quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Filme de diligência

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 2 de fevereiro de 2024

Filme de diligência

Não é que Nelson Rodrigues tenha necessariamente se inspirado nesses filmes, se bem que isso pode ter acontecido, mas ele viveu num contexto bem próprio dos filmes de diligência. Josias Teófilo para a Crusoé:

A revista O Cruzeiro de 21 de janeiro de 1956 publicou uma sessão chamada Arquivos Implacáveis com Nelson Rodrigues. O dramaturgo respondeu dez itens do que gosta e do que detesta. Entre os que detesta estão “samba”, “psicanalista”, “qualquer político”, “sujeito inteligente”. Entre os que gosta estão “visitar cemitérios”, “mulher bonita e burra”, “fluminense” e… “filme de diligência”. O que seria filme de diligência? Não é um termo usual. Na verdade eu nunca o tinha ouvido.

Diligências eram as grandes carruagens que levavam passageiros, malas e correspondências entre as cidades americanas. Estamos falando, portanto, de filmes de faroeste. Um dos clássicos dessa arte é justamente No tempo das Diligências, de 1939, estrelado por John Ford.

Mas há também quem trate assim os filmes sem diálogos inteligentes, sem referências artísticas, sem o método stanislavski de atuação. Eles também não têm a jornada do herói, bons valores a serem passados ao espectadores. É cinema puro e límpido. Diálogos simples. Um problema que se resolve – de preferência a solução de um crime, ou a trama para realizá-lo. Tudo em preto e branco e tons de cinza. E o mais: nesses filmes praticamente não existe a bondade no mundo. Os bandidos são maus, a polícia também. Os bandidos são frios, totalmente insensíveis. As vítimas também. Toda e qualquer pessoa fuma. Fuma em qualquer ambiente e sem parar.

Esse tipo de filme foi feito num período soturno da historia da humanidade: o período entre as guerras, e posterior à Segunda Guerra – quando a Europa estava sendo reconstruída, e o trauma daquele período ainda estava no ar.

Foi uma época de espiões, fotógrafos de guerra que arriscavam a vida para realizar fotos (como Robert Capa), cineastas filmaram no front em meio a bombardeios (como John Ford), escritores que foram soldados, jornalistas que desapareciam. Foi uma época de perigos e desencontros. Isso ficou impresso nos filmes de Fritz Lang (M), Marcel Carné (Le quais des brumes), Julien Duvivier (Les temps des assassins), Alfred Hitchcock (Rebecca), John Ford (No tempo das diligências), e tantos outros. E na dramaturgia de Nelson Rodrigues, que viu os filmes desses diretores nos antigos cinemas do Rio de Janeiro – provavelmente na Cinelândia.

Não é que Nelson Rodrigues tenha necessariamente se inspirado nesses filmes, se bem que isso pode ter acontecido, mas ele viveu num contexto bem próprio dos filmes de diligência. Teve um irmão morto. Passou privações materiais e a fome. Foi jornalista policial. Internou-se num sanatório. Lá conviveu com loucos, assassinos. Cobriu assassinatos, suicídios e daí tirou inspiração para peças e crônicas memoráveis.

Nelson Rodrigues poderia muito bem ser personagem de um filme de Marcel Carné na Paris dos anos 1950. Ou num filme americano contracenando com Humphrey Bogart, fumando e frequentando cemitérios.

Por vezes em suas peças tem-se a mesma impressão que nos filmes de diligência: todo mundo é mau. E os personagens repetem: “Eu sou um canalha”, como em Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende. Trata-se da história do jovem Edgar, convidado a casar-se com uma jovem, filha do seu patrão. Edgar, entretanto, ama Ritinha, uma moça que se prostitui para sustentar a família depois que a mãe foi demitida injustamente dos Correios. As irmãs acabam se prostituindo, e o responsável é exatamente o patrão de Edgar, que usa do dinheiro para corromper as jovens. “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer”, é dito na peça.

É tanto mau que o espectador fica atordoado. É maldição atrás de maldição (se bem que o final da peça é feliz, de certa forma). Por que tudo isso? Manuel Bandeira explica: “A ficção de Nelson Rodrigues está cheia de coisas atrozes e imorais. É verdade, a vida também, mas quem, acreditando em Deus, ousaria classificá-lo de imoral. Por que a vida, criação de Deus, está cheia de coisas atrozes e imorais?“. Tal explicação serve perfeitamente para os filmes de diligência.

Texto e imagem reproduzidos dp blog: otambosi blogspot com

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