sábado, 28 de julho de 2018

A Saga de Dorival Santos, catador de lixo que virou doutor em linguística

Dorival Santos aprendeu a ler com livros que a mãe tirou do lixo e lembrou que 
colegas zombavam dele por usar roupas recicladas 
Eduardo Valentes/Agência O Globo

Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 21/07/2018

A Saga de Dorival Santos, catador de lixo que virou doutor em linguística 

A história de sucesso do menino que usava roupas recicladas e montou biblioteca a partir do lixo

Por Dorival Santos em depoimento a Juliana Dal Piva 

Saí de casa pouco depois das 6h30 no dia 10 de maio. Preciso pegar dois ônibus para chegar ao campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que fica no bairro da Trindade, em Florianópolis. O primeiro passa perto das 7 horas. Alugo um quarto em uma pensão na Costeira do Pirajubaé, um bairro residencial que fica na parte centro-oeste da cidade, e levo quase uma hora e meia de casa até a sala de aula, no Centro de Comunicação e Expressão (CCE).

Naquele dia, eu precisava estar cedo na sala Machado de Assis para a defesa de minha tese de doutorado, marcada para começar às 8h30. Dentro do ônibus lotado, iniciei um ensaio mental do que deveria falar, como teria de me portar e quais seriam as perguntas da banca dos professores. Carregava nas costas uma mochila pesada com meu computador e todos os materiais. No misto de adrenalina e pressa, um turbilhão de pensamentos cruzou minha mente como em um flashback. Lembrei-me de quando voltei para a escola para terminar o segundo grau, aos 21 anos, de minha entrada no curso de letras português/francês e de meu primeiro dia numa sala de aula como professor. Do mestrado. E agora, finalmente, o dia D: a defesa do doutorado.

Passado o nervoso, deu tudo certo. Quando a defesa terminou, quase quatro horas depois, uma página de minha vida virou. Os professores disseram que o trabalho contribuiu para o campo e recomendaram a continuidade da pesquisa. Subi mais um degrau. Para mim, aquele momento foi como um pódio.

Minha pesquisa desde a faculdade é na área da linguística, uma ciência nova, foco de estudo nos últimos 100 anos, mas no Brasil até um pouco menos do que isso. Em minha tese, abordo a semântica, uma área da linguística. Estudo como o ser humano significa as coisas que ele percebe no mundo e como ele se expressa pela linguagem, qual a relação da palavra. Meu foco são os verbos de movimento. Por meio da linguagem a gente faz tudo. É inerente ao ser humano. Ela revela o que você é.

Mas essas reflexões eu comecei a fazer mesmo antes de entrar na academia. Nasci e cresci no bairro dos Moreiras, na periferia de Piedade, no interior de São Paulo. Era uma bairro de gente humilde, pobre mesmo. Aprendi a ler muito cedo, fui alfabetizado por minha mãe, Crelia Oliveira, quando tinha uns 6 anos de idade. Ela recolhia livros e gibis descartados e me ensinou as sílabas das palavras a partir de historinhas da Turma da Mônica, do Tio Patinhas e do pistoleiro Tex Willer. Nessa época, ela e minhas duas irmãs mais velhas já trabalhavam em um lixão que ficava na Rodovia Raimundo Antunes Soares (SP-79), no caminho que leva de Piedade a Sorocaba, também em São Paulo.

Eu ia à escola, mas foi em casa que aprendi a ler e ganhei gosto e hábito de leitura. E foi nesse período que também precisei trabalhar com elas na separação do lixo descartável. De manhã eu ia para a aula na Escola Estadual Maria Paula. Muitas vezes eu não conseguia escrever de dor, porque meus dedos estavam cortados e não era incomum que meus cadernos tivessem manchas de sangue.

Os tempos na escola, especialmente na infância, não foram fáceis. De vez em quando eu ouvia os colegas dizerem “lá vem o lixeiro”. Outros faziam questão de dizer que eu estava usando uma roupa que eles tinham jogado fora e que eu, sem saber, tinha catado entre os materiais descartados. Eles podiam comprar, mas minha roupa surrada era a achada no lixo, assim como, em alguns dias, meu café da manhã era disputado com os urubus e cães. Eu sempre sentava no fundo da sala, sozinho. Enquanto eles estavam brincando, eu estava trabalhando.

Quando o sino soava para marcar o fim das aulas, eu descia e subia as ladeiras caminhando por mais de uma hora até o lixão. No caminho, já aproveitava para verificar o que podia ser recolhido de material reciclável das lixeiras da cidade. Os colegas de turma viam aquilo com espanto e nojo.

Por isso, fui aprendendo aos poucos o que era ser invisível. Só entre nós, garimpeiros, não éramos invisíveis. É assim que nos tratamos, como garimpeiros. O trabalho no lixão me ensinou que neste mundo a gente está para sobreviver. Se eu não trabalhasse, a gente ia morrer fome. Além de minhas duas irmãs mais velhas, meus pais tiveram mais dois filhos, e meu pai era muito ausente. Não lembro bem quanto a gente ganhava quando eu era criança, mas nos últimos tempos, em 2006, eram R$ 75 por semana.

Havia épocas em que o trabalho no lixão não rendia muito, e a gente alternava com outros serviços. Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, trabalhei para descendentes de japoneses no plantio e na colheita de morango e alcachofra. O difícil ali era quando tinha de passar agrotóxico. Eles só davam um lenço para cobrir o nariz, como num faroeste. E, quando eu vomitava, davam leite para eu tomar. Ao chegar próximo do feriado de Finados, em novembro, eu também trabalhava limpando túmulos em cemitérios.

Tinha de ir aonde dava mais dinheiro, mas o mais regular era o lixão. Lá também a gente recolhia itens para casa, roupas para vestir, e eu comecei uma biblioteca. Antes de o primeiro caminhão chegar, eu contava aos outros garimpeiros o que estava procurando. Aliás, todo mundo contava. Se tinha alguém esperando nenê, avisava que queria roupa de bebê e quem achasse trocava por algo de que precisasse.

Eu pedia os livros, e os que estavam em bom estado eu levava para casa. Meu intuito era fazer uma biblioteca comunitária. No começo, montei umas prateleiras no meu quarto e fui catalogando. Cheguei a 900 direitinho. Depois ficou complicado e fui separando só por autor. Cheguei a ter uns 3 mil livros.

Desses que eu achei no lixão tenho até hoje Vidas secas, de Graciliano Ramos, que é o livro de minha vida. Também guardo três do Machado de Assis (Memórias póstumas, O alienista, Esaú e Jacó), Sagarana, de Guimarães Rosa, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.

Só que, com o tempo, foi se tornando cada dia mais difícil trabalhar e ir para a escola. Minha mãe passou em um concurso para gari na cidade, mas meus pais se separaram de vez e as contas não fechavam porque a renda de toda a família era compartilhada. Quando terminei a oitava série, para o desgosto de minha mãe, larguei a escola.

Fiquei parado em torno de seis anos, mas continuei lendo bastante. Essa rotina nunca saiu de mim. O tempo foi me mostrando que aquela vida não ia ter futuro, não só pela pouca renda, mas por causa do perigo das doenças e também dos caminhões de lixo, que com frequência atropelavam alguém no lixão.

Minha família insistiu para que eu voltasse à escola, e com 21 anos retornei aos bancos escolares para fazer o ensino médio. Minha mãe e uma das minhas irmãs começaram a receber o Bolsa Família e aquilo fez uma grande diferença em casa. Não foi simples, os dedos sangravam como antes, mas decidi que iria terminar e fazer faculdade. Passei no vestibular de letras na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis, no ano de 2007. O dinheiro outra vez foi um limitador, porque a Bolsa Permanência que recebia era de apenas R$ 200. Só meu aluguel era R$ 150.

Mais ou menos na época em que me formei, minha mãe e minhas irmãs também deixaram Piedade e vieram morar em Guaramirim, no interior de Santa Catarina. Em 2011, já diplomado, entrei no mestrado da UFSC e aqui permaneci. De lá para cá venho conciliando a pesquisa acadêmica com aulas de português na rede pública. Não quero ser exceção e acho que minha própria família já dá os sinais disso. Minha irmã mais nova está estudando pedagogia.

O lixão de Piedade não existe mais. Virou um aterro sanitário. Depois da defesa, liguei para minha mãe e choramos um bocado. Ela disse que iria à igreja contar que tem um filho doutor.

Ainda quero conhecer a França e fazer um pós-doutorado na Universidade de Paris III, que faz parte da Sorbonne. No ano passado, tirei até o passaporte, mas não consegui a bolsa. Doeu, mas as coisas que me abalam não me derrubam mais.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com

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