A escritora Nélida Piñón em Madri, em 2019.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 6 de julho de 2020
Nélida Piñón: “Ter um governante que não se dá conta do peso
da pandemia é uma enorme tristeza”
Escritora, integrante da ABL e ganhadora do prêmio Príncipe
de Astúrias, fala da situação do Brasil e dos efeitos do coronavírus
Por Juan Cruz
Nélida Piñón (Rio de Janeiro, 83 anos), membro da Academia
Brasileira de Letras e ganhadora prêmio Príncipe de Astúrias de Letras em 2005,
escreveu em Vozes do deserto uma ficção prolongando a metáfora de Sherazade.
Agora, enquanto assiste às terríveis consequências da pandemia de coronavírus
no Brasil, confia também em que a ficção, a narrativa, seja útil para
confrontar um drama que a mítica personagem a quem ela deu voz superou graças à
sua capacidade de contar para vencer a opressão e o esgotamento. Ela continua
escrevendo. Sua última obra está prestes a ser lançada na Espanha e, embora
esta seja sua principal tarefa, inventar, ela não deixa de se condoer pelo que
ocorre em sua terra e no mundo. Disto falou por Skype, de sua casa no Rio de
Janeiro, avisando ao repórter espanhol que “o Brasil vive um momento de rancor
generalizado”, ao mesmo tempo em que exibe o que está à vista em seu
escritório, “cheio de pilhas de papel, originais —toda minha vida criativa está
aqui dentro”— .
Pergunta. O que é a sua vida criativa agora?
Resposta. É a capacidade que tenho de adicionar à minha vida
tudo o que está fora. O criador trabalha a partir do que existe e do que
existiu. Sou uma mulher que acredita que só se pode ser contemporâneo se se for
arcaico. Navego nas águas dos gregos, dos persas, das Américas e do mundo. Não
faço uma distinção profunda de onde estou, quem sou ou de que época.
P. Este período se parece com o que Sherazade combatia,
falando para que a condenação não se cumprisse. Agora se vive uma condenação, e
conversamos para que a noite não caia…
R. A humanidade sempre sofreu grandes dificuldades. Nunca
houve uma época frutífera, só instantes de celebração, mas cada vez que a
humanidade fracassa seguimos em frente. Agora se fala da globalização, mas os
vikings já começaram esse processo; e o fizeram os gregos com Alexandre, os
bucaneiros ingleses do Caribe e os extraordinários globalizadores portugueses.
Sempre foi assim. Todos abriram espaços para a globalização. O que acontece é
que hoje vendemos nossa liberdade de indivíduos pátrios por objetos perecíveis
sem nenhum valor. Não tenho medo, enfim, do dano que possa ocorrer, porque o
pior já está ocorrendo.
P. O que foi o pior do pior?
R. Se não percebermos a força desta advertência histórica
que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver. É
preciso que estejamos preparados para sair disto e tentar ver o que impede
nossa sobrevivência. Por trás de tudo isto estamos vivendo uma explosão
demográfica. A terra tem dificuldades para abraçar oito bilhões de pessoas.
Ninguém quer ficar na África, ou na Europa, ninguém quer ficar onde está,
sempre estamos procurando um lugar onde se possa assegurar a fortuna… Mais do
que nos deslocando geograficamente, estamos nos deslocando em espírito, e nisto
vejo insatisfação, necessidade, um infortúnio extraordinário. Como se não
tivéssemos futuro, nos empenhamos em apagar os fatos do passado. O passado não
se destrói, mas é preciso corrigir os desvarios do presente.
P. Como qualificaria este momento moral da humanidade?
R. A humanidade nunca teve um código moral que servisse a
todos! Os códigos que tivemos serviam a alguns, aos donos do código, aos que o
escreveram e não aos que padeciam os horrores desse código. Desde a Bíblia, os
códigos beneficiavam só uma parcela da população. Outros eram escravos da
vontade alheia… O que vejo hoje é uma desunião que privilegia interesses
próprios. A União Europeia demorou muito a ajudar; teve e tem medo da
segregação, de que possam surgir outros Brexits. Assim como na América, não estamos
unidos, há interesses.
P. Você tem muita relação com a Galícia, com a Espanha [a
escritora é filha de galegos]. Como viveu, do Brasil, a situação desse país?
R. Foi uma grande dor, mas de alguma forma as dores que
vinham da Itália prepararam para as futuras tragédias. A Itália nos advertiu:
preparem-se. Quando a tragédia chegou à Espanha, imagine o que senti… Como isso
podia acontecer na Europa? Supunha-se preparada para entrar no éden, no paraíso
econômico e na justiça. As pessoas acreditavam estar sob as bênçãos de um deus
econômico, poderoso. Eu me dava conta de que isto se arrastaria por todo o
mundo, mas que semearia menos pânico. O pânico teve uma força poderosa, mais do
que a pandemia, talvez. Veremos, porque há muitos mistérios, muito que não sabemos
e muitas verdades que sairão dos laboratórios farmacêuticos, porque não nos
dizem o que está acontecendo.
P. Um susto mundial, portanto.
R. Os brasileiros estão muito abalados, o mundo inteiro está
assustado. Agora, além disso, assusta essa palavra espanhola, brote [surto]. É
impressionante seu sentido simbólico. O surto está estabelecendo nossos
limites. A partir de agora não temos liberdade, porque somos vítimas do próximo
surto. Não se pode gozar sob a tutela do surto.
P. Como está vivendo a situação no Brasil?
R. Como todos, vi com visão crítica e muito dolorida. Ter um
governante que não se dá conta do peso da pandemia e do que está acontecendo no
mundo é uma enorme tristeza. Os fracassos que chegam de Brasília nos educaram
há muito tempo para o sofrimento. É como se se pudesse esperar o pior de
Brasília. É um câncer que começou há muito. Chego à conclusão de que as
administrações se impõem a favor de seus interesses e não dos do povo. Sinto um
profundo descrédito do poder, como o que agora vive o Brasil.
Se não percebermos a força desta advertência histórica que
ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver
P. Vale hoje no Brasil a opinião de uma intelectual como
você?
R. Não acredito muito no poder do intelectual. As pessoas
hoje levam muito mais em conta o que sai na televisão do que o que se fala em
um livro. O Brasil se volta para os seus próprios interesses com uma visão
paroquial. Hoje não tem grandes políticos, grandes oradores, personalidades em
quem confiar, que expressem as necessidades reais. No meu entender, os
políticos são um fracasso. Como intelectual, percebo minhas limitações, mas sei
que meu dever é continuar criando, escrevendo. Meu dever como intelectual
brasileira é continuar produzindo livros; tendo à independência total,
estética, moral, sem medo da histeria.
P. Vocês aí têm tido um espetáculo político intenso: a
disputa entre o presidente e o ministro da Justiça [Sergio Moro] que ajudou a
levá-lo ao poder… O que sentiu diante desse vaudeville?
R. Moro tampouco é inocente. Bolsonaro é uma figura pela
qual não tenho nenhum respeito, mas me parece que Moro se reconciliou com seus
inimigos. Hoje vejo Moro com certa prevenção. Mas é, de todas as maneiras, um
personagem. Talvez eu deva escrever um romance sobre a tragédia do poder,
embora não saiba se poderia escrever sobre um personagem como Bolsonaro.
P. Nessa tragédia de personagens ressurge Lula, que foi tão
premiado na Espanha. Como vê sua relação com este momento?
R. Não é preciso que Lula fale. Ele manchou sua biografia
até então respeitada. Lula e a elite política brasileira são responsáveis pelo
questionável Governo da presidenta Dilma e pela eleição do presidente
Bolsonaro. Suas condutas, além de seus feitos administrativos, provocaram uma total
incredulidade no eleitorado brasileiro. Uma profunda tristeza.
P. Como sente, em sentido metafórico, neste tempo difícil,
que soa a música do Brasil?
R. Pode ser uma conjugação de todos os acordes musicais do
mundo. Os brasileiros são muito musicais, mas talvez não tenhamos feito a
música que possa limpar o que estamos sofrendo: miséria, falta de emprego,
insegurança com o futuro, descrédito do poder e das instituições… O que
Brasília produz não está a favor do povo. É natural que estejamos tristes e que
olhemos de forma desapegada para o poder.
P. O país pode ser visto agora como uma harmonia rompida?
R. Ao longo da história do Brasil sempre houve fraturas,
como em qualquer país, mas independentemente da tragédia é um país alegre. Só
precisa administrar essa alegria de modo que não se perca nas exaltações. É
preciso ser alegre e triste, alternar um pouco. Não se pode ser alegre o tempo
todo. Quando você passa a ser triste é quando pode corrigir a realidade. O
Brasil tem uma história muito fascinante, mas também de desapego da realidade
do pobre. Teremos que fazer correções dramáticas. Temos racismo; todo mundo é
racista, e o Brasil é porque somos herdeiros do racismo do mundo, da Europa,
dos Estados Unidos… Não o inventamos, o herdamos, e naturalmente nos pareceu
que beneficiava as elites. É um país que tem uma integração geográfica
extraordinária, não aconteceram conosco as fraturas bolivarianas, temos uma
língua deslumbrante que soube permitir que cada canto criasse neologismos; uma
literatura muito rica, artistas, cineastas, e essa gente do samba, as canções
populares nas escolas, uma arte extraordinária. Portanto, é um país que tem
muita hegemonia e possibilidade de defender seus estatutos históricos.
P. E agora sofre.
R. Não gosto muito da noção de sofrimento, não acredito que
seja necessariamente redentor. Acredito que o sofrimento seja muitas vezes
traumático, impede de pensar, de criar. Por isso aposto num futuro do Brasil
que não merecerá o silêncio, virão grandes transformações, e espero que sejam
benéficas, não totalitárias, nem de esquerda nem de direita.
P. O país do futuro, e sempre será, como dizia Stefan Zweig.
R. Ele só disse que era o país do futuro… Mas o futuro está
demorando muito! O futuro é abstrato, inaudito, só vale o presente que vamos
vivendo, e tomara que não tenhamos que disfarçá-lo para que pareça de ouro, ou
mais justo, mais poderoso, mas sim que venha graças à indústria, aos bancos, à
extraordinária agricultura brasileira que hoje alimenta um quarto da
humanidade… O mundo vai comer graças ao Brasil! É um país que não pode ser
periférico porque não tem essa vocação.
P. Esse seu otimismo está em um de seus últimos livros: “Falta-me
vocação para ser triste”.
R. Tenho momentos tristes, porque se não estaria
desconectada da realidade. Sou estudiosa da história, leio os séculos com um
prazer imenso e sei qual é a história da humanidade. Uma história absolutamente
desencontrada, que alterna tragédias, genocídios… A Europa é a Europa de
milagre, sofreu invasões pelo Danúbio, os mongóis chegaram pela Hungria, todos
os povos se deslocaram, cada um pôs sua história, sua gênese, seu sangue, sua
língua. Muitas de nossas línguas vêm do latim, mas outras estão escritas a
sangue, impostas mediante tanta gente assassinada, hecatombes históricas,
invasões. Não se pode considerar que a Europa seja um território suave,
agradável, deslumbrante. Não. Nasceu das lágrimas, como nós, matamos índios,
fomos terríveis com os negros…
P. Como aponta esse joelho de um homem que asfixia outro em
Minneapolis.
R. É a prova de que os norte-americanos nos superaram em
racismo. É terrível, como se ainda estivesse entre nós a Ku Klux Klan: somos
capazes de odiar um negro por sua pele. Mas somos racistas com os negros assim
como com as mulheres, não suportamos quem é diferente, o vizinho. Esse “não
posso respirar” é um hino do horror humano, somos capazes de tudo. E para quê?
Para sobreviver ou para impor nossa vontade? Não matamos só por nosso pão e dos
nossos filhos. Matamos por um espaço que tem de ser unicamente nosso.
P. Seu pai a ensinou a dar flores e livros de presente. A
esta altura da vida, que presente espera?
R. As flores e os livros do meu pai são a memória de meus
ancestrais. O que realmente considero um presente, mais que estar viva, foi o
esforço de entender por que estou na Terra e o esforço da tolerância. Isso é o
que mais quero. E, evidentemente, outro presente que quero é continuar
escrevendo.
P. A tolerância, que esforço difícil.
R. O Brasil vive um momento de rancor generalizado. Choro
diante desses sentimentos exacerbados.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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