Publicado originalmente no site HUFFPOST BRASIL, em 4 de julho de 2020
Elza Soares: 'Não existe vacina contra o mal que é o racismo
no Brasil'
Em entrevista ao HuffPost, cantora reflete sobre
movimentações por igualdade racial no Brasil e no mundo e sobre os aprendizados
da pandemia.
By Andréa Martinelli
“A gente não está vivendo isso de agora. A vida inteira nós
vivemos isso. Nunca melhorou, não vai ser agora que isso vai ser diferente,
infelizmente”, afirma Elza Soares, incontornável, ao comentar as recentes
manifestações pedindo justiça racial pelo mundo em meio à pandemia de covid-19.
A cantora afirma que o Brasil é um país racista e que durante toda a sua vida
precisou conviver com isso. “Não foi feita uma vacina contra esse mal ainda,
esse mal maldito. Sempre foi a mesma coisa, não tem diferença nenhuma no que
acontece hoje. Esse é o meu Brasil, o seu, o nosso.”
Essa afirmação da cantora, que completou 90 anos no último
dia 23 de junho, está refletida em Juízo Final, samba de Nelson Cavaquinho de
1973 que ganhou nova versão na voz de Elza. O samba chamou, e ela veio de novo
para cantar “quero ter olhos para ver a maldade desaparecer” e afirmar que “o
sol há de brilhar mais uma vez”.
Segundo Elza, a canção é potente e reflete o que vivemos no
País — e por isso quis interpretá-la. “Ela é um alerta. Eu gosto da letra,
gosto da música. É um samba, né? E fala sobre o momento que nós estamos
vivendo. É o juízo final. Vamos prestar atenção nessa letra, gente. O que ela
fala é muito forte.”
A intérprete, que amplificou a voz e a situação das pessoas
negras no Brasil com a canção A Carne, lançada em 2002, afirma que “o Brasil é
um país preto, mas é um país bobo, de miséria”. “Tem que colocar a mão na
consciência. A carne mais barata do mercado foi a carne negra. Ela não é mais”,
afirma.
“A movimentação [de combate ao racismo] sempre existiu e tem
que continuar como sempre foi. Ele [racismo] sempre existiu, não é de agora. É
preciso lutar, lutar, buscar, buscar. Não se faz vacina para doenças? Quem sabe
algum dia não exista uma para essa espécie de ‘pandemia’ também?”, reflete.
Além de Juízo Final, Elza prepara também o lançamento da
inédita Negão Negra, que pretende, novamente “cantar o que se cala”. “Nestes
tempos, a gente vendo os negros sendo mortos, uma coisa horrível, eu tenho que
gritar. Aliás, eu tenho que gritar sempre, e essa música é mais um grito meu.”
Toda essa trajetória representa a evolução do recado que
Elza deu há cinco anos, quando ressurgiu pedindo para que a deixassem “cantar
até o fim” no álbum A Mulher do Fim do Mundo, de 2015.
Esse álbum, inteiro de inéditas, rendeu um Grammy Latino a
ela e duas sequências: Deus É Mulher, em 2018 e Planeta Fome, em 2019, além de
turnês e shows pelo Brasil e mundo afora. Em 2018, também foi lançada Elza, sua
biografia, escrita pelo jornalista Zeca Camargo.
É em Não está mais de graça, do álbum de 2019, que Elza
atualiza um de seus hinos, A Carne, música de 2002 cujo refrão agora afirma que
“a carne mais barata do mercado não está mais de graça”.
Apesar de ter se tornado uma referência ao longo de sua
carreira - e ganhado notoriedade nos últimos anos -, Elza Soares rejeita esse
lugar. “Eu não quero que elas [mulheres] me vejam como coisa alguma. Quero que
elas se vejam. Nós, mulheres, temos que lutar. Sem mulher o mundo não existe.
Deus é mulher.”
Desde março, a cantora precisou remarcar shows e adiar
algumas produções. E se sente bem. Ela tem ficado somente em casa devido à
pandemia do novo coronavírus e afirma estar acompanhada de sua família. “Está
passando, né? Tem que passar, precisa passar, a gente passa. Tenho ficado
completamente em casa, não é quarentena? Então temos que seguir”, diz.
Para ela, este momento escancarou desigualdades já latentes
no Brasil, mas vê oportunidades em meio à crise sanitária. “Para mim e pra todo
mundo que está passando por isso... É um momento de você pensar, ficar mais
atenta a tudo que está acontecendo. É por aí. Prestar atenção ao outro é uma
coisa que a gente não faz. O momento é este, é agora.”
Sempre tivemos dificuldade de enxergar o outro. Foi preciso
uma pandemia para as pessoas pararem e pensarem.
Elza Soares
A “mulher do agora” que é Elza Soares não vê o passado com
nostalgia. Hoje, ele não passa de uma sombra. Elza passou fome na infância,
perdeu maridos, filhos, amargurou a falta de dinheiro e de liberdade, ficou
quase 10 anos sem gravar e sofreu com o julgamento da sociedade por se
relacionar com Mané Garrincha - e ter sido vítima de violência doméstica.
“Eu me vejo como todo mundo se vê: para frente! Eu acho que
você tem que seguir, trilhar o caminho que se apresenta. Caminhando contra o
vento, sem lenço, sem documento, vamos embora”, diz, otimista. O que a Elza de
hoje diria para Elza do passado? “Vamos para frente que atrás vem gente”,
brinca.
Momentos marcantes
Em 1953, Elza Conceição Soares subiu ao palco do programa de
Ary Barroso, na Rádio Tupi, com seus 50 quilos, roupas remendadas com alfinete
e uma sandália emprestada de sua mãe. “De onde você vem?”, ele perguntou, em
tom de gozação. E ela respondeu: “Do planeta fome”.
Assim que ela começou a cantar os versos de Lama, “se eu
quiser fumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”, escritos por Aylce Chaves
e Paulo Marques, Ary se encantou com o timbre e a força daquela voz rouca cheia
de distorções únicas. Ao final da apresentação, abraçou Elza e bradou:
“senhoras e senhores, nasce uma estrela”.
Em 1999, ela caiu de um palco de aproximadamente 2 metros de
altura enquanto fazia um show no Metropolitan, em São Paulo, o que provocou um
achatamento na coluna. Inicialmente, Elza precisou usar um colete e não deixou
de usar seu emblemático salto 15 — o que, com o tempo, a fez sofrer com dores e
dificuldades de locomoção.
De 2007 para cá, já fez cerca de 4 cirurgias e correu o
risco de perder os movimentos e a fala. Recuperada e saudável, ela precisou
abrir mão do gingado, do salto alto e, atualmente, faz os shows sentada.
“Cantar ainda é remédio bom. Essa frase é de João de Aquino [compositor
brasileiro]. Continua sendo esse remédio. Tem que ser”, diz.
Aos 90 anos - que ela insiste em dizer que não comemora e
não conta -, Elza segue cantando e se alimentando de sua própria voz. O dia em
que ela chegou ao mundo é comemorado em duas datas: dia 22 de julho é
considerado seu nascimento oficial, e 23 de junho, a dataque consta em
documentos.
“Há dias em que nem nasci ainda, estou no ventre, outro dia
já nasci, outro dia já acabei de nascer, sei lá. Vou vivendo. Estou vivendo os
melhores dias da minha vida. Nunca parei para ver quantos anos eu tenho, não
vai ser agora, né?”
Para Elza, “vamos encontrar um mundo novo” após a pandemia.
“A gente vai viver um novo mundo, uma nova experiência. Nós estamos pisando em
ovos. Vamos continuar pisando, devagar e sempre. Tem que ser assim. Não dá para
ser afobado, não”, ressalta.
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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