O cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso no
ducumentário 'Narciso em férias'.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
7 de setembro de 2020
Caetano Veloso: “Minhas expectativas sobre o Brasil não são
tanto a esperança. São mais a responsabilidade”
Cantor e compositor baiano estreia no Festival de Veneza o documentário
‘Narciso em férias’, em que narra sua prisão durante a ditadura militar
brasileira
Por Joana Oliveira
É impossível cantar o Hino Nacional com a melodia da
Tropicália. Os versos do Hino são decassílabos, enquanto os da música composta
e cantada por Caetano Veloso têm oito sílabas poéticas. Além disso, a
acentuação poética das duas canções é totalmente diferente. Isso foi o que
respondeu o artista baiano no interrogatório a que foi submetido pela ditadura
militar brasileira, que o acusou de fazer “terrorismo cultural” e o manteve
preso, junto com o amigo Gilberto Gil, de 27 de dezembro de 1968 —14 dias
depois do AI-5— a 19 de fevereiro de 1969, uma quarta-feira de cinzas. Os dois
meses de cárcere, cuja primeira semana foi em uma solitária, foram descritos pela
primeira vez na autobiografia Verdade Tropical (Cia. das Letras, 1997) —que
ganhou uma nova edição em 2017—. Um ano depois, os diretores Renato Terra e
Ricardo Calil gravaram o documentário Narciso em férias, homônimo ao capítulo
em que Caetano narra os infortúnios de sua prisão semi-clandestina. A
coprodução Uns Produções e VideoFilmes estreia nesta segunda-feira no Festival
de Veneza, fora de competição, e é o único filme brasileiro no evento.
A ideia foi de Paula Lavigne, ou Paulinha, como Caetano se
refere amorosamente à sua mulher, produtora e empresária. “A entrevista comigo
seria a base para um documentário mais convencional, com outras locações e
outras entrevistas. Ao ver o material, os dois diretores acharam que ali tinham
tudo”, conta o cantor em entrevista por e-mail ao EL PAÍS. De fato, a imagem de
Caetano sentado em uma cadeira simples, poucas vezes com o violão na mão a
cantar, no fundo cinza de uma sala vazia do espaço cultural inacabado da Cidade
das Artes, no Rio, é mais que suficiente para embeber o espectador na história
que, embora pessoal, é parte de um dos períodos mais tenebrosos da história do
Brasil.
Durante a prisão, Caetano secou. Não conseguia chorar e, no
que Gil chamou do “silêncio do sexo”, sua libido minguou: tampouco conseguia
masturbar-se, algo que, como ele mesmo conta, sempre havia sido uma atividade
quase terapêutica. A ereção não vinha. Sua superstição, no entanto, nascida com
ele em Santo Amaro, na Bahia, intensificou-se entre as celas. A visão de uma
barata era um mau agouro, assim como canções como Súplica, de Orlando Silva, e
Onde o céu azul é mais azul, de Francisco Alves. Ainda hoje, o mero título
desta última fica preso na garganta e faz água nos olhos de Caetano. É como que
impronunciável. Os bons presságios, por outro lado, ficavam a cargo de músicas
como Hey Jude, dos Beatles, e Irene, a única que compôs no cárcere, em
lembrança e saúde do sorriso da irmã caçula.
A maior bem-aventurança era, certamente, a presença de Dedé
Gadelha, sua esposa na época que, tal qual uma detetive, descobriu onde Caetano
estava preso e insistiu até conseguir visitá-lo. Em Narciso em Férias, o único
momento em que ele vai às lágrimas é quando recorda o sargento que facilitou os
encontros entre os amantes.
Pergunta. Há quem diga que revisitar e recontar momentos
traumáticos são um exorcismo emocional. O que o fez recontar sua prisão,
narrada em Verdade Tropical, em um documentário? Trata-se de mais um exorcismo?
Resposta. Tomara. Faz uns três anos, sugeri a publicação em
separado do capítulo Narciso em Férias, de Verdade Tropical. Paula Lavigne teve
a ideia de fazermos um documentário sobre o que é narrado ali. Ela, produtora e
empresária, pensava em economizar a energia que seria gasta em tentar dizer
“não” a possível convites para levar aquilo às telas. Mas também queria que, se
tomássemos a decisão de fazer, que tudo fosse feito de modo belo e honesto.
Como eu tinha gostado imensamente de Uma Noite Em 67 [sobre o festival de
música na antiga TV Record], ela convidou Renato Terra e Ricardo Calil para
dirigir. E nos levou para a Cidade das Artes, para que uma entrevista comigo
fosse rodada na sala vazia do que fora construído para ser um cinema. A
entrevista seria a base para um documentário mais convencional, com outras
locações e outras entrevistas. Ao ver o material, os dois diretores acharam que
ali tinham tudo.
P. No livro, é nítido seu agradecimento ao sargento, “um
preto baiano”, que facilitou os encontros com Dedé em sua cela. No
documentário, no entanto, ao lembrar que ele foi preso, posteriormente, você
chega a chorar. Que sentimentos o gesto daquele homem e sua lembrança
despertam?
R. Não que eu não tenha me emocionado ao escrever certas
frases no capítulo do livro. Mas falar é outra coisa. E estar diante do fato de
não lembrar o nome do generoso sargento baiano me desarmou.
P. Você já era supersticioso e diz que ficou ainda mais na
prisão. De que maneira isso se manifesta hoje em sua vida?
R. Com bem menor intensidade. Muito passou a ser um jogo
mental, um vício que serve de diversão. Muito simplesmente sumiu. Mas, como eu
ia cantar, sendo gravado e filmado, todas as canções a que me refiro e os
diretores já voltaram com a ideia de que o filme já estava pronto —e nas duas
noites em que filmamos eu só tinha cantado Hey Jude e Irene— vi que as outras,
as que eram sinal de má sorte, não estavam incluídas, voltei a achar difícil
arriscar cantá-las. Outro dia, dando uma entrevista para a TV, me dei conta de
que a uma delas eu nem podia me referir. Mesmo agora, se penso em frases de sua
letra ou melodia, sinto vontade de chorar. Não é medo. É uma tristeza de ter
deixado uma canção que fala de um grande amor abrangente pelo Brasil ter estado
proibida dentro de mim por tantos anos.
P. E como é essa dicotomia de ser um ateu que vê milagres? O
candomblé ou outras religiões de matriz africana nunca tentaram sua fé?
R. A frase sobre ser ateu e ter visto milagres foi dita por
Jorge Amado. O Pasquim quis entrevistá-lo e queria que eu estivesse presente,
ajudando a fazer perguntas. Como eu não podia estar no Rio na data marcada,
eles me pediram as perguntas por escrito para que fossem lidas para Jorge. Eu
perguntava que significado propriamente religioso tinha o candomblé em sua
vida, já que ele era Obá de Xangô. Ele respondeu: “Não sei feliz ou
infelizmente, ao contrário de [Dorival] Caymmi, eu não tenho nenhuma fé. Sou
ateu materialista convicto. Mas vi muitos milagres do candomblé. Milagres do
povo”. Quando me pediram pra fazer uma música para a versão televisiva de Tenda
dos Milagres, citei a frase logo na abertura da música. E passo a falar dos
“deuses sem Deus”, que “não cessam de brotar nem cansam de esperar”. Eu,
pessoalmente, nunca vi milagres.
P. Você foi acusado de “terrorismo cultural”, algo que disse
desconhecer. Acredita que o atual Governo brasileiro persegue as artes por
acreditar nesse fantasma? Sob o governo Bolsonaro, vivemos a distorção da
verdade e uma guerra digital da qual você já foi alvo, quando perseguido por
discípulos de Olavo de Carvalho. O hoje é tão terrível quanto o ontem?
R. É. Por caminhos diferentes, é igualmente terrível.
P. Na nova introdução do livro, de 2017, você escreve que “o
Brasil está em perpétua convulsão e há coisas demais sugerindo que não temos
por que ser otimistas” e lembra uma frase de Fernando Pessoa: “Nós nos
extraviamos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”. No nosso 2020, essa
frase —que traz uma esperança, ainda que irônica— ainda faz sentido?
R. Faz tanto sentido quanto quando a citei ali. Foi [o
economista] Eduardo Giannetti, um liberal, quem a destacou para mim. Minhas
expectativas otimistas sobre o Brasil não são tanto a esperança. São mais a
responsabilidade. Se não buscarmos dentro de nós o que temos de energia
histórica para fazer, pelo que somos, algo bom ao mundo, perdemos a exigência
de agir e pensar de modo consequente.
P. Você reconhece ter uma “tendência à digressão” e certo
caráter proustiano. Isso se acentuou, ou mudou de alguma forma, com a velhice?
R. Pessoas próximas às vezes dizem que piorou. Mas não são
todas. Converso muito bem com meus filhos. Eles sabem que posso ser prolixo a
ainda um tanto digressivo, mas o papo anda. E muito. Mesmo com Tom, que é
lacônico. E quando escrevo, sinto que consigo ser mais breve.
P. Você e seu filho Zeca têm feito sessões de “cineclube” em
casa durante a quarentena. É impossível não lembrar as passagens apaixonadas de
Verdade tropical sobre o cinema, principalmente aos filmes de Federico Fellini.
O que vocês têm assistido nessas sessões?
R. Zeca e eu estamos vendo filmes variados. Ele agora está
concentrado em algo que está fazendo. Por isso não temos tido sessões. Mas
vimos filmes brasileiros inevitáveis e alguns italianos. Temos planos de
continuar.
P. Narciso em férias não é primeiro documentário dirigido
por outrem com caráter biográfico de sua pessoa. Sua incursão à criação
cinematográfica, entretanto, se limitou ao experimental Cinema falado. Você
chegou a revisitar o filme como fez, por exemplo, com o livro, há três anos? E por
que não se aventurou novamente detrás das câmeras?
R. Fazer canções e cantá-las é muito mais simples
logisticamente do que fazer filmes. O Cinema falado foi um ensaio de ensaios.
Gostaria de fazer um na Bahia, que tivesse uma ideia bonita (eu tive um amigo
chamado Marco Polo que vivia numa casinha sobre a pedra que limita o Porto da
Barra e ia a todos os lugares de Salvador pelo mar. Ele não tinha ideia de que
seu nome fora inspirado por um navegador veneziano. Eu queria fazer um filme
sobre alguém assim. Que tivesse imagens parecidas com as que de Trampolim do
Forte. Nunca me desliguei de todo do sonho de fazer cinema. Mas acho difícil
pensar nisso agora. Tenho 78 anos, as pessoas vêem séries de TV que eu acho
chatíssimas, com vários episódios e temporadas, não sei se esse sonho pode
voltar a ser um plano.
P. Seu amigo Pedro Almodóvar acaba de estrear em Veneza um
filme realizado durante a pandemia. Vocês têm se falado e trocado reflexões
sobre vida, trabalho e arte nesses tempos incertos? Você se vê voltando aos
palcos no futuro próximo?
R. Sei que Pedro vai a Veneza. Eu não posso ir. Brasileiros
não são recebidos na Itália ainda. Paulinha falou com Pedro recentemente. Eu
não. Faz um tempo que não nos escrevemos. Ele estava filmando e é muito
obsessivo quanto a isso. E eu quero voltar a cantar num palco diante de uma
plateia.
P. Em Narciso em férias, você diz que abomina o socialismo
e, em Verdade tropical, escreve que, se não fosse aquele 1º de abril de 1964,
estaria mais distante da esquerda. Vê uma esquerda crítica, como a sua, no
Brasil de 2020? Que saída social e política vê para o país?
R. O filme foi feito há dois anos. Nesse meio-tempo, vi
Jones Manoel falar no Youtube, li uma introdução dele ao livro Revolução
Africana e ali encontrei argumentações que mexiam com minhas quase certezas a
respeito do assunto. Na verdade, Jones me respondia perguntas que venho fazendo
há décadas sobre a razão por que os marxistas do mundo acadêmico nada diziam
sobre as experiências reconhecidamente opressivas vividas nos países que
chegaram ao socialismo. Lemos que Marighella chorou quando soube das famosas
maldades de Stálin, mas nada se sabe de como a decisão pelo comunismo se refez
dentro dele. Bem, eu gostava de Ruy Fausto [filósofo] por ele criticar as experiências
de socialismo real. Não que ele fosse o único. Muitos trotskistas já o tinham
feito em alguma medida. Pelo menos na repulsa a Stálin. Mas nem Ruy nem eles
chegavam a justificar sua adesão a algo que resultara sempre tão mal. Na
contracultura, tínhamos coragem de rejeitar tudo aquilo sem virarmos
conservadores ou reacionários. Mas a conta não fechava. No livro, conto como
oscilávamos entre uma ultraesquerda e o liberalismo. Essa ultraesquerda tinha
algo de anarquista. Mas isso não bastava. O credo liberal me parecia mais
digno. Não entrávamos numa religião salvadora que não ousa dizer seu nome: a
democracia liberal está em prática no ocidente desenvolvido. Mas sou mulato e
de país subdesenvolvido. Minha inspiração não se contenta com o esquema que tem
como líder o grande país excepcional que fez a revolução antes da Francesa e se
mantém fiel a ela, se ele cala-se diante da Arábia Saudita e execra o Irã e a
Venezuela. Então a unidade de propósitos profundos que a ousadia socialista
representa, tal como aparecia nas fala e textos de Jones Manoel e se explicava
detalhadamente nos livros de Losurdo [Domenico Losurdo, filósofo italiano], é
composta de uma visão radical sobre a história colonial e a escravização de
negros africanos —história que coincide com o desenvolvimento do liberalismo.
Ver isso mudou minha cabeça.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário