Publicado originalmente no site da revista TRIP, em 12 de julho de 2017
No seu lugar, mocinha
Aos 27 anos, Sâmia Bomfim, a mais jovem vereadora de São
Paulo na história, diz cumprir um mandato feminista e fala de temas importantes
para a sociedade, mas luta para ser ouvida
Por Gabriela Borges
Uma hora antes do horário combinado, a assessora de Sâmia
Bomfim avisa que o encontro com a Tpm terá de ser remarcado. A vereadora estava
doente em casa, sem voz e com febre. Ela havia trabalhado até às 3h30 da manhã
na noite anterior, em uma sessão extraordinária realizada para a votação do
Projeto de Lei de concessão do Estádio do Pacaembu. O PL é parte do projeto de
desestatização de bens públicos do prefeito de São Paulo, João Doria, e foi
aprovado com 37 votos a favor, dez contra e uma abstenção. Os vereadores, 55 no
total, não são obrigados a ficar até o final dessas sessões – eles podem
assinar presença e ir embora, ou faltar e ter um desconto no salário. Para
Sâmia, esse é um tema importante e ela queria declarar sua posição contrária.
Era 29 de junho e, na mesma noite, ocorreu uma audiência pública para o Dia
Internacional do Orgulho LGBT, a primeira na história da Câmara para discutir
esse tema, organizada por ela junto à Comissão de Direitos Humanos. Foram 19
horas de trabalho e a vereadora acredita que a energia pesada do plenário
contribuiu mais com a sua queda de resistência do que o cansaço físico.
Sâmia nasceu em Presidente Prudente, a 560 quilômetros da
capital paulista, e é formada em letras pela USP, onde começou a militar nos
movimentos estudantis e se descobriu feminista depois de ser ofendida e levar
um soco na cara de um militante de esquerda. Hoje, ouve cantadas no elevador ou
pelos corredores da Câmara. Porém, quando sobe no plenário e levanta a voz no
microfone para falar de temas como melhorias no atendimento às mulheres vítimas
de violência, veto ao aumento do salário dos vereadores, oportunidades de
trabalho para pessoas trans, vê que os mesmos homens não têm interesse em
escutar o que ela está propondo – e, muitas vezes, nem mesmo as outras dez
vereadoras eleitas.
Em outubro do ano passado, apesar dos poucos 12.464 votos –
numa cidade com 8,88 milhões de eleitores –, Sâmia se tornou, aos 27 anos, a
mais jovem vereadora de São Paulo na história – e a primeira eleita pelo PSOL.
Chegou à Câmara como parlamentar meses depois de ser expulsa de lá por
protestar contra uma homenagem a dois dos responsáveis pela exclusão da palavra
“gênero” do Plano Municipal de Educação.
O que leva uma jovem paulista moradora do bairro de
Pinheiros a ir além da militância na rua para encarar o caos político do Brasil
(em um momento em que uma grande quantidade de jovens diz não acreditar mais em
política)?
Tpm. A energia é muito pesada aqui na Câmara?
Sâmia Bomfim. Muito. A gente quer bater, mas tem que dar
tapinha. É como conviver com o inimigo. Ser colega de trabalho de pessoas com
quem você não tem a menor afinidade. Acho que ficar doente é uma consequência
de tudo isso.
Você tem aliados aqui dentro? Depende do tema. Tento tirar
leite de pedra. Sempre procuro as vereadoras das outras bancadas, mesmo que
elas sejam membros da Assembleia de Deus, do PRP. Sei que não vão ter afinidade
com direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, mas com a violência contra a
mulher elas podem se sensibilizar, porque na igreja, muito provavelmente,
atendem e recebem várias pessoas que passam por isso. A saída para o problema
talvez seja diferente da minha, mas vamos encontrar uma interlocução.
E abre espaço para outros assuntos, como o aborto? A
violência que unifica as mulheres é a física e a sexual. E, mesmo a sexual, é
só o estupro. O assédio, as cantadas, já é avançado demais. Mas nós conseguimos
instaurar uma CPI aqui na Câmara para investigar a vulnerabilidade da mulher e
eu trouxe o médico André Luiz Malavasi, do hospital Pérola Byington, para falar
sobre o aborto legal. Essas coisas não são ditas nunca aqui. Se sou eu quem
fala vira um "ah, é aquela feminista louca do PSOL". Se é o médico referência
do Pérola Byington, tem outro impacto.
Você consegue unir forças com os outros vereadores? Tento a
partir dessas pautas que são mais consensuais. Com aborto é mais difícil. Tenho
um projeto de lei que é para regulamentar o serviço de atendimento ao aborto
legal no município. Fazer com que os hospitais que oferecem o serviço sejam
mais bem equipados, tenham profissionais. Mas eles foram barrados na CCJ
(Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa), que é a
primeira comissão. Eu só quero que o município de São Paulo se adeque a uma lei
que já existe, mas não teve conversa. Nem foi adiante.
“Que tipo de poder é esse, se não querem ouvir o que tenho a
dizer? É como se estivessem me falando o tempo todo 'coloque-se no seu lugar'" Sâmia Bomfim
Como é o seu dia a dia? Muitas vezes, me sinto uma
manifestante aqui na Câmara, só que com a vantagem de que o poder público é
obrigado a me ouvir, porque faço parte dele agora. Antes eu era uma voz que
gritava. Agora, sou uma voz aqui de dentro que está expondo as feridas. Mas,
por outro lado, que tipo de poder é esse, já que sou absolutamente isolada, que
não querem ouvir o que tenho a dizer? Sinto como se estivessem me falando o
tempo todo "coloque-se no seu lugar, mocinha".
Você sente mesmo muito machismo? Muito. O machismo é
presente em todo e qualquer espaço da sociedade. O mais sutil vem da combinação
entre ser mulher e ser jovem. Tem senhor da idade do meu pai, só que muito mais
reacionário, que me dá até cantada. Isso porque não estou dentro do padrão de beleza,
sou gordinha e tal. Quando estou maquiada escuto "vai ver alguém?".
Como assim?! Vou ver minha cara no espelho! Em dias que não tem sessão e venho
de vestido é a barbárie. E tem também o machismo mais sério, de ignorarem
minhas pautas em conversas informais e até mesmo nos espaços regimentais,
quando o presidente não me dá a fala, mas dá para um homem. É difícil.
O que significa um mandato feminista? É dar voz à agenda
feminista, mesmo sabendo que algumas batalhas são perdidas. É fazer uma fala na
tribuna quando estoura o caso de alguém que foi vítima de estupro coletivo; se
for para homenagear alguém, que seja uma mulher feminista. O aumento de
mulheres na Câmara tem a ver com o fortalecimento do feminismo na sociedade e
de um esforço consciente também de fortalecer legendas. É muito positivo. É
mais fácil eu conversar com a Adriana Ramalho, do PSDB, do que conversar com o
Amura, do mesmo partido. É muito importante ter mais mulheres,
independentemente da bancada. Mas não são mandatos feministas, então, muitas
vezes, elas vão defender quem eu contesto.
“Dentro da esquerda também tem muito machismo” Sâmia Bomfim
Você sempre foi feminista? Não. Minha família não é
politizada. Conheci o feminismo através do movimento estudantil, na luta por
cotas nas universidades, por mais verbas para a educação. Só que dentro da
esquerda também tem muito machismo. Uma vez eu estava na mesa de uma assembleia
e o sujeito de uma outra organização falou, em tom de piadinha: "Da
próxima vez coloca um homem na mesa que garante melhor". Fiz um escândalo.
Você tinha quantos anos? Dezoito ou 19. Achei o fim do
mundo. Encontrei apoio em um coletivo feminista que estava se formando, do qual
eu não participava, porque ainda não via importância. Depois, em outra
assembleia, fui agredida com um soco no rosto pelo mesmo cara. Hoje isso não
aconteceria, todas as assembleias precisam ter pelo menos uma mulher e um
negro, sem contestação. Foi nesse momento que caiu minha ficha. Quando eu
estava saindo do movimento estudantil, já mais velha, e decidi militar no
feminismo, ajudei a organizar o ato contra o Eduardo Cunha, em 2015, e aí foi.
O que a sua família acha de você trabalhando aqui na Câmara?
Eles odiavam que eu militava. Quando tinham notícias, eram em tempos terríveis,
polícia, tropa de choque. Quando me candidatei, mudou, porque a imagem do
parlamentar é mais próxima. Minha mãe deu entrevista pro jornal da minha cidade
e acha o máximo. Às vezes se arrisca a falar que estou exagerando, que o
parlamento não é a rua. Mas explico que se não for para ser como eu era na rua,
vou estar enganando meus eleitores. Meu pai está começando a gostar só agora.
Nas redes sociais você tem um jeito muito relaxado, posta
que está no bar, tomando cerveja. Passou a se preocupar mais com a exposição?
Cara, reflito muito sobre isso. Sempre gostei de ir ao bar, beber, fazer todas
essas coisas que as pessoas fazem. Agora não tenho tempo, mas, quando saio, me
divirto mesmo. Nunca teve problema porque saí, mas tem quando vou a alguma
manifestação. Inclusive aqui no plenário. Me denunciam, dizem que num dia de
trabalho a vereadora está tomando bomba – e eu com a cara toda cheia de leite
de magnésio para poder respirar o gás.
Você acha que a exposição pessoal te incomodaria mais do que
essa exposição da sua militância? Me incomodaria mais. Eu falo com orgulho que
estava militando. A exposição pessoal não tem por quê, né?
Mas você também não deixa de viver e fazer suas coisas. Não.
A diferença é que agora tem gente que me reconhece na rua. Nunca ninguém me
abordou para me xingar. Mas eu devo ter cruzado com alguém que me odeia, não é
possível.
Como você lida com os ataques na internet? Eu tenho ajuda na
administração de boa parte das minhas redes sociais e recebo um relatório
semanal. É todo tipo de xingamento, mas eu não me importo. Me afeta quando me
chamam de vadia. Quando é sobre a minha forma física eu mando à merda. Às
vezes, se é alguém que poderia gostar de mim e não gosta por um mal-entendido,
faço questão de explicar. Já cheguei até a pedir o telefone da pessoa e ligar
para explicar.
Seus votos estavam concentrados na "bolha da zona
oeste" de São Paulo, mas suas propostas não ficam só nela. Por que isso
aconteceu? Acho que tive mais votos ali porque são lugares de debates e
reflexão da classe média universitária, como eu. E tem a ver com o perfil do
PSOL e o espaço que sobra para a esquerda nesse momento de construção de uma
alternativa. Hoje, quem chega às periferias são as igrejas evangélicas, quem
têm pautas mais conservadoras. O PSOL precisa ir para esses lugares se quiser
ser um partido grande. É mais fácil ir para a classe média, mas esse voto de
opinião é muito incerto. Precisamos estar mais na periferia e fazer com que o
povo se sinta representado.
“Precisamos de uma renovação política completa, que parta
dos grupos de periferia, de coletivos de cultura. E precisa ser etária” Sâmia Bomfim
Existe uma sensação generalizada de que, mesmo se saírem todos
os corruptos, não temos em quem votar. Você acha que os jovens estão realmente
se empenhando para entrar na política e fazer diferente? Muito pouco. A maioria
dos que estão buscando renovar a política, até por uma demanda dos próprios
partidos, ainda é esse jovem publicitário, de classe média, que tem acesso aos
debates com mais facilidade. Precisava de uma renovação completa, que partisse
dos grupos de periferia, de rap e hip-hop, de coletivos de cultura. E precisa
ser etária. Sem negar alguns parlamentares mais velhos, como o Eduardo Suplicy,
que tem 76 anos e ainda cumpre com um papel fundamental. Mas parte de seus 300
mil votos podem ser para outras pessoas, ele não precisa de tudo isso.
Por que esses votos não são distribuídos? Ainda ganha quem
tem dinheiro. A minha campanha custou R$ 35 mil, teve gente que gastou R$ 2
milhões. Porra, meu comitê era meu apartamento!
Falando de raça, gênero, orientação sexual, só a
representatividade importa hoje na política? Estar no poder é o suficiente se
você não estiver lutando por causas que tenham a ver com aquilo que você
representa? O Fernando Holiday, por exemplo, é um caso específico. Desconstrói
e questiona vários dos símbolos progressistas. É um negro contra as contas, um
jovem gay da periferia que acredita em mérito pessoal e não em políticas
inclusivas.
É uma jogada política? Ele sabe o que faz, mas é também o
jogo de todo o “projeto Holiday”, porque ele é um projeto. O MBL (Movimento
Brasil Livre) não é formado por um bando de moleques inconsequentes, tem
mentores que são homens mais velhos que sabem exatamente o que estão fazendo.
Mas ele é um caso à parte, existe um meio-termo. Por exemplo, o fato de hoje
serem 11 vereadoras em São Paulo, no mandato anterior eram seis. É um avanço,
porque estamos quebrando uma das barreiras do machismo, que é o fato de a gente
nem poder pisar aqui dentro, de os partidos não financiarem as campanhas,
furando os 30% obrigatórios das chapas eleitorais. Mas é insuficiente. A
representatividade importa, mas não garante.
“Precisamos falar da mulher que acorda às 5 da manhã, pega
ônibus, não tem vaga na creche e deixa o filho com a vizinha, que apanha do
marido” Sâmia Bomfim
Sobre o que nós, mulheres, precisamos falar hoje? Para onde
ninguém está olhando e nós precisamos olhar? O feminismo está em um setor da
nossa sociedade que é escolarizado, progressista, dos centros. Precisamos falar
da mulher que acorda às 5 da manhã, pega ônibus, não tem vaga na creche e
precisa deixar o filho com a vizinha, que apanha do marido. É a grande maioria
das mulheres, mas quem chega nelas é a novela. A gente precisa fazer a
Angélica, por exemplo, falar de feminismo. É importante que o Zorra total tenha
mudado, mas quero que no intervalo tenha um anúncio do Disque 180 e que as
mulheres agredidas possam ir na delegacia e sejam bem atendidas.
A frase do momento é "The future is female". O que
isso significa para você? É evidente que as mulheres estão incomodadas com o
machismo e estão na luta, cada uma a seu modo. Isso vai avançar e não
retrocede.
Quando foi eleita, você disse que a instituição normalmente
é sua inimiga e que ainda não dava para saber o que significa fazer parte dela.
E agora, já dá para saber? Ainda não! Preciso entender essas contradições; ela
segue sendo minha inimiga, mas estou aqui dentro. Tenho poder, mas não tenho.
Ninguém respeita. O que eu defendo não condiz com o poder.
A sua eleição é reflexo das manifestações de junho de 2013?
De certa forma, sim. Porque ali abriu uma ruptura na política que teve
desdobramentos à esquerda e à direita, de contestar as velhas figuras
políticas, a falta de referência e de representatividade. O crescimento das
manifestações feministas também é um desdobramento. Assim como o Fernando
Holiday.
O gigante acordou, mas se espalhou, né? Tem braços de várias
formas, mil cabeças. É um gigante meio confuso, que tem perna direita e perna
esquerda. [Risos]
Você já chorou aqui dentro da Câmara? Já, de ódio. Muitas
vezes. Ou eu estouro ou eu choro. Chorar às vezes é a melhor forma de colocar
para fora a sua raiva. Não é fragilidade, é ódio!
Mas as pessoas já te viram chorar e acharam que era
fragilidade? Eu não choro na frente deles, imagina. Estou sempre firme. Às
vezes a voz treme, mas não choro. Só escondido. [Risos.]
Texto e imagem reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
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