Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 10/05/2019
Entrevista Christiane Torloni - "FHC foi o último estadista que o Brasil teve"
Por Luisa Purchio
Na quinta-feira 9 chegou aos cinemas o primeiro trabalho da
atriz Christiane Torloni, 62 anos, como diretora. O documentário “Amazônia — o
despertar da Florestania”, feito em parceria com o diretor Miguel Przewodowski,
é resultado de sua história de amor com a floresta, um namoro que começou a
ficar sério em 2007, durante as gravações da série “Amazônia — de Galvez a
Chico Mendes”. Foi aí que ela se deparou com uma densa fumaça vinda das
queimadas da mata. “Eu tive um chamamento no meu coração, igual à época em que
tinha 20 e poucos anos e fui envolvida pelas Diretas Já”, diz a atriz. Em 2009,
com Juca de Oliveira e Victor Fasano, Christiane organizou um manifesto pelo
desmatamento zero chamado “Amazônia para Sempre”, com dez medidas para
preservar a floresta e um milhão de assinaturas. O documentário é uma resposta
aos signatários do abaixo-assinado. Apesar da emoção, é um retrato da lucidez
da artista diante dos atuais desafios políticos e ambientais, temas que analisa
em entrevista à ISTOÉ.
A senhora usa a expressão florestania. O que ela significa?
É próximo ao que chamamos de ecologia. É um “fazimento”
indígena, rituais de cura da terra feitos com as ferramentas que os índios têm
e baseados em um conhecimento ancestral. O índio não precisa vir para a civilização
e se tornar alguma coisa que ele não é, porque ele já é um cidadão da floresta,
sabe fazer manejo, o quanto pode pescar, onde deve plantar, como proteger todo
o ecossistema que está à sua volta e atender aos deveres e direitos que a
floresta pede. Se não for assim, ela não fica em pé. Enquanto tem índio em pé,
tem floresta em pé. Talvez o que falta para nós, “homens brancos”, é uma
etiqueta explicativa. A palavra lembra cidadania, que é um conjunto de normas
de bem viver que de alguma maneira têm de ser impostas.
A Força Nacional deve ser a guardiã do Estado democrático,
até porque a soberania do Brasil é ameaçada constantemente pelo tráfico de
drogas
Qual o critério para a abrangente escolha de personagens?
Tenho muito medo dos maniqueísmos e escolhi pessoas que
fizeram algo importante para a Amazônia. Não podemos reescrever a história.
Quando fizemos o abaixo-assinado, não foi só preencher uma folha, passamos um
ano viajando e ouvindo ONGs, instituições, pensadores. Ao falar comigo, essa pessoa
está falando com todos nós.
Como foi a sua experiência trabalhando como diretora?
O cinema é muito fragmentado. Você tem uma ideia, mas para
ela se tornar uma obra depende não só de execução, mas também de convencimento.
Cada um quer fazer o seu filme, mas ele não é um conjunto de olhares, ele é a
síntese de um olhar de alguém que disse “esse é o filme que eu quero fazer”.
Entre os filmes possíveis, eu motivei as pessoas a fazerem o filme que eu
sonhei. Entre isso e montar o filme todo, aí sim foi um encontro de discussões.
Aparecem humanistas, economistas, jornalistas, antropólogos. O filme começa com
a voz de Antonio Abujamra porque quero mostrar que ele vai ser visto através
dos olhos de um artista. Se tiver que atirar um tomate, que seja no artista.
Meus pais são da turma inaugural da primeira escola de arte no Brasil, eu nasci
nesse meio.
O brasileiro em geral é desconectado com as raízes e as
riquezas do País?
É, e porque a educação é pífia. Só por isso. Se a nossa
educação fosse boa, estudaríamos Darcy Ribeiro no colégio desde pequenos, com
edição ilustrada para crianças. Podemos jogar uns trinta livros no lixo e
deixar esse lá. Darcy é cada vez mais contemporâneo, mas vivemos em um País que
o exilou e matou-o em vida. Encontro esse espírito “darcyniano” em 60% das
pessoas com as quais eu converso, mas elas se sentem um pouco sonhadoras,
maluquetes, quando na verdade essa essência é magnífica. Precisamos que isso
ecoe nas nossas crianças, porque assim vamos voltar a amar o Brasil, ou a
redescobrir o Brasil. Ou a votar melhor nas eleições no Brasil.
Por que não se posicionou politicamente nas últimas eleições
e também no documentário?
Interessa-me a casa comum. É o que me interessava nos anos
1980. Não mudei de lá para cá, apenas saí de uma questão político-partidária
porque ela infelizmente diminuiu. A Amazônia é maior que um partido. Não tem
nada mais importante para a gente que a nossa casa, o nosso ninho, ele que
agasalha. Só que a Amazônia é o ninho comum, como disse o papa Francisco. Por
que o papa está no filme? Porque esse cara teve a grande “sacação” do século
XXI. Ele escreveu uma encíclica na qual convida as pessoas para a conversão
ecológica. Fui ler a “Laudato Si” e pensei: esse cara está fazendo o mesmo
filme que eu.
O Sínodo da Amazônia foi criticado pelo governo. Como vê
essa questão?
O trabalho das Igrejas é grande e não pertence a um segmento
só. Precisamos ter luz, é muito difícil seguir o caminho sozinho. A fé é maior
que um partido político, Jesus não pertence ao PT e a nenhuma agremiação. O
importante na palavra dele é o amor. O trabalho das Igrejas na Amazônia é
importante, como também é o da Força Nacional, que chega a lugares onde ninguém
consegue chegar. Vi na Amazônia distribuição de enxoval pelas Forças Armadas.
Nós pagamos impostos altíssimos para que todos os segmentos da sociedade possam
funcionar e acho bom quando vejo lá longe um serviço que o meu dinheiro ajuda a
pagar.
Como vê a preservação da floresta Amazônica nos dias de
hoje?
O que falta para a Amazônia é uma política de Estado, não de
governo. O último estadista que vimos no Brasil foi Fernando Henrique Cardoso.
Nem tudo que ele fez foi bom ou ruim, mas se não fosse por sua iniciativa
firme, hoje a Amazônia estaria mais desprotegida. E agora essa questão está
sendo discutida de novo, para o mal de todos os nossos pecados ecológicos.
O filme mostra que o regime militar contribuiu para o
desmatamento. É uma preocupação atual?
Tenho certeza que não estamos em 1964. Estamos em outra
conjuntura política, inclusive mundial. Tivemos avanços nos últimos trinta
anos, principalmente porque voltamos à democracia. Mas quem mata, desmata. Há
um desenvolvimentismo louco, sem nenhum tipo de escrúpulo, como foi com a usina
de Belo Monte. Não há estudo real de impacto ambiental, vamos simplesmente
fazendo.
O que quer dizer com a frase no documentário: “a democracia
está sendo golpeada pela democracia”?
A ação silenciosa e sinistra da corrupção no Brasil
desestabiliza a instituição democrática como um todo. É como um câncer
silencioso criando metástase em órgãos vitais do nosso sistema democrático.
Nesse momento é importante que estejamos em uma grande campanha para não
permitir o desmonte de iniciativas como a Lava Jato, a lei da Ficha Limpa, o
trabalho da Transparência Internacional. Quando viajamos para a Amazônia,
estávamos em um ambiente ligado ao Exército, à Marinha, à Aeronáutica, em uma
época em que o general Augusto Heleno era a cabeça do Exército lá. As frases
eram no sentido contrário, de que o Exército não tinha interesse em voltar a
ocupar esse lugar. Muito bem, dez anos depois, qual é o lugar que o exército
está ocupando agora?
E a soberania nacional?
Eu acho que a Força Nacional deve ocupar o lugar dela, de
guardiã do Estado democrático. A soberania do País nos afeta como? Ela é
ameaçada pelo tráfico de drogas. Na Amazônia é a Força Nacional que tem poder
de evitar que um barco passe de um lugar para o outro. As instituições devem
fazer aquilo que elas devem fazer. É claro que está todo mundo assustado com o
que está acontecendo agora, principalmente porque as pessoas indicadas para
ocupar cargos importantíssimos no governo não têm formação para estarem ali.
Pode dar um exemplo?
Nesses cem primeiros dias, vemos escolhas instáveis, quando
a própria sociedade civil fez indicações, principalmente para o Ministério da
Educação e para o Meio Ambiente. São postos importantíssimos e as pessoas não
têm noção do que estão falando. No século XXI, dizer que temos mais ou menos
aquecimento global? Uma coisa é dar uma declaração num bar, outra na liturgia
do seu cargo. Não importa se é general, almirante, marechal, desde que se tenha
qualificação. Qual é o critério de escolha daquelas pessoas para aqueles
postos?
Como analisa as críticas aos artistas que se posicionam
politicamente nas redes sociais?
Estranha democracia essa. O meu mantra é: só o trabalho
responde. Quando fico muito angustiada, quando entro no palco, repito o mantra
para mim. Entrei nas redes sociais para divulgar o filme, não para outras
coisas. Não tenho vontade e sou muito ocupada para isso. Mas se tiver de
escolher um lugar, não estou do lado dos haters, estou do lado dos lovers.
Há um desenvolvimentismo louco, sem nenhum tipo de
escrúpulo, como foi com a usina de Belo Monte. Não há estudo real de impacto
ambiental, vamos simplesmente fazendo
Como vê a luta atual dos movimentos feministas?
Volto a dizer, não estamos nos anos 1960. Hoje a luta possui
outras armas e ferramentas. O que me assusta é o índice de assassinatos que
estamos vivendo principalmente nas grandes cidades. O feminicídio é como a
palavra florestania, eu não me lembro de tê-la ouvido no passado e agora ouço
toda hora. Por que estão matando tanto a mulher? Talvez seja toda essa questão
de desemprego e desespero social, e uma perda cultural de espaço masculino,
porque culturalmente eles tinham certeza de que aquele espaço jamais seria
ocupado. Quando começa a mudar, algo fica ameaçado. Os homens são ótimos
educadores, sei porque fui casada quatro vezes. Eles precisariam ter uma
assistência psíquica para enfrentar esses novos tempos. Sua masculinidade não
está sendo discutida, pelo contrário, esses novos papéis deveriam potenciar a
virilidade.
A senhora tem um neto de um ano e oito meses. Como é a
Christiane Torloni avó?
Estamos vivendo uma época parecida com a das “Diretas Já”,
passo muito tempo fora. Me lembro que com meus filhos era uma dor miserável,
isso não vi, isso não vi. Lamentavelmente estou perdendo um tempo muito bonito
do meu neto. Com esse “fazimento” inteiro, não consigo ficar muito tempo com
ele, mas são as missões das pessoas. Pelo menos ele vai ter certeza, como meu
filho tem, de que eu estava fazendo uma coisa pelos filhos do Brasil, pelos
netos do Brasil. De algum jeito ele está dando um pedaço dele também. Não deixa
de ser uma contribuição.
Texto e imagem reproduzidos do site: istoe.com.br
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