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Artigo compartilhado do site JORNAL DO BRASIL, de 29 de fevereiro de 2024
Ser humano: ser sexuado
Por Maria Clara Bingemer (mhgpal@gmail.com)
A sexualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, algo que sempre o questionou ao longo dos tempos. Por atingir todas as dimensões da identidade humana, levantou questões conflitivas e críticas, assim como inspirou as mais belas produções poéticas e artísticas da humanidade. Com relação à religião, a sexualidade tem uma história de diálogo e confronto que até hoje marca a vivência de fé das pessoas e das comunidades religiosas.
Alguns autores refletiram sobre essa dimensão antropológica fundamental, seja na história geral ou na história específica do cristianismo, religião predominante no Ocidente. O britânico Peter Brown em seus inúmeros e importantes trabalhos ressalta a importância da questão da sexualidade na complexa construção do poder dentro da organização do Cristianismo. Em sua reflexão encontram-se elementos tais como a relação entre sexualidade e espiritualidade, incluindo aí tudo que diz respeito à continência sexual, jejum, ascese e penitência. Um de seus argumentos é que a desconfiança dos Padres da Igreja em relação à sexualidade nos primeiros séculos foi uma reação contra a libertinagem do Império Romano tardio, onde o cristianismo viveu seus primeiros momentos e se organizou como proposta.
Santo Agostinho foi um dos pensadores cristãos que desenvolveu o tema da religião e da sexualidade. Seus escritos trouxeram algo novo à visão dominante nos círculos intra-eclesiais. Tratou de questões delicadas, como a virgindade, castidade, fornicação e casamento elaborando elementos de uma moral sexual cristã. Seu pensamento influenciou e moldou teoria e prática da Igreja. Da mesma forma, a visão agostiniana, embora tenha predominado até os dias de hoje na teologia moral e no pensamento eclesial, recebeu diferentes interpretações ao longo do tempo.
A Reforma Protestante trouxe novidades significativas para a compreensão da sexualidade que existia na Idade Média. A recuperação do significado original da prática da castidade e da virgindade enraizadas no texto bíblico e com ela a valorização e a aceitação do casamento tanto para leigos quanto para clérigos, foi uma das mudanças mais significativas que a Reforma introduziu na vida cristã nas fronteiras entre a Idade Média e a Modernidade. Nesse aspecto, Martinho Lutero faz uma importante contribuição para a compreensão teológica cristã da sexualidade humana, ampliando-a para além de sua compreensão anterior.
A corrente dominante no Ocidente hoje concebe a sexualidade como um direito individual: entre adultos que consentem com o contato e a relação sexual entre si e vivem um código em que a libido é lícita. A moral cristã, diante dessa concepção, adota uma posição contracorrente, ao continuar sustentando que existem leis naturais e divinas - que também seriam objetivas e cognoscíveis - que delimitam o espaço do permitido e do proibido no que diz respeito à sexualidade. O consentimento individual não seria suficiente para delimitar uma prática proibida por essas leis. Devido a isso, muitos cristãos se sentem rejeitados ou excluídos de uma Igreja que lhes propõe práticas nas quais eles não se veem contemplados. Ou então sentem-se desconfortáveis diante de uma concepção quase que meramente jurídica da prática da sexualidade que não se coadunam de forma positiva com a vivência existencial da fé e a experiência espiritual da Transcendência Divina como experiência de amor e misericórdia.
Diante disso, é urgente voltar, parece-nos, ao texto bíblico do relato da Criação que possibilita uma reflexão teológica sobre a condição humana sexuada. O texto do Gênesis diz que Deus criou o homem macho e fêmea: "Ele os criou à imagem de Deus e os criou macho e fêmea "ish ischah” (Gn 1:27), mas é preciso observar que a sexualidade no texto bíblico não se refere apenas à genitalidade. A diferença sexual afeta todos os elementos da corporeidade humana. Ela não afeta apenas o corpo, mas caracteriza o ser humano como um todo. Não são as glândulas que têm demandas sexuais, mas todo o ser humano. Os apetites sexuais não são direcionados apenas para os órgãos sexuais do outro sexo, mas para a outra pessoa como um todo, como portadora da determinação sexual. A diferenciação sexual não se limita à esfera biofísica, mas também atinge a esfera psicológica, pois é um constitutivo antropológico. A sexualidade é uma parte ineludível de todo ser humano, mas o ser humano não se reduz à sua sexualidade. É Eros, não logos. e encontra a raiz de sua compreensão no impulso vital que lança o indivíduo humano em direção ao outro por meio do desejo, da proximidade, do contato, da comunicação, a fim de alcançar a comunhão.
A sexualidade orienta o homem em direção à alteridade: "Não é bom que o homem esteja só; eu lhe darei uma companheira como ele" (Gn 2:18). O ser humano único encontra sua plenitude na enriquecedora diferença e reciprocidade a ele dadas pelo outro. Essa reciprocidade no amor é expressa na doação sexual: "Adão conheceu Eva, sua mulher" (Gn 4:1). A diferenciação sexual na verdade pertence à semelhança do humano com o divino, ou seja, ela o torna capaz de amar e ser amado. Como parte da criação, a sexualidade, por um lado, é distinta da divindade e, por outro lado, é caracterizada como a vontade e a marca de Deus em Sua criação.
O ser humano é sexuado e isso revela sua relacionalidade marcada pela alteridade. Essa alteridade que o configura em sua identidade constitutiva é o que revela sua vocação para ser a imagem de Deus, que é comunhão em seu ser mais íntimo. O próprio termo - comunhão - fala da identidade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo e da identidade do ser humano, criatura desse Deus, criado à sua imagem e semelhança. Ser humano é ser um filho da comunhão e não da solidão, é ser chamado e destinado à comunhão.
A criatura humana é relacional e transcendente, aberta ao mundo, aos outros, a Deus. É criatura destinada à comunhão. Por isso não se pode falar das núpcias entre o barro e o sopro, entre a terra e o céu, entre a argila e o espírito sem evocar a sexualidade. Esta não deve ser temida ou rejeitada como perigo ou lugar de tentação, mas acolhida como constitutiva de humanidade e caminho de plenitude.
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Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo: Paixão por Deus em tempos de descrença” (Editora Rocco), entre outros livros.
Texto reproduzido do site: jb com br
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