Com o [SSEX BBOX] Pri Bertucci produz séries para internet
com a intenção
de educar pessoas e instituições sobre o "ser queer".
Ser 'queer' não cabe numa caixa: Um bate-papo sobre
identidade com Pri Bertucci
"Temos que lembrar a importância do pronome de gênero.
As pessoas não vêem a importância disso porque não sofrem por causa
disso."
By Leda Antunes
"Como é que a gente quer colocar 7,6 bilhões de pessoas
em apenas duas possibilidades de existência: ou na caixinha azul ou na caixinha
rosa?", questiona o artista visual e ativista Priscilla Bertucci. Foi com
essa pergunta que Pri, como prefere ser chamado, iniciou seu processo de
investigação pessoal para enfim se identificar com o gênero queer, que é uma
identidade transgênero.
O paulistano passou dez anos em São Francisco, nos Estados
Unidos. Lá, em 2011, fundou o [SSEX BBOX], um projeto de documentários que
investiga as possibilidades da sexualidade humana, fora das "caixinhas
azul e rosa". Para fazer a série de filmes, Pri conversou com educadores
sexuais, estudiosos, ativistas e artistas que quebravam os padrões heteronormativos
de gênero e sexualidade. "Trabalhar com essas pessoas incríveis abriu
muito o meu espectro do que é gênero e do que é sexualidade e das
possibilidades de existência no mundo", lembra.
Estranho, peculiar, excêntrico. A palavra queer era usada de
forma pejorativa contra a comunidade LGBTQI+, mas nos anos 90, movimentos
sociais e ativistas passam a ressignificá-la, usando-a como forma de denominar
as pessoas dispostas a romper com ordem sexual padrão. A chamada teoria queer é
consolidada no livro "Problemas de Gênero", da filósofa Judith
Butler, e pressupõe que a orientação sexual e a identidade de gênero são
construções sociais e que não é possível classificar as pessoas nos binarismos
homem x mulher e heterossexual x homossexual.
Com a volta ao Brasil, há três anos, Pri expandiu a atuação
do [SSEX BBOX] que, para além dos filmes, virou um projeto de promoção de
justiça social. Hoje fazem consultoria de inclusão e diversidade para empresas
e realizam diversos eventos. Em 1º de junho deste ano, colocaram na rua a
primeira Marcha do Orgulho Trans de São Paulo e, mais recentemente, foram
parceiros da Organização das Nações Unidas (ONU) no lançamento em São Paulo dos
Padrões de Conduta para Empresas combaterem a LGBTfobia.
Durante evento, Pri revelou que havia tomado a primeira dose
de testosterona, dando início a sua transição hormonal. Ao HuffPost Brasil, ele
falou sobre o que é ser queer, a celebração do Orgulho LGBT, o machismo dentro
do próprio movimento, a primeira Marcha do Orgulho Trans e ainda deu dicas para
pessoas cisgêneras heterossexuais não errarem quando estiverem na dúvida sobre
a identidade de gênero de uma pessoa.
Leia a entrevista completa:
O que é ser "queer"
"A palavra queer representa tantas coisas, é um
conceito muito complexo. Ela é uma identidade de gênero, é uma orientação
sexual, é um adjetivo, um substantivo e pode ser um verbo. O conceito queer é
tão disruptivo do sistema, que causa essa estranheza. É muito difícil de
compreender, tem um aspecto muito budista do queer, que é fora desse binarismo
de pensamento. E eu me identifico dessa forma. Há muitos questionamentos se o
queer pode ser uma identidade de gênero, porque ela é uma identidade não
identidade, é o lugar do não lugar. No Brasil, o queer está sendo representado
pelo não binário, são coisas parecidas. Como o agênero, two spirit, genderless,
gênero fluido, tudo isso está dentro desse espectro queer não binário. Muita
gente ao invés de usar queer usa o não binário para explicar. Mas acontece que
eu, particularmente, não gosto de me afirmar pela negação. Não quero ser não
alguma coisa. Não binário, não branco. Prefiro ser queer, pardo."
Um aprendizado cultural e linguístico
"Há 15 anos eu milito nesta causa, há 10 anos surgiu o
projeto nesse meu processo de mudar para São Francisco (EUA).Trabalhei com
pessoas muito importantes que fazem parte desse movimento queer. Muito antes de
Judith Butler escrever sobre teoria queer, o queer veio da rua, do movimento
social, das ruas de São Francisco. E eu pude conviver com essas pessoas que
estavam ali naquele momento crucial e histórico. Muito do SSEX BBOX vem dessa
convivência, com Carol Queen, por exemplo, que foi responsável por colocar a
letra B, de bissexuais, na sigla LGBT. Trabalhar com essas pessoas incríveis
abriu muito meu espectro do que é gênero e do que é sexualidade e das
possibilidades de existência. Somos 7,6 bilhões de pessoas nesse planeta, como
é que a gente quer colocar 7,6 bilhões de pessoas em apenas duas possibilidades
de existência: ou na caixinha azul ou na caixinha rosa? Meu processo pessoal
vem disso, dessa investigação pessoal, eu fui investigando, aprendendo e
filmando tudo isso e isso virou a primeira websérie sobre o tema, em 2011. Não
existiam pessoas trans no Brasil dispostas a dar entrevista sobre o tema na
época. Foram meses de pesquisa pra achar uma pessoa trans que quisesse dar uma
entrevista. [...] Eu estava fazendo um documentário e aprendendo muito com
todos esses educadores sexuais, que viveram essa questão do movimento queer.
Como filmamos em quatro cidades diferentes em quatro países (São Francisco, São
Paulo, Berlim e Barcelona), esse aprendizado foi cultural e também linguístico.
Fui aprendendo nesse processo como a língua é limitante, se não tem uma palavra
que representa certas coisas é como se ela não existisse."
A identidade queer no Brasil
"Enquanto eu estava lá na Bay Area da Califórnia, que é
uma bolha de consciência, a realidade é que "everybody is queer"
[todo mundo é queer]. É até estranho não ser queer lá. Mas quando eu volto ao
Brasil e começo a explicar para as pessoas que eu não quero que elas me chamem
de 'ela' é muito difícil. Não tem espaço para isso aqui. Faz três anos que
voltei para cá, três anos de uma luta de tentar existir, não só para pessoas
cis que são desconectadas, mas dentro do próprio movimento. Tem pessoas que
acham que pessoas não binárias ou queer vão apagar a questão trans. Existem
resistências, questionam 'mas é queer de verdade?' e eu digo o que é queer de
verdade? Quem é a polícia queer? Eu percebo muita dificuldade de aceitação por
pessoas da militância mesmo, querendo dizer que eu sou menos importante com
essa identidade. E passamos de novo por uma questão de muita disputa interna
dentro do movimento e sem esse espaço de compreensão de todas as vidas precisam
ser respeitadas, todas as existências e todas identidades precisam ser respeitadas."
O lugar do "orgulho" LGBT
"Eu diria que essa não é a melhor palavra para se
celebrar a possibilidade de existência das nossas identidades e dos nosso
desejos. Se eu pudesse escolher, eu escolheria outra. Mas eu não sei se eu
tenho essa palavra ainda. Talvez no futuro a gente escolha outra. Mas vou dizer
porque o orgulho tem questões. Pride é o oposto de shame. Você tem vergonha e
orgulho. A comunidade LGBT vive, sempre viveu essa vergonha, só nos últimos
anos tem um pouco mais de aceitação. Mas na minha época -- eu nasci e 1978, e
quem nasceu antes de mim era pior ainda --, existia uma vergonha de você ser
quem você é, uma vergonha que não é só sua, mas mas também dos outros: sua
família, seu amigos, tinham vergonha. Dá para entender porque a gente está
trabalhando com esse binarismo hoje. Se é tanta vergonha e culpa colocada em
cima dessa identidades, o orgulho se torna totalmente oposto. Mas não acho que
orgulho seja uma coisa muito saudável, pois vejo que estamos dentro de uma
questão muito egocêntrica. As pessoas precisam mostrar a sua aparência, lutam
pelos seus likes. Acaba virando uma obsessão com a imagem. De qualquer forma,
eu acho que ainda não achamos um lugar intermediário para substituir essa
palavra. Isso vai acontecer quando derrubarmos esse combo de culpa e vergonha,
quando conseguirmos ter um lugar de muito mais aceitação - e eu não acho que
isso seja na minha geração ou na sua geração, algumas gerações ainda precisam
vir para a gente começar a achar um equilíbrio. Essa coisa é tão forte. E por
isso a gente fez a Marcha do Orgulho Trans, porque quer ter orgulho de ser
trans, porque é uma resposta nessa mesma força a essa vergonha que nos é
imposta."
O falocentrismo LGBT
"A Parada não é LGBT, é uma parada que deveria ser
LGBT, mas é uma parada gay. [...] Existe um viés racial, de gênero, nesse combo
do viés inconsciente, das pessoas que organizam a parada, que detém o poder. E
quem tem poder? É o homem branco cisgênero heterossexual. Mas mesmo que ele
seja gay ele continua no poder. E ele não tá afim de abrir mão ou dividir esse
poder com pessoas que têm vagina. O falocentrismo reina nesse movimento LGBT.
Quem tem vagina é cidadão de segunda classe. Isso é o planeta e dentro do
movimento LGBT não é diferente. Lésbicas e homens trans são super
invisibilizados. Pessoas queer e não binárias, então, nem se fala, isso nem
existe, é um unicórnio. A vontade de fazer a marcha veio do meu processo de
viver em São Francisco por dez anos e ver quão forte e organizado é o movimento
trans e quanto mais respeito eles conseguiram dentro das letrinhas LGBTQIA+ com
processos de diálogo, escuta, comunicação não violenta, de justiça restaurativa
entre esses grupos. A Dyke March [caminhada lésbica] existe no sábado há muitos
anos, na véspera da Parada Gay, e a Trans March na sexta-feira. Essa sequência
acontece em outros lugares do mundo, não só em São Francisco onde eu morava. Eu
via a potência que tem ter uma Marcha do Orgulho Trans, mas no Brasil ainda não
tinha acontecido. No ano passado eu comecei esse projeto, escrevi, comecei a
articular com o movimento, mas infelizmente não foi pra frente, acho que muito
por falta de engajamento de pessoas que não acreditaram que era possível fazer.
Começamos a fazer um círculo pequeno, bem tímido, de homens trans e não
binários, para falar desses apagamentos que vivemos. Como é ter vivido num
corpo que é reconhecido como feminino, com vagina, e todos os abusos que
passamos. A gente trabalhou alguns meses com esse grupo e muitos deles eram
líderes de outros projetos. A ideia era mesmo fortalecer esse lado emocional e
criar esse grupo de afinidade e com uma comunicação mais coesa. Aí eu faço o
convite para esse grupo de meninos trans a produzirem comigo essa marcha, que
era um sonho. Eu já tinha o projeto pronto, o site tava pronto, faltava mesmo
botar na rua. Fiz a parte da captação, consegui os patrocinadores. E aí os
meninos trans entraram, eles representam o Ibrat (Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades) e o Tiely Queen, do Hip Hop Mulher, para fazer esse evento
acontecer. A marcha foi incrível."
Na dúvida, pergunte
"Podemos pensar em duas coisas que uma pessoa cisgênero
e heterossexual pode fazer para não desrespeitar uma pessoa que ela não sabe a
identidade de gênero. A primeira é perguntar 'como você gostaria de ser
chamado?' E a segunda 'qual é o seu pronome de gênero preferido (PGP)?' Não
adianta eu só falar, eu gosto que você me chame de Pri, porque Pri você vai
assumir que é Priscilla, então é feminino e, no caso não é, eu quero que seja o
Pri ou só Pri. Em qualquer reunião, ou qualquer lugar que tenha muitas pessoas
cis e poucas pessoas trans, temos que lembrar a importância de falar do pronome
de gênero, as pessoas não vêem a importância disso porque não sofrem por causa
disso, para uma pessoa no padrão cis heteronormativo isso não importa. Muita
gente fala que é frescura, que é mimimi, mas não é mimimi, é realmente uma
questão de respeito."
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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