Dorival Santos aprendeu a ler com livros que a mãe tirou do lixo e lembrou que
colegas zombavam dele por usar roupas recicladas
Eduardo Valentes/Agência O Globo
Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 21/07/2018
A Saga de Dorival Santos, catador de lixo que virou doutor em linguística
A história de sucesso do menino que usava roupas recicladas
e montou biblioteca a partir do lixo
Por Dorival Santos em depoimento a Juliana Dal Piva
Saí de casa pouco depois das 6h30 no dia 10 de maio. Preciso
pegar dois ônibus para chegar ao campus da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), que fica no bairro da Trindade, em Florianópolis. O primeiro
passa perto das 7 horas. Alugo um quarto em uma pensão na Costeira do
Pirajubaé, um bairro residencial que fica na parte centro-oeste da cidade, e
levo quase uma hora e meia de casa até a sala de aula, no Centro de Comunicação
e Expressão (CCE).
Naquele dia, eu precisava estar cedo na sala Machado de
Assis para a defesa de minha tese de doutorado, marcada para começar às 8h30.
Dentro do ônibus lotado, iniciei um ensaio mental do que deveria falar, como
teria de me portar e quais seriam as perguntas da banca dos professores.
Carregava nas costas uma mochila pesada com meu computador e todos os
materiais. No misto de adrenalina e pressa, um turbilhão de pensamentos cruzou
minha mente como em um flashback. Lembrei-me de quando voltei para a escola
para terminar o segundo grau, aos 21 anos, de minha entrada no curso de letras
português/francês e de meu primeiro dia numa sala de aula como professor. Do
mestrado. E agora, finalmente, o dia D: a defesa do doutorado.
Passado o nervoso, deu tudo certo. Quando a defesa terminou,
quase quatro horas depois, uma página de minha vida virou. Os professores
disseram que o trabalho contribuiu para o campo e recomendaram a continuidade
da pesquisa. Subi mais um degrau. Para mim, aquele momento foi como um pódio.
Minha pesquisa desde a faculdade é na área da linguística,
uma ciência nova, foco de estudo nos últimos 100 anos, mas no Brasil até um
pouco menos do que isso. Em minha tese, abordo a semântica, uma área da
linguística. Estudo como o ser humano significa as coisas que ele percebe no
mundo e como ele se expressa pela linguagem, qual a relação da palavra. Meu
foco são os verbos de movimento. Por meio da linguagem a gente faz tudo. É
inerente ao ser humano. Ela revela o que você é.
Mas essas reflexões eu comecei a fazer mesmo antes de entrar
na academia. Nasci e cresci no bairro dos Moreiras, na periferia de Piedade, no
interior de São Paulo. Era uma bairro de gente humilde, pobre mesmo. Aprendi a
ler muito cedo, fui alfabetizado por minha mãe, Crelia Oliveira, quando tinha
uns 6 anos de idade. Ela recolhia livros e gibis descartados e me ensinou as
sílabas das palavras a partir de historinhas da Turma da Mônica, do Tio
Patinhas e do pistoleiro Tex Willer. Nessa época, ela e minhas duas irmãs mais
velhas já trabalhavam em um lixão que ficava na Rodovia Raimundo Antunes Soares
(SP-79), no caminho que leva de Piedade a Sorocaba, também em São Paulo.
Eu ia à escola, mas foi em casa que aprendi a ler e ganhei
gosto e hábito de leitura. E foi nesse período que também precisei trabalhar
com elas na separação do lixo descartável. De manhã eu ia para a aula na Escola
Estadual Maria Paula. Muitas vezes eu não conseguia escrever de dor, porque
meus dedos estavam cortados e não era incomum que meus cadernos tivessem manchas
de sangue.
Os tempos na escola, especialmente na infância, não foram
fáceis. De vez em quando eu ouvia os colegas dizerem “lá vem o lixeiro”. Outros
faziam questão de dizer que eu estava usando uma roupa que eles tinham jogado
fora e que eu, sem saber, tinha catado entre os materiais descartados. Eles
podiam comprar, mas minha roupa surrada era a achada no lixo, assim como, em
alguns dias, meu café da manhã era disputado com os urubus e cães. Eu sempre
sentava no fundo da sala, sozinho. Enquanto eles estavam brincando, eu estava
trabalhando.
Quando o sino soava para marcar o fim das aulas, eu descia e
subia as ladeiras caminhando por mais de uma hora até o lixão. No caminho, já
aproveitava para verificar o que podia ser recolhido de material reciclável das
lixeiras da cidade. Os colegas de turma viam aquilo com espanto e nojo.
Por isso, fui aprendendo aos poucos o que era ser invisível.
Só entre nós, garimpeiros, não éramos invisíveis. É assim que nos tratamos,
como garimpeiros. O trabalho no lixão me ensinou que neste mundo a gente está
para sobreviver. Se eu não trabalhasse, a gente ia morrer fome. Além de minhas
duas irmãs mais velhas, meus pais tiveram mais dois filhos, e meu pai era muito
ausente. Não lembro bem quanto a gente ganhava quando eu era criança, mas nos
últimos tempos, em 2006, eram R$ 75 por semana.
Havia épocas em que o trabalho no lixão não rendia muito, e
a gente alternava com outros serviços. Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos,
trabalhei para descendentes de japoneses no plantio e na colheita de morango e
alcachofra. O difícil ali era quando tinha de passar agrotóxico. Eles só davam
um lenço para cobrir o nariz, como num faroeste. E, quando eu vomitava, davam
leite para eu tomar. Ao chegar próximo do feriado de Finados, em novembro, eu
também trabalhava limpando túmulos em cemitérios.
Tinha de ir aonde dava mais dinheiro, mas o mais regular era
o lixão. Lá também a gente recolhia itens para casa, roupas para vestir, e eu
comecei uma biblioteca. Antes de o primeiro caminhão chegar, eu contava aos
outros garimpeiros o que estava procurando. Aliás, todo mundo contava. Se tinha
alguém esperando nenê, avisava que queria roupa de bebê e quem achasse trocava
por algo de que precisasse.
Eu pedia os livros, e os que estavam em bom estado eu levava
para casa. Meu intuito era fazer uma biblioteca comunitária. No começo, montei
umas prateleiras no meu quarto e fui catalogando. Cheguei a 900 direitinho.
Depois ficou complicado e fui separando só por autor. Cheguei a ter uns 3 mil
livros.
Desses que eu achei no lixão tenho até hoje Vidas secas, de
Graciliano Ramos, que é o livro de minha vida. Também guardo três do Machado de
Assis (Memórias póstumas, O alienista, Esaú e Jacó), Sagarana, de Guimarães
Rosa, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e Cem anos de solidão, de Gabriel
García Márquez.
Só que, com o tempo, foi se tornando cada dia mais difícil
trabalhar e ir para a escola. Minha mãe passou em um concurso para gari na
cidade, mas meus pais se separaram de vez e as contas não fechavam porque a
renda de toda a família era compartilhada. Quando terminei a oitava série, para
o desgosto de minha mãe, larguei a escola.
Fiquei parado em torno de seis anos, mas continuei lendo
bastante. Essa rotina nunca saiu de mim. O tempo foi me mostrando que aquela
vida não ia ter futuro, não só pela pouca renda, mas por causa do perigo das
doenças e também dos caminhões de lixo, que com frequência atropelavam alguém
no lixão.
Minha família insistiu para que eu voltasse à escola, e com
21 anos retornei aos bancos escolares para fazer o ensino médio. Minha mãe e
uma das minhas irmãs começaram a receber o Bolsa Família e aquilo fez uma
grande diferença em casa. Não foi simples, os dedos sangravam como antes, mas
decidi que iria terminar e fazer faculdade. Passei no vestibular de letras na
Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis, no ano de 2007. O dinheiro
outra vez foi um limitador, porque a Bolsa Permanência que recebia era de
apenas R$ 200. Só meu aluguel era R$ 150.
Mais ou menos na época em que me formei, minha mãe e minhas
irmãs também deixaram Piedade e vieram morar em Guaramirim, no interior de
Santa Catarina. Em 2011, já diplomado, entrei no mestrado da UFSC e aqui
permaneci. De lá para cá venho conciliando a pesquisa acadêmica com aulas de
português na rede pública. Não quero ser exceção e acho que minha própria
família já dá os sinais disso. Minha irmã mais nova está estudando pedagogia.
O lixão de Piedade não existe mais. Virou um aterro
sanitário. Depois da defesa, liguei para minha mãe e choramos um bocado. Ela
disse que iria à igreja contar que tem um filho doutor.
Ainda quero conhecer a França e fazer um pós-doutorado na
Universidade de Paris III, que faz parte da Sorbonne. No ano passado, tirei até
o passaporte, mas não consegui a bolsa. Doeu, mas as coisas que me abalam não
me derrubam mais.
Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com
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