”.
É verdade, mas o Brasil também teve seus momentos. Por
exemplo: no Rio de Janeiro, na virada do século 19 para 20, tínhamos
frequentando os mesmos salões Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa.
Ou ainda: em São Paulo, na Semana de 22, Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade,
Anita Malfatti e Di Cavalcanti se trombavam pelos corredores do Teatro
Municipal. Nada mau, nada mau mesmo.
Jean-Paul Sartre, filósofo, romancista, editor
e dramaturgo existencialista
Porém, ai de nós, Brasil é sempre Brasil, e em 1967
reuniram-se a pimentinha Elis Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues e Geraldo
Vandré na inexplicável Marcha Contra a Guitarra Elétrica. A partir daí
começou-se a confundir produtores de entretenimento com intelectuais formadores
de opinião, com resultados cada vez mais inusitados.
No livro “Os Intelectuais”, o historiador inglês Paul
Johnson defende que essa casta de pessoas reconhecidas pela exibição de seus
conhecimentos em público, surgida no final do século 18, apareceu para
substituir os sacerdotes, escribas e adivinhos, com a diferença de que eles não
se propunham a interpretar a vontade dos deuses, mas a substituí-los. Os
intelectuais, ancorados em suas inteligências superiores, julgam-se capazes de
diagnosticar os males da sociedade e de apresentar propostas infalíveis de cura
e purificação. Figurões como Rousseau, Marx ou Tolstói acreditaram piamente que
sabiam o que é melhor para você, para mim, para todo mundo, e estavam dispostos
a sacrificar milhões de vidas humanas para provar seus pontos de vista, afinal,
não se faz omelete sem quebrar ovos, assim como não se salva a humanidade sem
expurgar dissidentes. Tudo isto armados apenas com pena, tinteiro, mata-borrão
e algumas ideias na cabeça.
Mas o mundo mudou. Escrever não suja mais os dedos. Canetas
esferográficas, dos mais variados preços, são produzidas em escala industrial.
Máquinas de escrever, que até recentemente eram supermodernas, tornaram-se
obsoletas, substituídas por computadores. Ainda temos pena, tinteiro e
mata-borrão, mas apenas para serem vendidos como decoração em antiquários
chiques. E ideias na cabeça? Ainda existem? Claro, mas precisaram se adaptar às
exigências fofas de novos tempos, tempos onde o cliente tem sempre razão.
Enfim, se houve uma época de ouro em que os intelectuais, como vilões de
desenhos animados, queriam dominar o mundo, hoje muitos de nossos intelectuais
existem apenas para te fazer feliz. Se vivemos em um planetinha dominado por
adolescentes Nutella, cantores sertanejos Nutella, jogadores de futebol
Nutella, políticos Nutella, astros pornô Nutella, engajados na Legião
Estrangeira Nutella, nada mais natural do que besuntarmos de chocolate nossos
intelectuais.
Não pensem que esse é um fenômeno exclusivamente nacional:
muito pelo contrário, vide os últimos livros de Bauman, que fizeram água, as
presepadas pseudocientíficas de Fritjof Capra ou mesmo as derradeiras bobagens,
publicadas unicamente para cumprir contrato, de Umberto Eco.
Clóvis de Barros Filho, o Ulisses do pensamento,
segundo
Leandro Karnal
Dito isto, depois das experiências da Grécia, de Florença,
da Filadélfia e mesmo do Rio de Janeiro e São Paulo antigos, o suprassumo da
representação que podemos desejar da “inteligência coletiva” brasileira
contemporânea seria uma reunião de Leandro Karnal, Mário Sérgio Cortella,
Clóvis de Barros Filho e Luiz Felipe Pondé no simulacro de sofá da Hebe que é o
programa Encontro com Fátima Bernardes, na programação matutina da Globo.
Esclarecimento importante é com relação à ausência de figuras femininas na
lista. A filósofa Márcia Tiburi caminhava para participar da confraria, mas,
infelizmente, perdeu o bonde da história e, por consequência, do mercado.
Tornou-se uma “intelectual orgânica”, segmentando excessivamente seu escopo de
atuação. Mas vou parar por aqui, para não correr o risco de ser acusado de
fascista.
É fato incontestável que o citado quarteto fantástico forma
a elite do atual pensamento tupiniquim, publicando livros, concedendo
entrevistas, escrevendo colunas em jornais e revistas, fazendo participações no
rádio e na televisão, dando “aulas-espetáculo”, para usar a expressão do finado
Ariano Suassuna. Sempre com humor, performances teatrais e muita informação
disponível na Wikipédia. Cada um deles possui pelo menos cinco ou seis vídeos
que viralizaram no Youtube. Todo mundo se sente mais inteligente ao assisti-los
e considera que está fazendo um grande bem para a difusão da cultura quando os
espalha pelos grupos do Zap Zap. É justo, afinal Karnal, Cortella, Clóvis e
Pondé não são queimados como Lair Ribeiro ou Augusto Cury. Ninguém com ensino
médio completo precisa se envergonhar de ler seus livros em público. Eles não
falam de anjos cabalísticos como Mônica Buonfiglio, mas dissertam sobre
assuntos sérios e profundos, como filosofia, história, sociologia, astrofísica
e javanês. São acadêmicos diplomados, respeitados, com assessoria de imprensa e
Currículos Lattes atualizados. São os senhores dos anéis de doutor!
Os mais críticos podem afirmar que eles confirmam a “Teoria
do Medalhão” daquele famoso conto do Machado de Assis, que representam o
fascínio brasileiro pelo bacharelismo denunciado por Sérgio Buarque de Holanda
ou que são meros autores de autoajuda. Injustiça! Talvez os epítetos mais
corretos fossem “divulgadores científicos” ou “vulgarizadores do conhecimento
erudito”. Não são Paulos Coelhos com diploma, embora suas obras mais populares
não ajudem a dissipar tal impressão. Afinal, como criticar quem pense isto ao
ver na vitrine de uma livraria títulos como “Crer ou Não Crer”, parceria entre
Karnal e o padre galã Fábio de Melo, ou “A Vida que Vale a Pena ser Vivida”,
parceria de Clóvis Filho com Arthur Meucci, ou ainda “Viver em Paz Para Morrer
em Paz”, de Cortella?
Mário Sergio Cortella, o profeta da humildade
Não tenho dúvidas de que a maioria das críticas seja
motivada por inveja. Esta é a verdade. Qual acadêmico não gostaria de estar no
lugar deles? Quem não gostaria de receber altos cachês para fazer comédia stand
up “inteligente”, tomar café da manhã com a Ana Maria Braga ou participar do
júri da Dança dos Famosos do Faustão (Cortella deu nota dez para todos os
participantes)? Convenhamos, é bem melhor do que entregar panfletos na rua como
fazia Sartre (que também adorava uma mídia) ou ser mandado para a Sibéria por
crime de pensamento.
Na dúvida, não pense. Ou melhor, pense o que já foi pensado
e aprovado. O prestígio é o mesmo. Em tempos de Google, um verniz cultural
produz o mesmo efeito que erudição chata e palavrosa. Ao contrário do que
aparece no filme de Woody Allen, o verdadeiro Marshall McLuhan nunca estará na
fila do cinema, ou na mesa de bar, ou na sala de bate-bate na internet, para
atestar seus equívocos. Se alguém o acusar de não ser inteligente, acuse-o de
volta de ser xenófobo, racista, sexista ou a mais infalível das acusações: de
ser fascista (beijo, Marcinha!). Vivemos a era dos intelectuais Nutella e todos
temos o direito inalienável de sermos considerados inteligentes a nosso modo,
em nosso ritmo, e de sermos felizes!
Mas não pensem que nosso quarteto fantástico de intelectuais
não seja crítico e analítico quanto ao admirável mundo novo. Como vimos, é
comum que intelectuais produzam obras em parceria. Simone de Beauvoir revisou,
completou ou reescreveu diversos livros atribuídos a Sartre. Marx e Engels
escreveram muito a quatro mãos. Borges e Bioy Casares chegaram a ter um
pseudônimo em comum: Honorio Bustos Domecq. Seguindo esta honorável tradição,
Clóvis de Barros Filho e Leandro Karnal publicaram juntos o livro “Felicidade
ou Morte” (2016), no qual conversam sobre a estranha obrigação humana de ser
feliz. O que mais chama atenção no livro são os textos de apresentação que cada
um fez para o parceiro. Leandro Karnal escreveu que Clóvis Filho é “um Ulisses
do pensamento, polímata avassalador e um gênio sedutor”. Clóvis Filho retribuiu
a gentileza e escreveu que Karnal, “com acurada didática e poderosa eloquência,
converte todos os seus ouvintes e alunos em fervorosos fãs”. Dá ou não dá
vontade de fazer corações com os dedos?
Leandro Karnal, acurada didática e poderosa eloquência
que
converte ouvintes e alunos em fervorosos fãs,
segundo Clóvis de Barros Filho
Apesar de “gênios” e de possuírem “fervorosos fãs”, eles são
humildes. O vídeo mais famoso de Cortella é aquele no qual o mestre da voz
tonitruante (me surpreende que Cortella e Clóvis Filho ainda não tenham tido a
ideia de formar uma dupla sertaneja! Seria um arraso!) ensina que ninguém é
importante diante da vastidão do universo, que somos todos o “vice-treco do
subtroço”. Menos Romário, é claro, como Cortella admite no vídeo. Pessoalmente,
eu incluiria na lista das exceções mais “homo sapiens sapiens”, tais como
Shakespeare, Platão, Aristóteles, Napoleão, Beethoven, Picasso, Austen,
Churchill, Kubrick e Pelé, além de muitos outros. Meu primeiro impulso é
considerar esse vídeo bem bolado, mas terrivelmente proselitista. Mas me
contenho, diante da disparidade entre meu cachê e o cachê de Cortella para
palestras. Se, como dizia o grande Nelson Rodrigues, dinheiro compra tudo, até
amor verdadeiro, com certeza também compra “ter razão”.
Mas nem sempre os membros do quarteto fantástico são
infalíveis. Eventualmente, podem cair nas próprias armadilhas. O episódio mais
didático aconteceu com Leandro Karnal. Depois de muitos textos e vídeos
comentando sobre a “futilidade das redes sociais”, “como as redes sociais
roubam tempo”, “como as redes sociais potencializam o poder do eu”, “o fluxo de
ódio nas redes sociais”, “a vida falsa que as pessoas criam nas redes sociais”,
o próprio Karnal não calculou o impacto estrondoso que provocaria uma simpática
foto que ele postou em suas redes sociais jantando com o juiz Sérgio Moro,
algoz do “Cara”. A legenda da imagem tratava da importância da conciliação e
tolerância. Não adiantou. Karnal caiu em desgraça entre seus seguidores de
esquerda. Foi alvo de duras críticas e até de ameaças. De repente, tornou-se
golpista e agente da CIA. A Nutella quase azedou. Mas os “negócios” falaram
mais alto que essa bobagem antiquada de “manter posição” e Karnal cometeu o
pecado dos pecados da era digital: arregou e apagou o post. Foi como se, para
ele, a foto indesejada e as mensagens sobre tolerância jamais tivessem
existido, o que é impossível em tempos de “Nossa Senhora do print”. Em todo
caso, o incêndio foi debelado e, contando com a memória curta do brasileiro, os
convites para palestras continuam chegando.
Luiz Felipe Pondé, o inimigo do politicamente correto
Luiz Felipe Pondé não precisaria se preocupar com isto.
Diferentemente de Karnal, que é sempre um “crítico a favor”, Pondé se
especializou em ser politicamente incorreto. É o “outsider” do grupo, o “enfant
terrible” da turma, o “bad boy” da filosofia para preguiçosos, enfim, é um
intelectual Nutella sabor chocolate meio amargo. Pondé é cínico, Pondé não
acredita na bondade humana, Pondé ri das utopias de esquerda, Pondé desdenha de
autoridades intelectuais e verdades estabelecidas, Pondé admite que é elite,
Pondé não quer salvar o mundo, Pondé deixa claro que só quer nosso dinheiro,
Pondé desdenha da “sede de conhecimento” de seu público, Pondé não tem medo de
elogiar Olavo de Carvalho, Pondé denuncia as patrulhas ideológicas nas
universidades, Pondé fuma charutos cubanos, Pondé usa camisetas da finada União
Soviética só de sacanagem. É fácil encontrar vídeos de debates onde Pondé
ironiza as convenientes posições politicamente corretas dos colegas de
quarteto. Alguns são verdadeiros nocautes. Vê-lo calar seus colegas tagarelas é
impagável. Por tudo isto, Pondé é o mais divertido da trupe. É claro que manter
a criatividade ao mesmo tempo em que se multiplica a produtividade para atender
ao mercado é difícil. Seus livros e vídeos, antes divertidamente iconoclastas,
se tornaram repetitivos. Mas, convenhamos, isso acontece com tudo que se torna
marca.
Se é verdade que “a inteligência não é uma qualidade
individual, mas um fenômeno coletivo, nacional, intermitente” a pergunta que
fica é: vivemos mesmo em uma era de declínio cultural ou o que acontece é que a
cultura se transformou em produto pop e a verdadeira erudição está escondida
sob montanhas de dados irrelevantes? Não creio que seja possível responder com
certeza a essa indagação, mas admito que prefiro intelectuais Nutella bem
embalados e vendidos a preços acessíveis do que intelectuais engajados querendo
salvar a humanidade ao custo de banhos de sangue.
Mas esqueçam! Quem sou eu para opinar? Não passo do
“vice-treco do subtroço”. E ao admitir isso antecipei o argumento de todos que
pretendiam me xingar nos comentários.
Ademir Luiz é doutor em História e pós-doutor em
Poéticas Visuais e Processos de Criação.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistabula.com
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