domingo, 12 de julho de 2020

A inocência protege? A conversa sobre sexualidade com a criança

Crianças na fase de descoberta da sexualidade. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site SRZD, em 11 de julho de 2020 

A inocência protege? A conversa sobre sexualidade com a criança
Por Marcos Ribeiro *

O filósofo Rousseau (1712-1778) no século XVIII tinha a ideia de que a ignorância e a informação dirigida e repressiva era o “pior dos males”, preservando assim a criança dos “perigos” da sexualidade. Três séculos depois, este é um assunto que não está totalmente resolvido, pois parece que a conversa sobre sexualidade ainda causa um desconforto, como se estivéssemos falando sobre algo pecaminoso e, por isso, impróprio.

Falar de sexualidade com as crianças é mesmo necessário, por quê? Poderia aqui listar uma série de fatores, mas rapidamente podemos dizer que conhecer o próprio corpo e ter acesso à informação é um direito de todas as pessoas. Nunca, em nenhum século, a ignorância (no sentido de ignorar o assunto) foi a melhor aliada da proteção. Inocência não protege, muito pelo contrário, coloca a criança mais vulnerável.

Conversar com a criança é uma forma de protegê-la a uma situação de risco como um abuso ou exploração sexual e, mais tarde, de uma gravidez não planejada na adolescência, de uma Infecção Sexualmente Transmissível, de situações constrangedoras por dificuldade de algumas pessoas em lidar com o comportamento sexual do outro ou uma situação de violência onde a mulher é a vítima preferencial.

No caso específico do abuso sexual, o abusador costuma fazer ameaças e até chantagens. Mas não é só isso, relatos indicam que muitos usam dinheiro, presentes e doces para crianças menores, como uma forma de se aproximar e estabelecer uma relação com a vítima. Por isso a conversa é tão importante, quando explica à criança a diferença entre o carinho permitido e do abusivo; que no corpo dela ninguém pode tocar e que nenhuma criança mais velha, adolescente ou adulto pode manter segredos sem o conhecimento dos pais (dos dois, pai e mãe) ou responsáveis.

“Mas muitas vezes o abusador é o pai!”

Exatamente por isso que “ninguém pode tocar (…) ou manter segredos sem o conhecimento dos pais (dos dois, pai e mãe) …”, vale reforçar.

Muitos pais acreditam que este assunto por ser uma questão pessoal, portanto do âmbito do privado, deve ser discutido em casa. E estão certos. Só que a escola tem um outro papel que é de ensino e aprendizagem, construção social e formação do cidadão. Além disso, é no espaço escolar que se estabelecem as primeiras relações afetivas depois da família, a convivência com os amigos e a relação com as diferenças, num espaço em que isso se intensifica muito.

Não saber lidar com essas questões podem gerar bullying (que não é mimimi para os que insistem em minimizar o tema), relações de conflito e violência.

Numa pesquisa realizada por mim com 326 professores do Ensino Fundamental I, de 139 Municípios, das 5 regiões do Brasil, os(as) professores(as) relatam que o maior “entrave” para que esta conversa na escola é pai e mãe ou responsável. Portanto, há uma necessidade de aproximação entre a família e a escola para que este assunto não fique debaixo do tapete ou espere do lado de fora da escola. Os resultados dessa pesquisa, assim como todo o conteúdo para o trabalho a ser realizado na escola sai esta semana (13 a 17 de julho) com a publicação do livro “Educação em Sexualidade: conteúdos, metodologias e entraves”, de minha autoria, pela Editora Wak.

A conversa sobre sexualidade além do conhecimento adquirido, ajuda às crianças e adolescentes na autonomia para se protegerem ou pedirem ajuda quando for necessário, a cuidarem da própria saúde, a desenvolverem relações respeitosas com as outras pessoas e a conhecerem os próprios direitos, garantindo-os.

“O que falar, quando falar?”

Falar o que a criança pergunta, na linguagem dela, estabelecendo um diálogo claro, para que saiba a quem procurar quando surgir outra dúvida. Não estamos falando de uma “aula de sexo”, mas ela perceba que em casa este assunto é tratado de forma clara e com as informações necessárias.

Esta conversa acontece a partir dos valores da família e suas crenças, entendendo mesmo assim que, quem educa, mesmo em casa, deve ter a preocupação com as informações científicas e pautada nos Direitos Humanos, que dizem respeito à todas as pessoas.

Cabe a pai e mãe ou os responsáveis dizer o que é “certo” ou “errado”; “faça” ou “não faça”. A escola não cabe intervir nesses valores, mas desenvolver a criticidade, o debate, as informações sobre o corpo e a sexualidade e o respeito às diferenças. Mais saudável será se esses assuntos forem discutidos também em casa, o que esperamos.

“No meu andar mora um casal gay, como explicar ao meu filho?”

Antes de responder, vale uma historinha, que é real.

Uma amiga jornalista foi ao casamento de dois amigos de redação. Estava sem saber como levar a sua filha de 6 anos mas, sem ter com quem deixá-la, levou a menina com ela. Era um almoço. Ao chegar em casa na volta do casório dos dois rapazes, perguntou o que a pequena Luísa tinha achado. A menina disse que tinha achado diferente e, com isso, a mãe já “armada” com todas as teorias perguntou: “por quê”?

Luiza: “Ué mãe, não tinha docinho!’.

A reação das crianças vai ser de acordo com o comportamento dos adultos. Não importa que os vizinhos, amigos ou parentes sejam gays, trans ou heteros. Independente da identidade de gênero ou orientação sexual da pessoa é importante educar para o respeito ao outro e nos seus aspectos éticos e legais.

Se sentir a necessidade de conversar, diante da pergunta da criança, diga que as pessoas amam de uma forma que as deixam mais felizes. Que o papai e a mamãe são de um jeito; o vizinho ama de outro jeito e que pode acontecer de ir na casa de um colega da escola e ele ter duas mães que se gostam da maneira que elas são e por isso moram juntas e são felizes. Eduque a criança com a ideia, muito verdadeira aliás, que as pessoas são diferentes e diferenças não significam desigualdades!

Sobre o autor

Marcos Ribeiro (@educadormarcosribeiro) é pedagogo; especialista em Educação Sexual; consultor, pontual, na área de sexualidade com trabalhos realizados para a Fundação Roberto Marinho, John Hopkins University, Canal Futura, UNESCO e Ministérios da Educação e Saúde, entre outros.

Autor, premiado pela Academia Brasileira de Letras, com mais de 13 livros publicados e quase duas centenas de artigos publicados.

Texto e imagem reproduzidos do site: srzd.com

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