Hattie McDaniel com Vivien Leigh, que deu vida a Scarlett O’Hara.
A personagem da empregada Mammy era a única que
se atrevia a desafiar a voluntariosa Scarlett.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 15/12/2019
Hattie McDaniel: a cruel história de uma atriz que ganhou um
Oscar e desafiou a sociedade
80 anos após a estreia de ‘E O Vento Levou’, recordamos o
relato mais chocante e triste em torno do clássico: o da intérprete
afro-americana, lésbica e corajosa
Ela protagonizou um dos filmes mais famosos da história do
cinema, E o Vento Levou, mas foi proibida de comparecer à estreia;
transformou-se na primeira atriz negra a ganhar um Oscar, mas não pôde se
sentar na mesma mesa que seus colegas de elenco; foi relegada a papéis de
empregada pelos brancos e rejeitada pelos negros, que não entendiam sua adesão
ao estereótipo com o qual Hollywood havia reduzido sua raça. Morreu sem um
tostão, e seu Oscar foi levado pelo vento, mas ela sempre foi fiel a si
própria. E sua melhor frase não foi escrita por nenhum roteirista, mas por ela
mesma: “Prefiro interpretar uma criada por 700 dólares a ser uma por 7.”
Chamava-se Hattie McDaniel, e suas luzes e sombras estarão para sempre unidas à
história do cinema.
No testamento, ela pediu duas coisas: ser enterrada no
cemitério Hollywood Forever e que seu Oscar fosse entregue à Universidade
Howard. Após sua morte, recebeu sua enésima bofetada: o cemitério não aceitava
negros, por mais famosos que fossem
Hattie McDaniel (Kansas, EUA, 1893; Los Angeles, EUA, 1952)
era a caçula dos 13 filhos de um casal de escravos libertos que havia chegado
ao Kansas fugindo da extrema pobreza. Mais afeita ao ritmo gospel interpretado
por sua mãe na igreja que aos livros, ela não demorou a subir nos palcos para
contribuir com a paupérrima economia familiar. Não sabia ao certo qual seria o
seu futuro, mas tinha certeza de que não queria seguir o caminho da servidão ao
qual pareciam condenadas as mulheres negras. Preferiu formar, com dois de seus
irmãos, um grupo de vaudeville no qual sua veia cômica logo se destacou. “Ela
foi radical em muitos aspectos”, escreveu sua biógrafa Jill Watts em Hattie
McDaniel: Black Ambition, White Hollywood (ambição negra, Hollywood branca).
“Atuava com a cara pintada de branco, algo que nenhuma mulher fazia na época”,
resumiu Watts.
Quando o crash da Bolsa de 1929 arrasou com tudo, também
acabou com o espetáculo de Hattie – e ela foi então para Milwaukee. “Cheguei lá
destruída”, escreveu em 1947 em The Hollywood Reporter. “Alguém me disse que no
hotel Suburban Inn de Sam Pick procuravam uma assistente para o banheiro
feminino. Saí correndo e consegui o trabalho. Uma noite, quando todos os
artistas haviam ido embora, o gerente pediu que algum voluntário subisse no
palco. Pedi uma canção aos músicos e comecei a cantar. Não voltei a trabalhar
nos banheiros. Durante dois anos, protagonizei o espetáculo do lugar.”
Destacar-se no mundo do entretenimento no início dos anos
trinta e acabar em Hollywood era uma sequência lógica – e esse foi seu caminho.
Mas a Hollywood que McDaniel encontrou não era um mar de rosas para os negros.
O código Hays – um sistema de autorregulação dos estúdios para restabelecer a
boa imagem de Hollywood após a enxurrada de escândalos dos anos vinte – proibia
os romances entre brancos e negros e não permitia que estes tivessem acesso a
papéis violentos.
Doze anos após a indústria ter criado um prêmio para
conferir a si própria, uma mulher negra subiu no palco pela primeira vez – e não
era para limpá-lo
Os atores negros ocupavam papéis irrelevantes, e com
frequência sem créditos: eram motoristas, garçons, figurantes e especialmente
empregados. Hattie havia fugido do serviço na vida real, mas não podia fazê-lo
na telona. Não demorou a se destacar. Em 1934, o diretor John Ford prestou
atenção nela e fomentou seu estilo atrevido e sarcástico. A atriz apareceu em
dezenas de filmes com algumas das estrelas mais populares de Hollywood. E,
dando tudo de si em cada minuto que aparecia, tornou-se um dos rostos mais
familiares dos Estados Unidos. Estava realizando um sonho pouco provável para a
filha de um escravo.
O produtor de E O Vento Levou, David O. Selznick, deu a
McDaniel o papel de Mammy, embora ela não encarnasse os “valores” que se esperavam
de uma abnegada criada: era sarcástica, altiva e a única que se atrevia a
colocar limites à indomável Scarlett (interpretada por Vivien Leigh). Mas
estava inserida dentro desse clichê de empregada que não tem vida à margem de
seu amo.
Em 15 de dezembro de 1939, cerca de 300.000 pessoas
compareceram à estreia do filme no teatro Loew's Grand Theatre, em Atlanta.
Durante três dias, a cidade se enfeitou para festejar o maior acontecimento de
sua história. Limusines desfilaram na rua principal, recepções atraíram
convidados, milhares de bandeiras confederadas agitaram-se e houve um baile à
fantasia. Hattie McDaniel não foi convidada. A lei Jim Crow, que impunha a
segregação dos negros nos espaços públicos, continuava vigente no Sul. Ainda faltavam
16 anos para que, a poucos quilômetros dali, Rosa Parks se negasse a ceder seu
assento num ônibus.
Apesar do desdém com que foi tratada, McDaniel fez seu papel
à perfeição dentro e fora das telas. “Adorei Mammy”, declarou, ao falar com a
imprensa sobre a personagem. “Acho que a entendi porque minha própria avó
trabalhava numa plantação não muito diferente de Tara.”
“Uma noite, quando todos os artistas haviam ido embora, o
gerente pediu que algum voluntário subisse no palco. Pedi uma canção aos músicos
e comecei a cantar. Não voltei a trabalhar nos banheiros. Durante dois anos,
protagonizei o espetáculo do lugar.”
Hattie McDaniel, em ‘The Hollywood Reporter’ em 1947
A opinião da comunidade negra se dividiu no momento do
lançamento, e o filme foi chamado por alguns de “arma de terror contra a
América negra” e um insulto ao público negro. Houve manifestações em diversas
cidades. Nem todos atacaram a interpretação de McDaniel: a crítica a colocou à
altura de Vivien Leigh, e o Los Angeles Times disse que seu trabalho era “digno
dos prêmios da Academia”, como relata o livro Backwards and in Heels: The Past,
Present And Future Of Women Working In Film, de Alicia Malone.
Em 29 de fevereiro de 1940, quando Fay Bainter leu seu nome
na noite do Oscar, 12 anos depois da criação do prêmio, uma mulher negra subiu
no palco pela primeira vez – e não era para limpá-lo. A filha de dois antigos
escravos, exibindo um vestido turquesa e com gardênias brancas no penteado,
pronunciou um discurso com a voz entrecortada: “Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas, membros da indústria cinematográfica e convidados de honra:
este é um dos momentos mais felizes de minha vida, e quero agradecer cada um de
vocês que me selecionaram a um dos seus prêmios por sua gentileza. Isso me fez
sentir muito, muito humilde; e sempre o erguerei como um farol para qualquer
coisa que eu possa fazer no futuro. Espero sinceramente ser sempre motivo de
orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está
pleno demais para lhes dizer como me sinto, e posso dizer obrigada e que Deus
os abençoe.”
Ela era a única mulher negra da sala e a primeira
afro-americana a comparecer aos prêmios da Academia como convidada, não como
empregada. Selznick tivera que pedir autorização especial para que ela
estivesse no teatro, numa pequena mesa ao fundo, distante das estrelas. Nem
sequer pôde posar com os demais membros da equipe do filme: a Califórnia também
era um Estado segregado.
A magnitude de seu triunfo levaria anos para ser revelada.
Durante quase um quarto de século, até o ator Sidney Poitier receber a
estatueta por Uma Voz nas Sombras, nenhum outro intérprete negro ganharia o
prêmio. E, 80 anos depois, apenas sete atrizes negras receberam a distinção:
Whoopi Goldberg, Halle Berry, Viola Davis, Lupita, Jennifer Hudson, Octavia
Spencer y Mo’nique. Justamente esta última subiu no palco com um aspecto
inspirado no de McDaniel e a mencionou em seu discurso: “Quero agradecer Hattie
McDaniel por suportar tudo o que teve que suportar para que eu não tivesse de
fazê-lo.”
A atriz remava contra a corrente não apenas na indústria;
sua vida afetiva também era incomum. Apesar de seus quatro casamentos fugazes,
os comentários da meca do cinema a incluíram nos chamados “círculos de
costura”, uma maneira de chamar as lésbicas de Hollywood e onde figuravam
lendas como Joan Crawford, Greta Garbo, Myrna Loy, Barbara Stanwyck e Marlene
Dietrich. Segundo o biógrafo Kenneth Anger, Hattie foi amante da atriz Tallulah
Bankhead, célebre por passar pela cama de metade das atrizes de Hollywood e por
ter sido uma das favoritas para interpretar Scarlett. Nada disso vazou para o
grande público. A indústria gerava muito dinheiro, e ninguém estava disposto a
permitir que suas estrelas desafiassem a moralidade que imperava. Publicitários
e produtores juntaram gays e lésbicas formando casais tão críveis para os
espectadores quanto risíveis intramuros.
O sucesso de E O Vento Levou tornou McDaniel tremendamente
popular, mas também a deixou marcada. Após a Segunda Guerra Mundial, começou-se
a respirar novos ares, mas ela continuou aferrada aos papéis de criada e fez
parte do elenco do hoje muito criticado A Canção do Sul, uma mancha que a
Disney continua tentando apagar da sua história.
No final da carreira, McDaniel voltou para o rádio e teve um
desses pequenos triunfos que de novo seus colegas não quiseram ver: fez o papel
de Beulah, outra vez uma criada estereotipada, mas tirou o papel de um homem
branco. Era a primeira vez que uma mulher afro-americana protagonizava um
programa de rádio e ganhava com ele mil dólares por semana. Foi um sucesso
efêmero: pouco depois de assinar o contrato, detectaram um tumor em seu peito.
Morreu em 26 de outubro de 1952, aos 57 anos.
No testamento, ela pediu duas coisas: ser enterrada no
cemitério Hollywood Forever e que seu Oscar fosse entregue à Universidade
Howard. Após sua morte, recebeu a enésima bofetada: o cemitério não aceitava
negros, por mais famosos que fossem. Seu corpo foi enterrado no campo de
Angelus-Rosedale. Muitos astros que haviam trabalhado com ela enviaram flores,
mas somente James Cagney foi até lá pessoalmente.
Hoje, ninguém sabe o que aconteceu com seu prêmio da
Academia. Alguns afirmam que foi jogado no rio Potomac durante as revoltas
ocorridas após o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968. Outros, sem
tanto apelo épico, dizem que seu Oscar está simplesmente perdido em algum
porão, já que, devido à sua forma de placa, é mais difícil de identificar.
Paradoxalmente, é o objeto mais valioso que ela tinha ao falecer: após uma vida
inteira trabalhando, não lhe restava um centavo no bolso. Havia destinado
grande parte de sua pequena fortuna para ajudar seus companheiros menos
afortunados.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com/brasil
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