O Início, o Fim e o Meio
Em seu novo livro, Yuval Noah Harari, que sintetizou o
passado em Sapiens e vislumbrou o futuro em Homo Deus, volta-se para o presente
– e as lições que a humanidade tem que aprender para sobreviver ao século 21
Por Ivan Marsiglia
YUVAL NOAH HARARI é uma espécie rara de escritor. Aos 42
anos, ele alia como ninguém profundos conhecimentos em ciência, história e
filosofia com um texto fluido e uma capacidade extraordinária de se comunicar.
Seu primeiro grande livro, Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, que
resume em 459 páginas os 70 mil anos de história do gênero humano na Terra, foi
lançado em 2011 em Israel, terra natal de Harari, e já vendeu 1 milhão de
cópias no mundo todo. Na sequência veio Homo Deus – Uma Breve História do
Amanhã (2015), que especula sobre os efeitos de uma tecnologia que se
expressará no próprio corpo dos indivíduos, outro best-seller imediato. Agora,
ele prepara o lançamento da conclusão dessa trilogia: 21 Lições para o Século
21, com lançamento mundial a partir de agosto (a edição brasileira sai pela
Companhia das Letras).
Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade para a revista
cultura, este PhD em História pela Universidade de Oxford e professor da
Universidade Hebraica de Jerusalém fala dos riscos que ameaçam o ser humano de
extinção neste decisivo século 21. Relata o tsunami que a celebridade causou em
sua antes pacata vida de acadêmico. Descreve o cotidiano simples que procura
manter ao lado do marido e do cachorro. Ressalta o papel fundamental da yoga e
da meditação para manter a tranquilidade de sua mente hiperativa. E chama a
atenção para as contradições do progresso na análise da crise brasileira.
Seu primeiro livro, Sapiens, fala de nossa origem: sobre
como uma espécie fisicamente frágil conseguiu dominar o planeta. O segundo,
Homo Deus, é focado em para onde vamos: um futuro de alta tecnologia povoado
por super-humanos, enfrentando riscos terríveis. Por que falar sobre o presente
agora?
Porque as pessoas me perguntaram sobre ele. 21 Lições foi
escrito a partir do diálogo que mantive com o meu público. Ele se baseou em
conversas que tive, entrevistas que dei e conferências que ministrei no mundo
inteiro ao longo dos últimos anos. Muita gente me questionou sobre temas como
imigração, terrorismo, fake news e a crise das democracias liberais. Meu novo
livro é uma tentativa de dar resposta a essas questões.
21 Lições para o Século 21 elenca vários problemas com os
quais a humanidade está lidando hoje. Qual é o mais urgente deles e o que você
propõe como solução?
O desafio mais imediato é a ascensão dos fundamentalismos e
nacionalismos. A humanidade enfrenta neste momento três grandes riscos: a
guerra nuclear, as mudanças climáticas e as tecnologias disruptivas. Todas
questões globais por natureza, que só podem ser resolvidas por meio de cooperação
internacional. Nenhum país sozinho poderá deter o aquecimento global ou evitar
a guerra nuclear, assim como uma nação só não terá como definir regras seguras
para a bioengenharia ou a inteligência artificial. Não será suficiente se
apenas a China decidir reduzir suas emisões de gases de efeito estufa, enquanto
os EUA continuarem a fazer seus negócios como de costume, nem será de grande
ajuda se a União Europeia proibir a produção de robôs militares assassinos, mas
Rússia e Israel autorizarem sua produção. De forma análoga, temos que criar uma
rede global de segurança para proteger os humanos contra os choques econômicos
que a introdução da inteligência artificial causará. A automação irá produzir
imensas riquezas em hubs de alta tecnologia como o Vale do Silício, mas seus
efeitos nefastos serão sentidos em países em desenvolvimento como Honduras e
Bangladesh. Haverá mais empregos para engenheiros de software na Califórnia,
mas menos empregos para operários da indústria têxtil ou motoristas de caminhão
hondurenhos. Os governos norte-americanos aumentariam os impostos dos gigantes
da alta tecnologia no Vale do Silício para sustentar ou reciclar desempregados
hondurenhos? É improvável. Vivemos hoje numa economia global, mas a política é
ainda muito nacional. A menos que encontremos soluções em nível global para as
disrupturas causadas pela tecnologia, países inteiros poderão colapsar – e o
caos resultante, a violência e as ondas de imigração irão desestabilizar o
mundo inteiro. É por isso que a atual onda de xenofobia e nacionalismo é tão
perigosa: não haverá soluções nacionais para os problemas globais.
Então será preciso constituir uma espécie de governo global?
A ideia de um “governo global” é duvidosa e irrealista. Em
vez disso, acho que políticos nacionais e mesmo municipais deveriam dar mais
peso às questões globais. Por isso, na hora de escolher um governador de Estado
ou um prefeito, precisamos levar em conta tanto suas políticas voltadas para as
questões globais quanto para as locais. É importante que a gente se lembre de
que não há nada de natural ou eterno sobre as nações. Nenhuma das nações
existentes hoje no mundo estava aí há 5 ou 50 mil anos. E, ao contrário do que
alguns dizem, o sentimento de nacionalismo não tem raízes na biologia humana.
Humanos são animais sociais com a lealdade ao grupo impressa em seus genes.
Entretanto, por centenas de milhares de anos viveram em comunidades compostas
por poucas dúzias de pessoas. Desenvolvemos lealdades a pequenos grupos como
uma tribo, uma companhia de infantaria ou uma empresa de família, mas é pouco
natural nos sentirmos leais a milhões de completos estranhos. Esse tipo de
lealdade de massa surgiu só há poucos milhares de anos – na manhã de ontem, em
termos evolucionistas – e requer um imenso esforço de construção social. As
pessoas só construíram essas coletividades nacionais porque foram confrontadas
com desafios que não podiam ser resolvidos por nenhuma tribo isoladamente.
Agora, enfrentamos desafios que não podem ser solucionados por nenhuma nação
sozinha – então precisamos transcender a nação e forjar lealdades globais.
Nesse contexto, o que a vitória de Trump e a ascensão da
extrema-direita na Europa significam?
Há políticos demais tentando nos vender fantasias
nostálgicas em vez de preparar o nosso futuro. Isso acontece porque a maioria
das pessoas não quer mudanças radicais e teme o desconhecido. Elas querem
estabilidade e uma identidade segura que dê sentido às suas vidas. A atual onda
de visões políticas nostálgicas tem mais a ver com o passado do que com o
futuro: políticos de diversos países, incluindo os EUA, Inglaterra, Rússia e
Índia, estão guinando para o nacionalismo tradicional ou religioso, prometendo
um retorno a uma espécie de passado dourado. No meu próprio país, Israel, o
governo usa a Bíblia e as tradições judaicas para justificar suas ações. É
confortável recorrer ao nacionalismo e à religião porque eles oferecem
explicações simples sobre o que está acontecendo no mundo, sobre quem somos nós
e qual o significado de nossas vidas. Eles pretendem nos oferecer uma âncora de
certezas em um mundo tempestuoso. Infelizmente, eles não serão capazes de
resolver os enormes problemas em que estamos mergulhados neste século 21. Como
lidar com o aquecimento global? O que fazer quando a tecnologia empurrar
bilhões de pessoas para fora do mercado de trabalho? Como fazer uso do enorme
potencial da engenharia genética? Você não vai encontrar esse tipo de resposta
na Bíblia. A realidade no século 21 é tão assustadora que eu entendo por que
algumas pessoas preferem olhar para o outro lado. Mas não temos escolha.
Você já declarou que “a crise ecológica no século 21 irá
provocar uma aceleração do progresso tecnológico semelhante à causada pelas
duas guerras mundiais do século 20”. Esse progresso será capaz de evitar a
destruição do planeta?
Espero que sim. Mas se levarmos em conta o momento atual de
desenvolvimento da tecnologia, a única maneira de deter a mudança climática
seria freando o crescimento econômico. Só que o crescimento é a prioridade
número 1 de quase todos os países e governos. Por isso, precisamos desenvolver novas
tecnologias verdes que sustentem o crescimento econômico sem destruir o
ecossistema. Um exemplo é a pecuária. A produção industrial de carne é uma das
maiores causas de poluição do ar, da terra e das águas, além de responsável por
uma grande porcentagem das emissões de gases de efeito estufa. Uma maneira
ética e ecológica de resolver o problema é desenvolver a chamada “carne
cultivada” – produzir carne a partir da multiplicação de células em vez de
criar animais inteiros para abatê-los. O primeiro hambúrguer cultivado surgiu
em 2014 e custou US$ 300 mil. Foi só um primeiro experimento: atualmente o
preço já caiu para US$ 11 e, com mais pesquisas e produção em escala
industrial, a carne cultivada pode ser mais barata que a atual. Por que gastar
tanto dinheiro criando uma vaca inteira quando você pode fazer crescer um bife?
Você sempre diz que a pecuária atual “é provavelmente o
maior crime da história”. Por quê?
Bilhões de animais domesticados, como vacas e galinhas, são
tratados pela indústria de carne, laticínios e ovos como máquinas, não como
criaturas vivas capazes de sentir dor e angústia. E a ciência nos mostra que
vacas e galinhas vivenciam um mundo complexo de emoções e sensações. Elas são
capazes de sentir dor, medo e ansiedade, além de alegria, tranquilidade e amor.
Ainda assim, os humanos ignoram completamente seu sofrimento. Toda a indústria
de laticínios, por exemplo, é baseada no rompimento dos laços de amor entre
mães e filhotes. Uma vaca jamais produz leite a menos que engravide e dê à luz
um bezerro. Mas aí os humanos retiram o bezerro dela para ser abatido e
ordenham o leite da vaca. Um processo que provoca dor e agonia a milhões desses
animais a cada ano. Julgada pela quantidade de sofrimento que produz, a
pecuária moderna é provavelmente um dos piores crimes da história. Seria muito
mais ético alimentar as pessoas com uma dieta baseada em vegetais – que é
também mais ecológica. Produzir carne usa muito mais recursos e gera muito mais
poluição do que produzir a quantidade equivalente de alimentos vegetais. Por
exemplo, são necessários cerca de 15 mil litros de água doce para produzir um
quilo de carne, em comparação com os 287 litros necessários para produzir um
quilo de batatas. Para quem não quiser se tornar vegetariano, espero que em uma
década ou duas possamos produzir carne limpa em escala industrial.
Sapiens mostra como a nossa espécie superou outros membros
do gênero Homo que não sobreviveram. Como seria o mundo hoje se o Homo
rudolfensis ou o Homo neanderthalensis tivesse prevalecido?
Essa é fácil. Até onde se pode especular, o mundo ainda
estaria na Idade da Pedra. Teríamos alguns milhões de humanos vivendo na
África, Ásia e Europa, sem agricultura, indústria ou cidades. Não haveria
nenhum homem na América, que seria ainda um continente dominado por mamutes,
tigres-dente-de-sabre, preguiças-gigantes e outros animais que o Homo sapiens
levou à extinção depois que a colonizou.
Ter se transformado num best-seller internacional mudou de
que maneira a sua vida?
Mudou minha vida de muitas maneiras. Abriu novas
possibilidades, mas também criou uma série de problemas. Obviamente, estou
muito satisfeito com o sucesso – é bom saber que, depois de trabalhar tanto
para pesquisar e escrever Sapiens e Homo Deus, esses livros alcançaram pessoas
e as ajudaram a entender melhor o mundo. No entanto, há também um lado
negativo. Tenho muito menos tempo do que antes e muito mais compromissos. Passo
muito tempo repetindo o que já sei e tenho menos tempo para explorar novos
conhecimentos. Sou obrigado a desapontar muito mais pessoas. Há dez anos,
ninguém sabia quem eu era e ninguém esperava nada de mim. Agora, recebo inúmeros
pedidos de entrevistas, palestras e projetos, e tenho de dizer “não” a 99%
deles. Faço um enorme esforço para dedicar tempo à minha família, aos meus
amigos e a mim mesmo. E procuro manter uma rotina diária. Começo o meu dia
meditando por uma hora. Então, tomo café da manhã e trabalho por cerca de 6 ou
7 horas no computador. Aí faço yoga e levo meu cachorro para passear por cerca
de uma hora na floresta próxima de casa – o cachorro é só um pretexto para eu
poder contemplar algumas árvores e animais, e não apenas computadores e
e-mails. Então, eu sento para mais uma hora de meditação. Meu marido e eu às
vezes saímos para encontrar amigos ou assistimos a um filme antes de dormir.
A meditação o ajuda a lidar com essa vida de celebridade?
Ser uma celebridade envolve tanta pressão e distrações que
eu não sei como poderia lidar com isso sem o foco e a paz proporcionados pela
meditação. Pratico há quase vinte anos Vipassana, uma técnica baseada na
percepção de que o fluxo da mente está intimamente ligado às sensações
corporais. Entre mim e o mundo, há sempre sensações corporais: eu não reajo aos
eventos do mundo exterior, reajo às sensações que eles provocam no meu corpo.
Quando a sensação é desagradável, sinto aversão. Se é agradável, desejo mais.
Mesmo quando penso que estou reagindo a uma memória antiga de infância ou ao
que alguém escreveu sobre mim no jornal, a verdade é que tudo se dá no meu
corpo. Vipassana me treina a me concentrar no que está acontecendo dentro de
mim, e não no mundo exterior, revelando assim os padrões básicos da minha
mente. O sofrimento não é uma condição objetiva no mundo exterior, é uma reação
gerada pela nossa mente. Além de meditar, a cada ano faço um longo retiro por
um mês ou dois. Não é uma fuga da realidade, é o contrário: sinto que por pelo
menos duas horas por dia eu realmente observo a realidade como ela é. Nas
outras 22 fico sobrecarregado com e-mails, tuítes e vídeos engraçadinhos de
gatos.
Lendo seus livros têm-se a impressão de que você é fascinado
pelo progresso tecnológico e que, no fim das contas, acredita que seus efeitos
perversos serão controlados pela moralidade humana. Mas avanços como a
inteligência artificial não podem nos tornar simplesmente incapazes de decidir
nossos destinos?
Certamente o risco é imenso. Mas acredito que a humanidade
será capaz de enfrentar o desafio. A tecnologia nunca é determinista: podemos
usar os mesmos avanços para criar tipos muito diferentes de sociedades e
situações. No século 20, as pessoas usaram a tecnologia da Revolução Industrial
– trens, eletricidade, rádio, telefone – tanto para criar ditaduras comunistas
e fascistas quanto democracias. Coreia do Sul e Coreia do Norte tiveram acesso
à mesma tecnologia, mas optaram por empregá-la de formas distintas. No século
21, a inteligência artificial e a biotecnologia vão mudar o mundo, mas não
precisamos ser fatalistas. Como usar a tecnologia sabiamente é a questão mais
importante que a humanidade enfrenta hoje – mais importante que a crise
econômica, as guerras no Oriente Médio ou a crise de refugiados na Europa. O
futuro não só da humanidade, mas provavelmente da própria vida na Terra,
depende de como escolheremos usar a IA e a biotecnologia.
O Brasil sempre foi considerado uma espécie de “laboratório
do futuro”, no bom e no mau sentido: um caldeirão de culturas aberto a
diferentes nacionalidades e uma sociedade desigual e violenta. Hoje, após um
período de relativo avanço social, o país enfrenta uma grave crise. O que você
poderia dizer aos leitores brasileiros sobre as contradições do progresso?
O progresso resolve questões antigas e cria novas. As
pessoas então tomam como certas as conquistas do passado, concentram-se nos
problemas do presente e concluem que “as coisas nunca foram tão ruins”. É uma
ilusão. Apesar da crise, o Brasil está em uma situação muito melhor do que há
50 ou 100 anos. Mesmo brasileiros pobres têm hoje menos probabilidade de morrer
de peste, fome ou violência do que em 1968 ou 1918. Claro que isso não nega os
imensos problemas que o Brasil enfrenta, mas nos adverte contra a crença de que
“nenhum progresso aconteceu, a situação é tão ruim como sempre, o sistema está
corrompido até o osso e nada, exceto uma revolução completa, irá melhorar as
coisas”. Ao longo da história humana, aqueles que prometeram soluções mágicas e
rápidas para os problemas acabaram causando mais violência e miséria – como nas
revoluções russa e chinesa. Como eu disse no início da entrevista, hoje o
futuro do Brasil não depende apenas dele mesmo, mas do estabelecimento de uma
melhor cooperação global entre os países. O governo brasileiro, por si só, não
poderá protegê-lo contra as ameaças do aquecimento global e da ascensão da IA.
No entanto, como líder da América Latina e possivelmente a mais pacífica das
grandes potências do mundo, o Brasil tem muito a contribuir para essa
cooperação global. É um país que faz fronteira com outras dez nações, mas por
mais de um século não invadiu nenhuma outra. Se os brasileiros puderem ensinar
seu segredo a outras potências do mundo, será uma grande bênção para a
humanidade.
Texto e imagem reproduzidos do site: livrariacultura.com.br
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