Publicado originalmente no site [huffpostbrasil.com], em 7 de dezembro de 2019
'O que deveria escandalizar a igreja não é duas mulheres se
beijando, mas sendo agredidas'
Em entrevista ao HuffPost, pastor Henrique Vieira fala sobre
como foi resgatar o sentido mais generoso de textos do Evangelho e escrever o
livro "O amor como revolução".
By Andréa Martinelli
O amor não é piegas. Tampouco é algo que se resume a um
casal ou que é romântico. Muito menos poderia ser restrito a relações
heterossexuais. É um ato político quando faz que inimigos sejam vistos como
humanos. É uma postura ética e revolucionária quando está em escolhas para o
bem de todos ― sem exceção. Esta é a postura de Henrique Vieira, de 32 anos,
que além de ser pastor da Igreja Batista do Caminho, fundada em Niterói (RJ), é
ator, poeta, professor e ex-vereador.
“O amor não é destino, sorte e não pode ser uma idealização;
ele é acima de tudo um caminho que se percorre, uma decisão e uma forma de se
viver”, escreve Vieira em O amor como revolução, livro lançado em junho deste
ano pela editora Objetiva, do Grupo Companhia das Letras. A obra parte de sua
história pessoal para falar sobre a relação potente entre religião e uma
postura ético-política que Vieira, fielmente, denomina como a “decisão pelo
amor”.
A motivação para escrever, segundo ele, não foi só a vontade
de compartilhar com outras pessoas a sua prática pastoral desde muito jovem, as
lembranças da infância e da escola ou seu envolvimento com a arte da palhaçaria
e a atuação como vereador na cidade de Niterói. Mas, sim, como passar pela
experiência de ficar sem enxergar por um período de tempo, aos 16 anos, alterou
radicalmente suas perspectivas de futuro e também trouxe esperança.
O pecado não é a livre manifestação do afeto, o pecado é o
preconceito, é a intolerância.
Pastor Henrique Vieira, em entrevista ao HuffPost Brasil.
“O que me deu força para seguir em frente e não cair no
desespero foi justamente o afeto, o amor que eu recebi da família, dos amigos
(...). Em um tempo de tamanha intolerância, eu lembrei da importância de se
conectar com o próximo e resolvi falar sobre isso hoje, quando temos tamanha
banalização da vida e da comunhão humana”, disse em conversa com o HuffPost.
Tanto no livro, quanto em seus posicionamentos e pregações
na igreja, o discurso de defesa dos direitos humanos está presente ― e ele os
defende com base no que diz a própria Bíblia e, novamente, no amor e na
comunhão.
“O que deveria escandalizar a igreja não é o fato de duas
mulheres se beijarem. É o fato delas serem violentadas, agredidas, humilhadas,
estupradas, expulsas de casa por isso. O pecado não é a livre manifestação do
afeto, o pecado é o preconceito, é a intolerância. (...) Um olhar bíblico mais
profundo consegue perceber que o pecado é a falta de amor, não a manifestação
livre dele.”
Além de ter participado de uma faixa do novo álbum do
Emicida, AmarElo, a Principia, Vieira fez com que sua história, contada no
livro, tomasse outras proporções. Até o dia 1º de dezembro ele esteve em cartaz
com o espetáculo homônimo no Rio de Janeiro, dirigida por Rodrigo França e
coproduzida por Lázaro Ramos ― e tem planos de levar a peça para outras
capitais.
“Eu tô gostando. É uma outra forma de tocar no coração das
pessoas”, diz.
Leia a entrevista completa:
HuffPost Brasil: Você começa o livro contando que soube, aos
16 anos, que sua vida não seria mais a mesma devido a uma neurite óptica
bilateral que afetou grande parte da sua visão e sem motivo ― e que, por isso,
poderia ficar cego. O que essa experiência provocou em você? Ela te motivou a
escrever O amor como revolução?
Henrique Vieira: Muito repentinamente eu experimentei um
sofrimento muito grande com essa perda da visão. E, diante desse sofrimento, o
que me deu força para seguir em frente e não cair no desespero foi justamente o
afeto, o carinho, o amor que eu recebi da família, dos amigos. Foi algo muito
importante no contexto da igreja, da escola, são muitos os exemplos de como
esse amor se manifesta em atitude e ele foi fundamental para fortalecer o meu
coração diante de uma situação de fragilidade ― fragilidade, na verdade, que é
própria da experiência humana. Então, foi uma lição importante que eu aprendi
na minha vida: de que a comunhão e a solidariedade são coisas que confortam e
fortalecem o coração.
E diante de um tempo de tamanha intolerância, discursos de
ódio, estímulo à violência, desprezo ao outro, falta de empatia, compaixão,
sensibilidade e de certa banalização da vida, com pessoas comemorando a morte,
eu lembrei da importância de se conectar com o próximo a partir do afeto, da
compaixão e resolvi falar sobre isso dentro desse tempo de tamanha banalização
da vida e da comunhão humana. Algo singelo, simples, mas muito importante.
Há um costume de associar o amor a um sentimento, a algo
piegas, individual e relacionado a um casal. Mas você aponta no livro que ele é
mais do que isso, que é uma decisão, uma postura ético-política. Poderia
explicar?
Sim. Acho que, em primeiro lugar, o amor quebra a
indiferença e promove a empatia e a compaixão. Isso tem uma implicação social e
política relacional. Está para muito além do universo romântico de um casal
dentro de casa. O amor tem uma vocação pública. O amor tem uma vocação
comunitária porque ele me vincula ao outro que sequer eu sei o nome. Mas basta
saber que existe para que com ele eu me importe. Então, eu entendo que o amor é
revolucionário porque ele sacraliza a humanidade. Então ele vincula tudo e a
todos que existem. Ele vai muito além do aspecto das relações amorosas. E, em
segundo lugar, eu acho que o amor carrega uma exigência ética. O amor pede que
a vida seja plena para todas as pessoas do mundo.
O que isso significa?
Significa que o machismo impede que a vida seja plena para
as mulheres. O racismo impede que a vida seja plena para os negros. Que a
LGBTfobia impede que a vida seja plena para LGBTs. Que injustiça social, a
concentração de renda, impedem que a vida seja plena para os trabalhadores,
para os pobres. Que a lógica do latifúndio impede que seja plena para os
camponeses e a especulação imobiliária impede que a vida seja plena para os
moradores da cidade. O que eu quero dizer? O amor, na medida em que ele tem uma
exigência ética de vida plena para todo mundo, se coloca como um grito contra
tudo aquilo que maltrata e apequena a vida.
Então o amor ganha uma consistência política, um efeito
político. E quando eu falo político, não é no sentido político-partidário,
eleitoral, esquerda ou direita. É política por causa daquilo que se refere ao
público, daquilo que se refere ao coletivo, à sociedade. O amor me
conscientiza, ele me compromete com o outro. Ele me traz um sentimento de
rebeldia e de indignação diante de tudo aquilo que é injusto. Então eu não
posso ficar em silêncio diante do extermínio da juventude negra, eu não posso
ficar em silêncio diante do feminicídio neste País. Eu não posso ficar em
silêncio vendo que os trabalhadores não conseguem ter o pão de cada dia para
sobreviver enquanto uma elite usufrui de bens materiais intermináveis.
O amor, à medida que ele vai me humanizando e ligando ao
outro e a todo e qualquer outro, se transforma em um grito meu de consciência
contra tudo aquilo que é injusto, que é violento e que impede que esse outro
seja pleno e feliz. E por isso é que o amor é revolucionário.
O que exatamente a Bíblia diz sobre relações homoafetivas?
A pergunta “o que a Bíblia diz?” é uma pergunta muito
perigosa. Porque a Bíblia contém mais de 60 livros, gêneros literários
diferentes. Textos escritos em épocas e contextos culturais diferentes. Ou
seja, “o que a Bíblia diz?”, eu posso pegar qualquer texto, isolar do seu
contexto e torná-lo um pretexto para dizer o que eu quiser. Então eu acho que a
pergunta é outra; é “como eu leio a Bíblia?”. Qual é o critério que eu assumo
como cristão para ler a Bíblia como palavra de Deus e entender o que é
circunstancial, uma particularidade daquela cultura, e o que é essencial,
portanto é uma palavra eterna que se aplica para todas as pessoas. Se eu não
tiver esse discernimento e com muita consciência, e escolher esse critério, eu
posso usar a Bíblia para fazer o que eu quiser. E ao longo da História já se
usou a Bíblia para legitimar a escravidão do povo negro, a submissão das
mulheres, a colonização genocida da América e por ai vai.
Então, o que eu quero dizer é: todo texto precisa ser
contextualizado. Como cristão, o meu filtro de interpretação é a vida e os
ensinamentos de Jesus. Jesus é o máximo da revelação de Deus para nós,
cristãos. Então eu vou ler toda a Bíblia a partir da figura do Cristo e da
testemunha do Cristo, entendeu? Então, quando eu contextualizo o texto e leio o
texto a partir do critério Jesus, eu começo a entender o que é particularidade
histórica ― e fica lá ― e o que é essencial e vem para o presente.
Atualmente um discurso sobre “cura gay” ganhou notoriedade
e, em alguns casos, é amparado por grupos religiosos. Qual deveria ser o papel
da religião no combate à violência contra a população LGBT?
O que deveria escandalizar a igreja não é o fato de duas mulheres
se beijarem. É o fato de elas serem violentadas, agredidas, humilhadas,
estupradas, expulsas de casa por isso. O pecado não é a livre manifestação do
afeto; o pecado é o preconceito, é a intolerância. É isso que mata, que leva ao
suicídio tantas vezes, ódio em tudo quanto é canto. Eu acho que um olhar
bíblico mais profundo consegue perceber que o pecado é a falta de amor, não a
manifestação livre dele.
Diante do cenário que a gente está vivendo, de tanta
polarização, de violência, um jeito de combater esse discurso seria amar os
inimigos reconhecendo-os como humanos? Como fazer isso? Como reconhecer
humanidade em alguém que está negando a sua?
Sim, sim. Exatamente. Primeiro, isso não é fácil, nem
automático. Isso não está no campo do sentimento, voluntário, mas da decisão
ética. Terceiro, isso não significa gostar. Jesus não pediu que a gente
gostasse dos nossos inimigos. Porque isso seria superficial, violento e
hipócrita. Não tem como eu morrer de amores, de afeto, de carinho, por quem me
maltrata, me humilha, me persegue, quer a minha própria eliminação. Então,
quando eu falo “amar o opressor” não é gostar dele. Eu posso odiar ele. Porque
o ódio é um sentimento humano. E eu posso ter muita raiva dele. E a raiva às
vezes é legítima e absolutamente necessária.
E o amor entra quando, mesmo com ódio, mesmo com raiva, eu
decido eticamente não torturar quem me tortura, não matar quem me mata, não
desumanizar quem me desumaniza, não descartar a vida de quem descarta a minha.
Eu realmente acredito nisso. Sei que isso não é fácil, mas sem esse critério,
como produzir um mundo novo? Se eu admitir o ciclo do ódio e passar a eliminar
quem quer me eliminar, onde isso para? Em que momento a gente vai saber? E é
muito importante deixar isso em evidência; eu fiz um esforço muito grande para
deixar isso didático no livro e óbvio na peça... Que o amor não significa ficar
quieto diante da opressão; muito pelo contrário. É denunciar firme e fortemente
toda e qualquer opressão. A questão é se eu tiver o opressor na minha frente e
uma arma na minha mão eu não vou matá-lo porque está diante de mim alguém que
eu vou denunciar a prática, mas não vou eliminar a vida. Isso é um exercício de
amor.
O livro agora se transformou em peça de teatro. Como foi
esse processo?
Ah, foi um processo bem bonito. Eu sou ator também, né?
Desde 2015 eu já comecei a minha caminhada no cinema. Foi um processo bonito.
Primeiro, de adaptação do livro. Segundo, de escolher as histórias do livro e
depois de criar um narrador que vai contando essas histórias. Então, foi um
esforço bonito e depois veio a parte mais profunda que é descobrir isso no
palco, a experiência do ator mesmo, de como contar essa história de uma forma
lúdica, cênica e de como mergulhar nos próprios personagens que eu faço durante
o monólogo; e em certa medida me distanciar da minha própria história para
descobrir a melhor forma de contá-la. Porque às vezes você domina tanto a sua própria
história que você acha que as pessoas vão entender de qualquer jeito. Foi
preciso um distanciamento para o teatro fluir, para ficar bem construído
artisticamente. E ficou bonito. Eu tô (sic) gostando. É uma outra forma de
tocar no coração das pessoas.
E as questões de racismo e violência foram junto para a
peça?
Totalmente. Eu não chego lá no palco e começo a pregar ou
gritar palavras de ordem. A peça é delicada, eu vou virando os personagens da
minha própria história. Tem um trio de musicistas impressionante que dá um
toque essencial à peça: em momentos exatos a música vem para compor com o
cenário. Isso é bem potente. Não é uma peça de palavras de ordem, é uma peça
que, através de uma história e de personagens, toda essa pauta profunda do amor
vai sendo apresentada. Mas não como uma palestra ou como uma pregação, mas como
teatro.
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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