O professor Henry Giroux no pátio do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 14 de maio de 2019
“A crise da escola é a crise da democracia”
O pedagogo norte-americano Henry Giroux defende que todas as
disciplinas incorporem o pensamento crítico para promover o combate a
ideologias extremistas: "A direita não quer que as pessoas pensem"
Por Ana Torres Menárguez
Henry Giroux (Providence, EUA, 1943), um dos acadêmicos mais
reconhecidos no Canadá e um dos impulsionadores da chamada pedagogia crítica,
tem um discurso radical sobre as falhas do sistema educacional. Ele não fala
dos resultados dos exames PISA, que medem o conhecimento em ciências,
matemática e compreensão leitora dos alunos de 15 anos de idade nos países da
OCDE. Aliás, considera que provas padronizadas são uma estratégia da direita
para desviar a atenção do "verdadeiro" problema da educação: não
fomentar o pensamento crítico, de modo a criar cidadãos
"conformistas" que não exijam nada das autoridades.
Radicado em Toronto, Giroux é conhecido por suas publicações
conjuntas com Paulo Freire, um dos pedagogos de referência do século XX por sua
teoria da Pedagogia do Oprimido, em que propõe a rebelião dos mais
desfavorecidos através do acesso à educação. Giroux, pesquisador da
Universidade McMaster de Ontário, foi incluído na obra Fifty Modern Thinkers on
Education: From Piaget to the Present (editora Routledge, 2002), que seleciona
os 50 pensadores que mais contribuíram para o debate educacional no século XX.
Giroux, autor de Neoliberalism’s War on Higher Education (“a
guerra do neoliberalismo contra o ensino superior”, sem edição no Brasil),
critica que as universidades estejam sendo atacadas com cortes contínuos em seu
financiamento, especialmente os departamentos de humanas, para que deixem de
ser centros de pensamento. E cita o caso brasileiro. Na semana passada, depois
de dar uma palestra no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, conversou
com o EL PAÍS.
Pergunta. O que é a pedagogia crítica?
Resposta. Não é um método que possa ser aplicado nos
colégios. É uma revisão do tipo de escola que queremos. É uma tentativa de
reconhecer que a educação é sempre política, e o tipo de pedagogia que se usa
tem muito a ver com a cultura, a autoridade e o poder. A história que contamos
ou o futuro que imaginamos se reflete nos conteúdos que ensinamos. A pedagogia
tal e como está exposta ataca em vez de educar. É um sistema opressivo, baseado
no castigo e na memorização, que persegue o conformismo. É preciso desenvolver
outros métodos que formem alunos capazes de desafiar as práticas
antidemocráticas no futuro.
P. Há alguns anos, houve uma onda de inovação educacional
que transformou muitos colégios. Não acha que estão cumprindo essa função?
R. As escolas estão sendo atacadas, especialmente por
Governos fascistas e de direita. No Brasil, Bolsonaro incentivou os alunos a
denunciarem os professores de esquerda por uma suposta doutrinação, e quer
eliminar todas as referências a Paulo Freire dos currículos. Acaba de anunciar
um corte nas graduações de humanas, como filosofia e sociologia, para priorizar
profissões que "gerem um retorno ao contribuinte". A crise da escola
é a crise da democracia. Os governos de direita não querem que as pessoas
pensem, e a educação tem um papel central na luta contra as narrativas tóxicas
e o surgimento de ideologias ligadas à supremacia branca.
As provas são parte de um discurso de opressão, são uma
forma de disciplinar os alunos
P. Como se pode implantar a mudança que você propõe? Acha
que os partidos de esquerda estão à altura?
R. Primeiro o interesse tem que vir da rua, da comunidade de
moradores e dos próprios professores. O poder tem que levar a educação a sério.
A esquerda é muito estúpida no que se refere à educação. Não percebe a
importância que ela tem. Nos Estados Unidos, Obama reproduziu o programa dos
republicanos, o teaching for the test (“ensinar para a prova”). As provas são
parte de um discurso de opressão, são uma forma de disciplinar alunos e
professores, e privam os alunos de terem imaginação. É preciso potencializar o
diálogo, a construção de identidades e como encaixar os outros, como as
minorias, por exemplo.
P. Qual é o perigo das provas?
R. São uma estratégia para fazer cidadãos menos críticos.
Disseram aos professores que eles não são intelectuais, que são tecnocratas e
que estão lá para medir o conhecimento dos alunos, que o que importa são os
exames. Parece que a avaliação é o centro do sistema educacional. Mas a função
da escola deveria ser conseguir criar cidadãos tolerantes, com capacidade de
diálogo. O colégio é o lugar onde se criam as identidades. Quem você quer ser?
Quando o professor e os conteúdos são incontestáveis, estão inculcando uma
forma autoritária de entender a sociedade. Silenciar as dúvidas sobre o que vem
dado de cima. A direita sabe tirar partido disso.
P. O Canadá é um exemplo de inclusão nas salas de aula. Acha
que é uma referência?
R. O Canadá tem um sistema muito progressista, mas tampouco
se salva. Em Ontário, o novo primeiro-ministro [provincial], Doug Ford, do
Partido Conservador, suprimiu as classes de educação sexual e obrigou a retomar
o currículo de 1990. Quer centrar o sistema em educar para o trabalho. Os
Governos transformam a educação em algo que não deveria ser.
As universidades cada vez mais funcionam como empresas. Os
estudantes viraram clientes
P. Não acha que as escolas devem preparar os alunos para as
habilidades que o mercado de trabalho exige? Vão encontrar um terreno muito
competitivo.
R. Não têm que preparar para o trabalho que os alunos terão
no futuro, e sim para o tipo de sociedade em que eles querem viver. Eu te
ofereço as habilidades digitais para que você trabalhe no Google ou no Facebook,
mas você viverá numa sociedade fascista e intolerante. Isso não vale. É preciso
priorizar que eles aprendam a serem cidadãos informados, quando há partidos de
extrema direita que estão ascendendo ao poder.
P. Poderiam acusá-lo de ter uma visão utópica demais.
R. Sobreviver não é só encontrar o trabalho adequado, é
exigir um bom sistema público de saúde ou o direito a uma moradia digna. O
sistema escolar, baseado na competitividade entre iguais e na ideia de
ganhadores e perdedores, ensina a acreditar que quando você tem um problema a
culpa é sua. Que os problemas são individuais. As pessoas não podem transferir
os problemas pessoais para as carências do sistema. Então surgem indivíduos
alienados que se culpam a si mesmos por sua situação infeliz. "Não fiz o
suficiente no colégio, por isso vou mal", pensam, em vez de olhar para o
Estado do bem-estar, e ver se ele está sendo desmantelado. É preciso ensinar a
lutar e a exigir da administração que cumpra suas obrigações.
P. Em seu último livro você faz uma crítica muito dura ao
trato dispensado pelos Governos às universidades.
R. Trump ameaçou retirar recursos federais de universidades
que considera serem monopolizadas por liberais e esquerdistas, e propôs reduzir
o orçamento educacional em sete bilhões de dólares em 2020. Cerca de 70% dos
professores do ensino superior nos Estados Unidos têm contratos de meia
jornada. Isso afeta sua liberdade de expressão, pois acham que podem ser
demitidos se falarem. Têm medo de se mobilizarem contra a administração. A universidade
deveria ser um espaço para o diálogo. As universidades cada vez mais funcionam
como empresas, não contratam intelectuais para liderá-las, e sim CEOs. Os
alunos viraram clientes. Os jovens são um valor no qual vale a pena investir,
um investimento longo. Mas os políticos, tanto de esquerda como de direita, só
procuram resultados de curto prazo.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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