'La Liseuse', pintura a óleo de Jean-Honor Fragonard
Reprodução/National Gallery of Art, Washington
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 4 de julho de 2018
Ler ou não ler, eis a questão: uma crônica sobre livros e
leitura
Por Marcia Tiburi
Há cerca de quatro anos, uma pessoa, ao ouvir uma fala minha
em um evento literário no interior de Santa Catarina, interpelou-me, chateada:
“Marcia, eu gostava de você quando você não era política”.
Perguntei a ela por que me dizia essa frase: ela não quis
responder. Perguntei, então, se ela costumava ler o que eu escrevia, tentando
entender o seu “gosto” por mim. Eu perguntei se havia lido algum artigo, algum
texto na internet. Ela apenas tinha me visto na televisão e, de certo modo,
isso lhe bastava.
Comentei que, a meu ver, estamos sempre mergulhados em
política, mesmo quando não queremos saber dela. Mesmo quando aparecemos ou
vemos televisão, isso é político, pois que a televisão é um meio de poder; não
apenas um meio de comunicação, mas um meio de comunicação do poder. Que nossos
atos, aparentemente “des-políticos” ou “anti-políticos”, servem a algum tipo de
política. Que se nós não sabemos, todavia alguém sempre sabe o que fazer com o
nosso desgosto ou falta de interesse em política. A política abandonada serviu
e serve aos poderosos de sempre, sugeri para que ela pensasse. Ela não ficou
muito interessada, mas prometeu, de um modo muito simpático, ler um livro meu.
Não foram poucos os momentos em que estive com pessoas
particulares ou grupos diversos nos quais tive que tratar da mesma questão. E
não foi incomum descobrir que muitas pessoas que “gostavam” ou “não gostavam”
de mim nunca tivessem lido um livro meu. Pensar na força da televisão e na
impotência do livro nessas horas ainda me deixa triste.
O desinteresse ou desatenção pelo que escrevo não é um
problema, evidentemente. Ler é um direito e não ler também. Preferências de
cada um devem ser respeitadas, embora possam significar algo mais. Há tempos
atrás, eu soube de um professor de uma grande universidade que ia às livrarias
e escondia meus livros para que ninguém os comprasse. Não sei se os lia ou não,
mas certamente os odiava a ponto de precisar escondê-los. Do mesmo modo, há
pessoas que conheço que leram todos os meus livros, ou vários deles, e até
presentearam seus amigos e amores com eles. Eu fico feliz, mas isso é uma
questão maior do que eu mesma, do que meus desleitores ou leitores.
O que me faz contar isso? Sou escritora e penso ser este um
lugar de fala legítimo. Mas a meu ver há um problema imenso na cultura
brasileira, um problema que diz respeito ao que o sociólogo francês Pierre
Bourdieu, por exemplo, chamou de habitus aquele modo de viver que é introjetado
e resulta em um modo de sentir, de pensar e ser.
Ora, há um nexo a ser compreendido entre a “despolitização”
ou “antipolitização” da vida e a falta de interesse pelo que há de mais
complexo e mais difícil e que, de um modo geral, faz parte do mundo dos livros
e da leitura. Ler e não ler também são atos políticos. E políticas da leitura e
da escrita não podem ser deixadas de lado quando se trata de pensar um mundo
melhor para se viver com pessoas melhor preparadas subjetivamente.
Entre a política e a leitura há uma analogia que nos ajuda a
entender a nossa época. São dois hábitos que exigem esforço e que, depois de
transpostas as dificuldade do hábito, se não definem um novo prazer, pelo menos
nos ajudam na expansão de nossas visões de mundo.
Eu fico triste de ver que telas (sejam de televisão, sejam
de computador), suplantem os livros em nossa época. Que tipo de subjetividade
surge desse habitus da não-leitura, em uma época em que a escrita é
instrumentalizada de tantas formas, inclusive na internet, é uma questão para
pensar.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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