Imagem: Sr. García
Publicado originalmente no site El País Brasil, em 15 de junho de 2019
Redes sociais: quando compartilhar é humilhar
Plataformas sociais geram um eco infinito. Algumas vezes,
levam a uma desumanização do outro. Precisamos de formação para usá-las sem
danos e para não cometer, sem perceber, um crime
Por Rosario G. Gómez
O youtuber que há dois anos deu um biscoito recheado de
pasta de dente a um mendigo em Barcelona, gravou a cena e a publicou na
Internet saberia que estava cometendo um crime contra a integridade moral se
tivesse intuído que o mundo virtual é regido pelos mesmos direitos e obrigações
que o entorno físico. Humilhou uma pessoa vulnerável. E para agravar a situação
o divulgou maciçamente através de seu próprio canal do YouTube. Há duas
semanas, foi condenado a 15 meses de prisão. As redes sociais não são uma simples
e inocente conversa de bar. Têm um eco infinito e, frequentemente, distorcem e
corroem a convivência.
O caso do youtuber é uma amostra da desumanização que se
instalou nas redes sociais. Os direitos fundamentais das pessoas são atacados,
os valores sociais são menosprezados, a intimidade é pisoteada. Como diz o
coordenador do curso de pós-graduação de Marketing Digital de La Salle, Ricard
Castellet, as redes sociais são uma ferramenta com dois polos: “Amplificaram os
fatos puníveis, alguns muito tristes, mas também desenvolveram fluxos de
comunicação e de conhecimento, contribuindo para que circulem e se democratizem
como nunca. O problema está no uso que fazemos. São fantásticas, mas, se
receberem um mal-uso, são plataformas perigosíssimas à convivência”.
As redes sociais nasceram antes do que pensamos. O advogado
norte-americano Andrew Weinreich é visto como o criador da primeira em meados
dos anos noventa do século passado. Ele a batizou de Six Degrees (Seis Graus),
evocando a hipótese de que qualquer pessoa pode estar conectada a outra através
de uma cadeia de conhecidos com no máximo seis ligações. Weinreich vendeu sua
empresa em 1999, pouco antes da queda das companhias pontocom e apenas cinco anos
antes de que Mark Zuckerberg e seus sócios fundassem o Facebook, a mais popular
das redes sociais contemporâneas, com mais de 2 bilhões de usuários.
Para grande pare da legião de adeptos, usar bem essas
plataformas é uma matéria a ser cumprida. Publicar vídeos que incitam o ódio,
cortejam a xenofobia e fomentam a violência e o sexismo não são somente
reprováveis ética e socialmente, como podem ter consequências penais. Muitos
usuários não são plenamente conscientes. “É preciso se vacinar contra a ingenuidade”,
diz o especialista em Direito Digital Ricardo Oliva, que pede o reforço da
educação digital nos colégios para evitar que sejam cometidas humilhações,
vexames e atentados contra a intimidade com um clique.
Em abril, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa
aprovou um relatório coordenado pelo ex-senador espanhol socialista José Cepeda
que fazia uma pergunta inquietante: as redes são conexões sociais ou ameaças
aos direitos humanos? O documento questionava o modelo de negócio da Internet,
baseado em reunir dados pessoais. É esse o preço a ser pago pelo acesso aos
serviços? Como evitar o controle sub-reptício?
Em teoria são inócuas, mas podem mudar e mudar até se
tornarem máquinas perversas. O cientista britânico Tim Berners-Lee aproveitou o
30° aniversário da World Wide Web para refletir sobre os acertos e erros
derivados de sua invenção. “Ainda que a web tenha criado oportunidades, dando
voz a grupos marginalizados e tornando nossas vidas mais fáceis, também criou
oportunidades para os vigaristas, deu voz aos que proclamam o ódio e tornou
mais fácil cometer toda a espécie de crimes”.
As redes são conexões sociais ou ameaças aos direitos humanos?
dizia um relatório do Conselho da Europa
A funcionária da fábrica Iveco localizada no distrito madrilenho
de San Blas-Canillejas que se suicidou no final de maio após a divulgação
maciça de um vídeo sexual gravado há cinco anos é um exemplo paradigmático dos
efeitos ominosos das plataformas digitais. A empregada da empresa, de 32 anos e
mãe de duas crianças, de 4 anos e 9 meses respectivamente, não pôde suportar o
assédio que recebeu no trabalho, os cochichos de seus colegas e a pressão
ambiental pelo vídeo se tornar viral através de grupos de WhatsApp. A
investigação judicial determinará as responsabilidades por essa trágica morte.
Mas a lei é muito clara. “Ver um vídeo com essas características é uma questão
moral, exibi-lo é uma questão legal”, diz a especialista em comunicação digital
e professora da Universitat Oberta da Catalunya Raquel Herrera, que vê nesse
terrível acontecimento uma evidente carga machista. A fanfarrice, a cultura da
exibição, é masculina. “Em muitas situações ainda se considera que um homem é
um campeão se tem muitas conquistas, mas em uma mulher parece um crime. Há
muita gente que procurou o vídeo por pura morbidez. É fácil um conteúdo mórbido
se tornar viral. Se as pessoas soubessem que divulgar esse tipo de imagem é
crime, não o fariam”, diz Herrera.
O Código Penal espanhol deixa pouca margem à dúvida. O
artigo 197 é extremamente claro quando diz que será punido com uma pena de 3
meses a 1 ano de prisão e multa de 6 a 12 meses aquele que sem autorização da
pessoa afetada “difundir, revelar e ceder a terceiros” imagens e gravações
audiovisuais privadas, até mesmo no caso de terem sido obtidas com seu
consentimento. Parece óbvio que no terrível caso da Iveco a lei foi
desrespeitada e a intimidade pessoal foi gravemente afetada. O dano foi de tal
dimensão que levou a funcionária a tomar uma decisão drástica. O advogado Oliva
considera que as pessoas que contribuíram à distribuição do vídeo deveriam ser
investigadas por crime de revelação de segredo e ataque à intimidade.
Até a reforma do Código Penal de 2015, só se punia a difusão
de fotografias e vídeos se fossem feitos sem a autorização do interessado e
fossem imagens roubadas. O detonador do endurecimento tem nome próprio: Olvido
Hormigos. Em 2012 era vereadora da cidade de Los Yébenes (Espanha). Denunciou
seu ex-companheiro por divulgar um vídeo erótico que circulou pela Internet
rapidamente. Mas não ocorreu crime contra a intimidade porque não foi roubado e
gravado ilicitamente. O Código Penal daquela época dizia que o crime de
revelação e divulgação de segredos só existiria se as imagens divulgadas fossem
obtidas ilicitamente. Não era o caso de Hormigos.
Nas redes sociais as condutas privadas confluem com as
sociais. “Há uma falsa aparência de privacidade", diz o professor da
Universidade Complutense Arturo Gómez Quijano, que observa como a lei da
simplicidade domina na Internet. “O julgamento é imediato, eliminando matizes e
profundidade. Os veículos de comunicação precisaram de informação sobre o que
aconteceu na tragédia da Iveco antes dos juízes, e as redes, antes da imprensa.
Transformamos essas plataformas em um fim, quando na verdade são um meio”. No
mesmo instante em que o vídeo cai na Internet e no Facebook perde-se seu
controle. Estoura. Sua difusão pode adquirir uma dimensão global.
O desconhecimento por parte dos usuários é monumental.
“Temos um problema de pedagogia e educação das redes”, diz Castellet. “Estamos
diante de uma revolução da comunicação. Uma mudança radical. Em 10 anos usos e
costumes se modificaram. A sociedade está aprendendo a utilizar essas
plataformas e deveria existir formação obrigatória no colégio para ensinar as
possibilidades negativas das redes e seus perigos. É preciso educar na escola e
na família para que o uso seja coerente e racional”.
“Temos um problema de pedagogia e educação das redes. É
preciso educar na escola”
Utilizar incorretamente essas plataformas é nocivo à
convivência. De modo que ganhou importância uma corrente de opinião que pede
maior regulamentação da Internet e das redes sociais. “Se esses canais são
utilizados para destruir a reputação de uma pessoa, é preciso ter normas”, diz
Castellet. Para evitar situações dramáticas, não são poucos os que pretendem
ativar no ecossistema de trabalhos manuais de boas práticas. Essas barreiras
contra incêndios seriam, de acordo com Raquel Herrera, uma garantia dos
direitos e deveres das empresas para proteger a reputação de seus funcionários.
As mudanças tecnológicas avançam a um ritmo vertiginoso e a
sociedade não os assimila com a mesma celeridade. Gómez Quijano utiliza uma
metáfora: “As pessoas não são capacitadas para dirigir uma Ferrari, e isso gera
problema importantes”. As redes sociais são uma ferramenta muito poderosa para
que os usuários não tenham formação. “Isso está explodindo em nossas mãos e
vamos aprendendo por tentativa e erro”, acrescenta. A dualidade
emissor-receptor dos meios tradicionais já não serve. “O receptor antes era
passivo, mas agora demos a ele a máquina de responder. A sociedade está presa
em um ecossistema hiperconectado, com suas vantagens e inconvenientes. Não
temos experiência e conhecimento acumulado. Nas redes sociais se perdeu a
sensação de privacidade e intimidade. Medimos muito o quantitativo, mas é
preciso educação para hierarquizar e dar importância ao qualitativo. Até agora,
a tribo soube educar, mas pela primeira vez na história não está sabendo
assumir essa função pedagógica”.
Essa carência, misturada com uma clamorosa ignorância e um
ilimitado afã de notoriedade, é um coquetel explosivo que alimenta as redes com
produtos tóxicos para ganhar adeptos a qualquer custo. Até mesmo com
passatempos macabros. Muitos adolescentes participam de desafios violentos,
testes extravagantes e ridículas competições para ampliar seu grupo de
seguidores online. Pela web circulam vídeos onde os jovens rivalizam com jogos
selvagens. Uma das últimas modas consiste em apertar o pescoço de uma pessoa
para provocar o desmaio por asfixia, uma atrocidade que convive na Rede com
outros desafios absurdos, como besuntar o corpo com álcool e tocar fogo,
ferimentos autoinfligidos e passar de um quarto ao outro pela varanda dos
hotéis.
É justamente essa falta de formação e aprendizagem no uso
das redes que torna os usuários altamente manipuláveis, de acordo com Gómez
Quijano: “Somos previsíveis porque as empresas nos conhecem. Damos nossa
intimidade a elas de presente. O Facebook e o WhatsApp são um gigantesco
ouvido. Sabem tudo o que dizemos”. Para mitigar esse poder onímodo, o Conselho
da Europa dá uma receita: estabelecer fórmulas de cooperação entre as redes
sociais e as autoridades públicas como antídoto aos venenos do ciberespaço: a
intolerância, a desinformação, a incitação ao ódio, os ataques à privacidade.
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