Publicado originalmente no site El País Brasil, em 28 de agosto de 2017
A arte de manipular multidões
Técnicas para mentir e controlar as opiniões se
aperfeiçoaram na era da pós-verdade
Por Álex Grijelmo
A pós-verdade
A era da pós-verdade é na realidade a era do engano e da
mentira, mas a novidade associada a esse neologismo consiste na popularização
das crenças falsas e na facilidade para fazer com que os boatos prosperem.
A mentira dever ter uma alta porcentagem de verdade para ser
mais crível. E terá ainda maior eficácia a mentira composta totalmente por uma
verdade. Parece uma contradição, mas não é. Na sequência analisaremos como isso
pode acontecer.
A pós-mentira
Hoje em dia tudo é verificável e, portanto, não é fácil
mentir. Mas essa dificuldade pode ser superada com dois elementos básicos: a
insistência na asseveração falsa, apesar dos desmentidos confiáveis; e a
desqualificação de quem a contradiz. E a isso se soma um terceiro fator:
milhões de pessoas prescindiram dos intermediários de garantias (previamente
desprestigiados pelos enganadores) e não se informam pelos veículos de
comunicação rigorosos, mas diretamente nas fontes manipuladoras (páginas de
Internet relacionadas e determinados perfis nas redes sociais). A era da
pós-mentira fica assim configurada.
Quem se manifesta à margem da tese dominante recebe uma
desqualificação ofensiva que serve como aviso para outros navegadores
Dessa forma, milhões de norte-americanos acreditaram em uma
mentira comprovada como a afirmação de Donald Trump de que Barak Obama é um
muçulmano nascido no estrangeiro e milhões de britânicos estavam convencidos de
que, com o Brexit,o Serviço Nacional de Saúde teria por semana 350 milhões de
libras (1,4 bilhão de reais) adicionais.
A tecnologia permite hoje manipular digitalmente qualquer
documento (incluindo as imagens), e isso avaliza que se indique como suspeitos
os que reagem com dados certos diante das mentiras, porque suas provas já não
têm valor de fato. E se acrescenta a isso a perda de parte da independência na
imprensa com a crise econômica. O número de jornalistas foi reduzido e ela
precisou levar em consideração não só os leitores, mas também os proprietários
e anunciantes. Em certos casos, utilizam também técnicas sensacionalistas para
obter reações na Rede, o que fez com que perdesse credibilidade.
Com tudo isso, se chegou à paradoxal situação de que as
pessoas já não acreditam em nada e ao mesmo tempo são capazes de acreditarem em
qualquer coisa.
Muitos jornais dos Estados Unidos verificaram as dezenas de
falsidades difundidas pelo presidente Trump (em janeiro já havia dito 99
mentiras segundo o The New York Times), mas isso não as desativou. E a imprensa
britânica, por sua vez, esmiuçou as mentiras dos que pediam a saída da UE, mas
isso não desanimou milhões de eleitores.
A pós-verdade
A mentira sempre é arriscada, e requer formas muito potentes
para sustentar-se. Por isso as técnicas de silêncio costumam ser mais eficazes:
emite-se uma parte comprovável da mensagem, mas se omite outra igualmente
verdadeira. Aqui estão alguns exemplos:
A insinuação. Não é preciso usar dados falsos. Basta
sugeri-los. Na insinuação, as palavras e imagens expressadas se detêm em um
ponto, mas as conclusões inevitavelmente extraídas delas vão muito mais além. O
emissor, entretanto, poderá se defender afirmando que só disse o que disse, que
só mostrou o que mostrou. A principal técnica da insinuação na imprensa parte
das justaposições: ou seja, uma ideia situada ao lado de outra sem que se
explicite a relação sintática ou semântica entre ambas. Mas sua contiguidade
obriga o leitor a deduzir uma ligação.
Isso aconteceu em 4 de outubro de 2016 quando Iván Cuéllar,
goleiro do Sporting de Gijón, saía do ônibus de sua equipe para jogar no
estádio Riazor. Recebido com vaias pela torcida do La Coruña, Cuéllar parou e
olhou fixamente em direção aos torcedores. A câmera só enfocou ele, o que
levava à dedução de uma atitude desafiadora diante das vaias. E a situação foi
apresentada dessa forma em um vídeo de um veículo de comunicação asturiano.
Dessa forma, foram mostrados, justapostos, dois fatos: a torcida rival que
vaiava e o jogador que olhava fixamente em direção aos torcedores. Não demorou
a chegar a acusação de que Cuéllar havia sido um provocador irresponsável.
Ocorreu algo que aquelas imagens não mostraram: entre os
torcedores, uma pessoa havia sofrido um ataque epilético e isso chamou a
atenção do goleiro do Sporting, que olhou fixamente nessa direção para
comprovar que o torcedor estava sendo atendido (pelo próprio serviço médico do
clube). Ao verificar que o atendimento foi feito, seguiu seu caminho. Tanto a
presença dos torcedores como suas vaias e o olhar do jogador foram verdadeiros.
A mensagem, entretanto, foi alterada – e, portanto, a realidade percebida – ao
se justapor os acontecimentos ocultando um fato relevante.
A pressuposição e o subentendido. A pressuposição e o
subentendido possuem traços em comum, e se baseiam em dar algo como certo sem
questioná-lo. Por exemplo, no conflito catalão se difundiu a pressuposição de
que votar é sempre bom. Mas essa afirmação não pode ser universal, uma vez que
não se aceitaria que o Governo espanhol colocasse urnas para que a população
votasse se deseja ou não a escravidão. Somente o fato de se admitir essa possibilidade
já seria inconstitucional, por mais que a resposta esperada fosse negativa.
Primeiro seria necessário modificar a Constituição para permitir a escravidão,
e depois sim poderia ocorrer uma votação a respeito. Foi criada, portanto, uma
pressuposição segundo a qual o fato de votar é sempre bom, quando a validade de
uma consulta está ligada à legitimidade e à legalidade democrática do que é
colocado em votação.
Por vezes os subentendidos são criados a partir de
antecedentes que, - reunindo todos os requisitos de veracidade, se projetam
sobre circunstâncias que concordam somente em parte com eles. Por exemplo, nos
chamados Panama Papers foram denunciados casos reais de ocultação fiscal. Uma
vez expostos os fatos reais e criadas as condições para sua condenação social,
foram acrescentados à lista outros nomes sem relação com a ilegalidade; mas o
subentendido transformou a oração “tem uma conta no Panamá” em algo delituoso
que contribuiu com a criação de um estado geral de opinião falso. Não é crime
realizar negócios no Panamá e por conta disso abrir contas nesse país; mas se
isso se expressa com essa oração suspeita, o legal se transforma em condenável
pela pressuposição.
A falta de contexto. A falta do contexto adequado manipula
os fatos. Assim aconteceu quando o deputado independentista catalão Lluis Llach
recebeu ataques injustos por declarações sobre o Senegal. Em 9 de setembro de
2015, um jornal barcelonês postava em sua manchete esta frase, colocada na boca
do ex-cantor e compositor: “Se a opção do sim à independência não for
majoritária, vou para o Senegal”. Daí se poderia deduzir que ir para o Senegal
era algo assim como um ato de desespero (e uma ofensa para aquele país
africano). Desse modo interpretaram alguns colunistas e centenas de comentários
publicados sob a notícia. No entanto, o jornal tinha omitido um contexto
importante: Llach criou anos atrás uma fundação humanitária de ajuda ao Senegal
e, portanto, longe de expressar desprezo em suas palavras, ele mostrava o
desejo de se voltar para essa atividade se o seu esforço político fracassasse.
Nessa falta de dados de contexto se pode incluir a omissão cada vez mais
habitual das versões e das opiniões –que deveriam ser recolhidas com
neutralidade e honestidade– daquelas pessoas atacadas por uma notícia ou
opinião.
Inversão da relevância. Os beneficiários desta era da
pós-verdade nem sempre dispõem de fatos relevantes pelos quais atacar seus
adversários. Por isso, com frequência recorrem a aspectos muito secundários....
que transformam em relevantes. Os costumes pessoais, a vestimenta, o penteado,
o caráter de uma pessoa em seu entorno particular, um detalhe menor de um livro
ou de um artigo ou de uma obra (como naquele caso dos manipuladores de
marionetes em Madri)...adquirem um valor crucial na comunicação pública, em
detrimento do conjunto e das atividades de verdadeiro interesse geral ou
social. Desse modo, o que for opinião ou subjetividade sobre esses aspectos
secundários se apresenta como noticioso e objetivo. E, portanto, relevante.
A pós-censura
Até aqui foram analisadas brevemente (por razões de espaço e
de lógica jornalística) as técnicas da pós-mentira e da pós-verdade. Mas os
efeitos perniciosos de ambas recebem o impulso da pós-censura, segundo retratou
e definiu Juan Soto Ivars em Arden las Redes (Debate, 2017).
Neste novo mundo de pós-censura quem se manifesta à margem
da tese dominante recebe uma desqualificação muito ofensiva que serve como
aviso para outros navegadores. Assim, a censura já não é exercida nem pelo
Governo nem pelo poder econômico, mas por grupos de dezenas de milhares de
cidadãos que não toleram uma ideia discrepante, que se realimentam uns com os
outros, que são capazes de linchar quem, a seu ver, atenta contra o que eles
consideram inquestionável, e que exercem seu papel de turba mesmo sem saber
muito bem o que estão criticando.
Soto Ivars detalha alguns casos assustadores. Por exemplo, o
espancamento verbal sofrido pelos escritores Hernán Migoya e María Frisa a
partir dos respectivos tuítes iniciais de quem confundiu o que expressavam seus
personagens de ficção com o que pensava cada autor, e que foram secundados de
imediato por uma multidão endogâmica de seguidores que se apresentaram para o
bombardeio sem comprovação alguma. Fizeram a mesma coisa alguns jornalistas
que, para não ficarem de fora da corrente dominante, simplesmente recolheram
das redes o manipulado escândalo, branqueando assim a mercadoria avariada.
Esta inquisição popular contribui para formar uma espiral do
silêncio (como a definiu Elisabeth Noelle Neumann em 1972) que acaba criando
uma aparência de realidade e de maioria cujo fim consiste em expulsar do debate
as posições minoritárias. Nesse processo, as pessoas se dão conta logo de que é
arriscado sustentar algumas opiniões, e desistem de defendê-las, para maior
glória da pós-verdade, da pós-mentira e da pós-censura. Assim, o círculo da
manipulação fica fechado.
Álex Grijelmo é autor de La Información del
Silencio. Cómo se Miente Contando Hechos Verdaderos (A Informação do Silêncio.
Como se Mente Contando Fatos Verdadeir
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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