Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 18 de fevereiro de 2024
A era da fragilidade
O ambiente tóxico criado pelas guerras culturais atuais surge como um jogo em que todos perdem. Fernando Schüler para a Veja:
Ronaldo e Raquel marcam o primeiro encontro em um restaurante bacana. Ambos jovens, a expectativa é grande, mas nada funciona. “Gosto dele”, diz Ronaldo, seco, depois de escutar Raquel falando de seu “horror” com uma volta de Trump à presidência americana. Milei, mudança climática e mais dois ou três assuntos arruinaram o que deveria ter sido um encontro romântico. Coisa de doido? Não, infelizmente. É o que vai se repetindo nos almoços da turma do escritório, no grupo de WhatsApp da faculdade, nos almoços de família. Efeito de um dos mais curiosos fenômenos da nossa época: a distância que se cria, mundo afora, entre as posições ideológicas de homens e mulheres jovens, na faixa dos 18 aos 30 anos. Em grandes democracias como os Estados Unidos, Alemanha, Coreia do Sul ou Reino Unido, a diferença entre rapazes “conservadores” e gurias “progressistas” gira em torno dos 30%, e continua crescendo. No Brasil, o Datafolha mostrou o dobro da preferência pela esquerda, entre as mulheres, contra um equilíbrio entre eleitores masculinos.
John Burn-Murdoch, do Financial Times, acha que o movimento #MeToo foi o gatilho do processo. O movimento que desencadeou uma onda de denúncias em torno do assédio sexual. Exagero. O #MeToo é parte do Zeitgeist atual, mas não é seu originador. Não há uma explicação consensual para o fenômeno, mas algumas hipóteses. O gap ideológico cresceu com rapidez a partir da última década. A época do Great Awokening, o despertar dos temas associados à “justiça social” e seu “pânico moral” (expressão de Mark Lilla) em torno das questões de identidade de gênero, raça e orientação sexual. É exatamente nesse período, que se inicia por volta de 2011, que crescem de maneira assustadora os índices de depressão entre adolescentes. Não de maneira uniforme, mas obedecendo a uma gradação: meninos conservadores menos vulneráveis. Depois as meninas conservadoras, os meninos progressistas e, no fim da fila, mais sujeitas às tendências depressivas, as meninas progressistas. Catherine Gimbrone, da Universidade Columbia, diz que “alunos conservadores relataram consistentemente menos sintomas de internalização”. Isto é, sua vulnerabilidade ou percepção negativa dos dramas cotidianos, das ofensas, das desgraças do mundo, reais ou imaginárias, é menor.
É apenas uma hipótese. A cultura subjacente ao Great Awokening é binária. O feminino surge como polo positivo diante da “sociedade patriarcal” e seus demônios. Isso se reflete no plano da retórica, da estética e no ajuste na estrutura de direitos. A partir daí, sua contraface: a migração dos homens mais jovens para posições conservadoras. Algo que me lembrou da socióloga Arlie Hochschild e sua imagem genial para definir a mentalidade conservadora americana. Arlie passou cinco anos vivendo em uma comunidade ultraconservadora no sul dos EUA. Concluiu que aquelas pessoas percebiam seu mundo como uma longa fila em que todos aguardam, trabalhando duro, porque sabem que lá na frente há o “sonho americano”. Em um certo momento, porém, começam a perceber que há um monte de gente furando a fila. E o resultado é a raiva social. Se observarmos no mundo real das oportunidades educacionais, teremos um sinal do espectro desenhado por Hochschild: 60% dos estudantes universitários americanos, hoje, são mulheres, e nos processos de admissão do ano passado superaram os alunos homens em torno de 35%. Estudantes homens evadem mais do ensino médio, são pressionados pelo mercado de trabalho. No Brasil, não é diferente. No último Enem, 61,3% dos estudantes eram mulheres, contra 38,7% de homens. O curioso é reação engajada. De um lado, o silêncio; de outro, manifestações de que tudo é “muito positivo”. Significa que a desigualdade ou a falta de “diversidade” só é ruim para um lado. Para o outro, é bem-vinda. Sob o manto de palavras generosas, recriamos um hiato entre a retórica e o mundo real.
Os sintomas estão aí. O ambiente tóxico criado pelas guerras culturais atuais surge como um jogo em que todos perdem. Novas formas de exclusão, por um lado, e uma permanente sensação de fragilidade e perda de autodomínio, por outro. O resultado é a exacerbação de um tipo de cultura da vitimização, segundo a psicóloga Rahav Gabay, da Universidade de Tel Aviv. O mindset vitimista traz algumas marcas definidas: uma contínua busca pelo reconhecimento de sua condição de “vítima”; uma crença em sua própria “superioridade moral” em relação aos demais; a baixa empatia pelo sofrimento dos outros, sejam eles os “conservadores”, os “privilegiados” ou qualquer um do lado “errado” das clivagens sociais. E, por fim, a propensão de “ruminar sobre vitimizações passadas”. A “ferida purulenta”, na expressão de Nietzsche. O que mais me chamou a atenção foi a conexão entre o mindset da vítima e a perda do sentido da potência individual. A crença perversa de que “a vida de cada um está sob o controle de forças externas a si mesmo”. O avesso do “você quer, você pode”, na frase de Obama que tanto irrita os detratores do mérito.
Deveríamos caminhar na direção precisamente oposta. Evitar os excessos da política e seu assalto sobre a vida pessoal. Preservar um saudável ceticismo, e uma distância segura, diante de qualquer grande narrativa, de esquerda ou direita. Levar a sério, e não apenas seletivamente, a ideia de diversidade, aceitando que cada um tenha a sua tribo. E entender que jamais deveríamos destruir uma velha e terna amizade por causa do que alguém acha de Lula ou Bolsonaro, Greta Thunberg ou Elon Musk. Este último, aliás, perdeu sua própria filha, que ainda na adolescência decidiu que o pai era um bilionário desprezível, responsável pelos males do planeta. O que nos resta, no fundo, é um tipo de atitude. O psicólogo Scott Kaufman sugere trocar o mindset da vítima pelo “mindset do crescimento”. A ideia de que nossos traumas “não precisam nos definir”, e que é justamente a “sabedoria de lidar com o sofrimento que pode nos fazer pessoas melhores”. De minha parte, sigo as lições do velho turco ao Cândido e sua trupe, na obra-prima de Voltaire. A ideia de que, diante de “todo o mal que há na terra”, o mais prudente era reconhecer que sabíamos muito pouco. Que era preciso retomar o controle. Esquecer “o que se passa em Constantinopla” e aprender que, para além de toda a pretensão humana, “cultivar o próprio jardim” era o melhor que tínhamos a fazer.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com
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