Publicado originalmente do site da revista Trip, em 15 de maio de 2018
Ӄ meu momento de liberdade com o meu corpo"
Flora Matos se prepara para os 30 anos se livrando do peso
do julgamento do rap e à vontade pra se sentir bela
Por Peu Araújo
Flora Matos está num belo gramado, diante de sua confortável
casa na Granja Viana, em São Paulo, às vésperas do embarque para uma gravação
no Rio de Janeiro. À sua volta o tempo corre no ritmo da metrópole: o despacho
da mala, o voo, o trânsito, mas a MC funciona numa outra lógica. É uma força da
natureza, dessas que — tal e qual o mar ou a chuva — não se controla. Com o
motorista do táxi esperando sem sorrisos do lado de fora, ela escuta, antes de
partir, os últimos versos, ainda não masterizados, de uma música que
provavelmente não terá refrão.
No ano em que completa 30 primaveras (escorpiana, ela faz
aniversário em novembro), a rapper de Brasília está em busca do amadurecimento,
segundo ela mesma, tardio. “É meu momento de liberdade com o meu corpo, independentemente
do padrão que eles acham ideal para o rap. Ainda não é aceitável para muitos
deles que as minas estejam se mostrando.” Entenda por eles a ala mais
conservadora e machista do rap. “Isso precisa ser quebrado. Imagina se a Negra
Li tivesse posado nua há cinco, dez anos. Era problema na certa.”
A MC revela sua predileção pela fotógrafa Autumn Sonnichsen.
“Eu sei por que ela faz foto e acredito que seja para despertar o mulherão que
existe em cada mulher. Ela fez isso em mim. Me ajudou a mostrar isso que o
mundo precisa ver.” Este é seu primeiro ensaio sensual e Flora o classifica
como “um presente para o rap, principalmente para as mulheres que rimam, para
que elas se sintam mais à vontade com o próprio corpo independentemente do que
eles disseram, dizem ou vão dizer”. E destaca o instante em que ele será
publicado. “Acho que casou com o meu momento de ‘velho, que se foda que os
gurus do rap nacional, os chefões acham disso’.”
Na estrada
Sua caminhada no hip-hop não é curta e muita coisa mudou
desde os tempos em que participou da mixtape Rotação 33, de KL Jay (Racionais
MC’s), em 2007, quando cantou ao lado do MC Fator uma versão de “Véu da noite”,
da Céu. Num registro de uma apresentação no Teatro Odisseia, no Rio de Janeiro,
há uma década, dá para ver uma Flora Matos tímida em sua camisa xadrez, mas que
em um dos versos entoa: “Sentido avenida Brasil, saindo da zona sul, noite
escura se abriu, eu tô voltando pá tu. Escuto vários ‘psiu’, mas mando…”.
Depois de lançar uma mixtape com o Stereodubs em 2009 e finalmente seu primeiro
disco solo no ano passado, segue mandando os homens tomarem lá mesmo, porque
assim como o mar ou a chuva, há coisas que não se controlam. “Até certo ponto,
achei que dependesse muito da aprovação dos caras para existir na cena e acabei
de descobrir que não, e foi muito foda isso.”
Os sinais de amadurecimento de Flora vão aparecendo, assim
como seu corpo neste ensaio. Mais serena, ela reflete sobre as pedras que
quebrou em mais de uma década nos palcos e estúdios, um tempo em que
praticamente o único nome de mulher nos flyers de show de rap era o dela. “Eu
já me masculinizei muito, já me escondi dentro das roupas, porque se você tá
bonitona pra caralho em cima do salto, muitas vezes isso ainda é visto como
disponível.”
Sua primeira música a virar hit foi “Pretin”, de 2009, uma
cantada bem maneira e uma espécie de resistência num cenário formado
majoritariamente por homens. “Eu não tava muito pronta para bater de frente com
tudo o que precisava para ser aquele mulherão. Talvez eu ainda não estivesse
pronta, com bagagem e um escudo na mão.” A canção, porém, foi importante para
que Flora desse ao menos um passo. Com medo das especulações de que seu talento
era atrelado a algum homem da música, ela evitava se relacionar. “Tinha um cara
que eu era a fim pra caralho, morria de vontade de pegar ele há anos. Depois
que a música bateu e tava maneiro, que tava fazendo meus shows, pagando minhas
contas, morando num apê daora e eu podia levar ele lá, falei: ‘Tá, agora vou
ficar com esse cara, porque, se falarem, já garanti o meu lugar’.”
Flora mostra desconforto também com o policiamento sobre sua
vida sexual, mas fala de seus relacionamentos com colegas de profissão. “Já
peguei alguns rappers. Mas só namorei com os melhores poetas, os que tinham as
rimas nas quais você realmente mergulha. Não tem coisa mais afrodisíaca do que
poesia bem-feita.”
Enquanto fuma seu tabaco com haxixe, Flora faz uma avaliação
categórica sobre o espaço delas no cenário musical em que vive. “É muito
difícil uma mulher se manter viva depois de errar uma vez dentro do rap.” Viva
e com planos para o futuro, que envolvem construir um estúdio na casa em que
mora ou se mudar para o Rio, ela acaba de quebrar mais uma barreira em sua
caminhada.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário