Andreu Navarra, professor e autor do livro 'Devaluación
Continua'.
Foto Lorena Ruiz
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
18/09/2019
“Estamos criando o ciberproletariado, uma geração sem dados,
sem conhecimento e sem léxico”
Andreu Navarra, professor do ensino médio, denuncia a
ausência de debate sobre o futuro a que esta sociedade quer conduzir seus
jovens
Por Berna González Harbour
O mundo da educação debate as horas de aulas, a avaliação
dos professores e os maus resultados da Espanha nos testes do PISA, mas tudo
isso é bastante secundário no universo de Andreu Navarra, um professor de
língua e literatura no ensino médio que retrata desde as vísceras do ensino, da
própria sala de aula, uma realidade de emergências mais prementes: da
desnutrição de uma boa parte dos estudantes à incapacidade de se concentrar da
nova geração do “ciberproletariado” ou a ausência de debate sobre o futuro a
que esta sociedade quer conduzir seus jovens. Navarra não é um teórico, mas uma
torrente de verdades que acaba de publicar Devaluación Continua (desvalorização
contínua) pela editora Tusquets, uma chicotada contra a cegueira, um chamado
emergencial diante da degradação do modelo educacional.
“Nós, professores, queremos criar cidadãos autônomos e
críticos, mas, em vez disso, estamos criando o ciberproletariado, uma geração
sem dados, sem conhecimento, sem léxico. Estamos vendo o triunfo de uma
religião tecnocrática que evolui para menos conteúdo e alunos mais idiotas.
Estamos servindo a tecnologia e não a tecnologia a nós”, diz Navarra. "O
professor está exausto, devorado por uma burocracia para gerar estatísticas que
lhe tiram a energia mental para dar aulas."
O testemunho de Andreu Navarra (Barcelona, 1981),
historiador, tem o valor de quem leciona há seis anos em escolas públicas e em
subvencionadas, em áreas ricas e em degradadas, onde encontra por igual
"professores heroicos" em um sistema educacional estressado pela
própria sociedade da qual é espelho: há pais ausentes porque trabalham demais;
há violência; há crianças sem comer ou tomar café da manhã; há muitos problemas
mentais; e há uma geração ausente por causa de sua concentração nas redes
sociais e sua identidade virtual.
“O audiovisual está criando uma nova Idade Média de pessoas
dependentes de satisfazer o prazer aqui e agora, quando a vida é muito
diferente. Na vida você precisa saber ler contratos, alugar apartamentos,
cuidar dos idosos, criar filhos. Mas o ciberproletariado desmorona por qualquer
problema. São pessoas que não serão capazes de trabalhar porque têm a
concentração sequestrada pelas redes”, diz ele. Não que todos os jovens se
encaixem em seu olhar crítico, mas ele vê o risco de exclusão de um quarto dos
alunos em uma tempestade perfeita de precariedade e vida virtual.
Navarra descreve, por exemplo, uma turma de 20 alunos com
dificuldades de aprendizado em que, depois de lhes perguntar, descobriu que
nenhum havia tomado o café da manhã. “Estão pálidos e ficam inquietos. Há
estudantes que não comem por causa de distúrbios alimentares, outros por
negligência da família, outros por pura miséria.” No entanto, na ausência de
professores de apoio e de especialistas, as patologias (teve classes em que 30%
tinham algum diagnóstico) concentram a atenção dos professores nas reuniões de
avaliação e os impedem de pensar nos conteúdos. O pedagogo se confunde com o
terapeuta, diz ele. E no debate da inclusão se esquece, diz ele, que "o
que realmente falta incluir é a instituição". Navarra conta como ele e
seus colegas se alegram quando encontram um livro didático de segunda mão dos
anos 90 e o compram "como se fosse ouro". “Nos livros de Lázaro
Carreter há explicações, agora temos excertos, flipped classroom [um método
participativo que ele considera inaplicável havendo excesso de alunos].
Explique Quevedo com uma flipped classroom! O que não pode haver é uma
pedagogia indecente. Temos pessoas inteligentes, queremos uma sociedade
inteligente, não a rebaixemos. Temos de distinguir o tempo da escola do tempo
externo, e não reduzi-lo. Ser aluno é importante. Ser professor é importante.
Vamos explicar quem é Quevedo! Tiramos a literatura do currículo e depois nos
perguntamos por que a nação é fraca. É que a nação é isso! Temos que dar a eles
a oportunidade de um debate crítico.”
Nem tudo é negativo, é claro. Seu livro tem tantos problemas
detalhados como sinais de esperança em experiências possíveis, diz ele, quando
a autonomia do professor é respeitada: oficinas de poesia, contos, recreio
dedicado ao tempo de leitura, como em sua atual escola, em Collbató, onde os
alunos leem e depois contam o que leram, com êxito. “A chave é a autonomia da
instituição frente a um pensamento único, frente às teorias da panaceia. Quando
Portugal concedeu 25% de autonomia às escolas, melhorou.”
O livro de Navarra recorre a Ortega y Gasset para apelar a
um debate necessário antes de tudo o mais: para onde estamos indo. “Se você
sabe para onde está indo, se abrirmos um debate sobre o modelo de futuro para o
qual queremos avançar, você depois regulará a tecnologia, os horários ou o que
for, mas antes de aumentar ou diminuir as horas é preciso pensar no que se quer
fazer com elas”, argumenta. E o modelo de sociedade que transforma Pablo
Escobar ou Jesús Gil em heróis carismáticos nas séries; o mau exemplo de alguns
políticos malandros; a mentalidade Fraga do “turismo e populismo que continua
em Salou, em Magaluf, em destroçar Barcelona” não ajuda. "Falta reflexão
sobre a sociedade que queremos porque não apostamos em um MIT espanhol, em
exportar literatura, engenharia patenteada aqui em vez de exportar
engenheiros".
Mas "o papel da educação de promover a ascensão social
está fracassando e estamos criando bolsões de guetos, de pessoas sem
futuro". Menciona também a ação de “maquiar” a ignorância que as escolas
praticam para melhorar as estatísticas. E insiste repetidamente na incapacidade
de fixar a atenção, grande carência de uma nova geração com fotos nas redes,
mas sem memória. “Conhecemos vários capitalismos e agora estamos no capitalismo
da atenção, em uma economia de plataformas que mercantilizam a atenção. Se você
estiver vendo algumas mensagens, alguém ganha dinheiro e, se vê outras, outro
alguém ganha. Não podemos repensar a educação se não pensarmos em como devolver
a atenção às salas de aula, o regresso do mundo virtual. Agora não podemos nos
ensimesmar, como Ortega defendia, porque tudo é ruído, política é gritaria e
slogans, ninguém pensa, ninguém escreve, tudo é bobagem e slogan e isso chegou
às salas de aula: o simplista, o binário, o bem e o mal. Os Steve Jobs e
Zuckerberg, lembre-se, receberam educação analógica. E os gurus da tecnologia
mandam seus filhos para escolas analógicas. É por isso que, ele conclui,
"enquanto não consertarmos a sociedade, não podemos consertar o sistema
educacional".
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário