Gilvan Santos, a filha caçula e a mulher (Foto Fernando Cavalcanti)
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 17 de junho de 2019
Renda do trabalhador mais pobre segue em queda e ricos já
ganham mais que antes da crise
Desemprego depois da recessão de 2015/2016 derrubou em 20%
ganhos dos mais vulneráveis e ampliou a desigualdade no mercado de trabalho
apesar do quadro de recuperação da economia
Por Heloísa Mendonça
A recessão que o Brasil atravessou entre 2015 e 2016 afetou
ricos e pobres, mas passados três anos desde o fim da "pior crise do
século", como foi batizada à época, fica claro que os efeitos deletérios
desse período foram diferentes para os dois grupos. Os brasileiros mais
abastados já viraram a página das vacas magras. Os pobres, ainda não. Um estudo
do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas revela que
depois da tempestade, os 10% mais ricos já acumulam um aumento de 3,3% de renda
do trabalho, ou seja, além de superar as perdas, já ganham mais que antes da
recessão. Enquanto isso, os brasileiros mais vulneráveis amargam uma queda de
mais de 20% da renda acumulada. Se somarmos os últimos sete anos, a renda do
estrato mais rico aumentou 8,5% e a dos mais pobres caiu 14%.
A depressão econômica e a tímida recuperação que se seguiu
pegou em cheio famílias como a de Gilvan Alves dos Santos, de 44 anos.
Assistente de logística de uma empresa há 17 anos, ele viu seu salário se
transformar na única renda fixa de uma família de seis pessoas. Três dos seus
quatro filhos estão desempregados (a caçula de 15 anos é estudante do ensino
médio) e a mulher que trabalhava como estoquista foi demitida. Hoje sua
parceira estuda fotografia. Para completar a situação financeira complicada, Santos
não conseguiu durante muito tempo pagar um empréstimo e se viu enrolado numa
dívida de 10.000 reais. Após renegociar com o banco, logrou pagar um décimo do
que devia, e saiu das estatísticas da inadimplência. Uma das filhas também tem
ajudado com a renda da casa fazendo bicos de babá. “A situação na família
apertou e a renda per capita diminui muito”, lamenta. Com o orçamento apertado,
a família de Santos engrossou o grupo dos 50% mais pobres - contabilizando
menos de 754 reais por pessoa.
Diferentemente de Santos, Elisa Guimarães Figueiredo, de 33
anos, que também trabalha com logística seguiu um caminho de crescimento nos
últimos anos mantendo-se no estrato mais rico da sociedade. “A crise, na
verdade, foi uma oportunidade”, conta. Como trabalhava no setor de ferrovia e,
depois em um porto, ela abriu mercado oferecendo soluções de redução de custos
a pessoas que utilizavam o transporte rodoviário. Entre 2015 e 2017, ela
conseguiu dobrar o salário e hoje se tornou consultora de logística em uma
importante consultoria global.
O retrocesso de Gilvan e o crescimento de Elisa são os dois
lados da moeda da economia brasileira. A retomada da atividade brasileira é
bastante desigual entre os trabalhadores. Segundo o levantamento do Ibre/FGV,
as oscilações na relação entre a renda média do trabalho dos 10% mais ricos e
dos 40% mais pobres mostram que, desde 2015, essa desigualdade vem crescendo, e
atingiu em março o maior patamar desde 2012, quando começou a ser feita uma série
histórica sobre o assunto. O indicador utilizado pelo levantamento é o índice
de Gini, que monitora a desigualdade de renda em uma escala de 0 a 1 - sendo
que, quanto mais perto do 1, maior é a desigualdade. O Brasil atingiu o valor
de 0,6257 em março.
Para o pesquisador Daniel Duque, os mais pobres sentem muito
mais o impacto da crise pela vulnerabilidade social e pela dinâmica do mercado
de trabalho. “Há menos empresas contratando e demandando trabalho, ao passo que
há mais pessoas procurando. Essa dinâmica reforça a posição social relativa de
cada um. Quem tem mais experiência e anos de escolaridade acaba se saindo
melhor do que quem não tem”, disse o pesquisador em nota.
Na avaliação do Marcelo Medeiros, vinculado à Universidade
de Princeton nos Estados Unidos, a recuperação até agora quase não gera
empregos e praticamente só favorece os trabalhadores de renda mais alta. “Os
mais pobres estão sendo deixados para trás”, diz.
Medeiros começou a estudar de que forma as oscilações
macroeconômicas afetaram a desigualdade de renda do trabalho que cresceu nos
últimos anos. Junto com Rogério Barbosa, pesquisador pós-doutor do Centro de
Estudos da Metrópole (USP) e visitante da Universidade Columbia, Medeiros
detectou que, entre 2014 e 2015, há uma interrupção da queda da desigualdade.
“Em boa medida o desemprego é o carro chefe da tendência de aumento da
desigualdade recente. Em questão de um ano e meio, o trabalho distributivo
passa a ser desfeito na mesma velocidade em que ele tinha sido feito",
explica Barbosa. Ele conta que nos anos 2000, o índice Gini caía 7 pontos ao
ano, justamente quando o país vivia um boom de empregos.
A desigualdade se acentua em 2016, com a renda menor entre
os trabalhadores. "A partir daí temos um aumento de 20 pontos no Gini
devido à desigualdade dentro do mercado, instabilidade, e insegurança para quem
sobreviveu", diz. No fim de março, 13,4 milhões de pessoas estavam
desempregadas no Brasil, segundo dados do IBGE.
Analisando a série dessazonalizada (quando se exclui os
efeitos das variações típicas de cada período do ano), é possível observar que,
em meados de 2014, os 50% mais pobres se apropriavam de 5,74% de toda renda
efetiva do trabalho. No primeiro trimestre de 2019, a fração cai para 3,5%.
Para esse grupo que controla uma quantia pequena do montante existente, essa
redução de apenas 2.24 pontos percentuais representa, em termos relativos, uma
queda de quase 40%.
Enquanto isso, o grupo dos 10% mais ricos da população, na
metade de 2014, recebia cerca de 49% do total da renda do trabalho - e vinha
apresentando redução nessa parcela, ao longo dos anos anteriores. No início de
2019, sua fração chega a 52%. Para Barbosa, a desigualdade de renda aumenta por
dois motivos nos últimos ano. Primeiro, porque muitas das pessoas que conseguem
reingressar no mercado vão para o setor informal e inseguro, portanto
preocupados em reduzir gastos, inibindo a circulação de dinheiro na economia.
E, por outro lado, as pessoas que ficaram no setor formal têm colocações
melhores, e, eventualmente, chegam a melhorar seus ganhos. "Desigualdade
não é apenas ganhar ou perder, é ganhar mais rápido. Se alguém se distancia do
restante da população, aumenta a desigualdade. O topo do mercado formal está se
distanciando da base de forma muito rápida, algo que não víamos desde o começo
de 1990", explica Barbosa.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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