A modificação do olhar desde sempre se dá, também, através de como muitos
redigem aquilo que lemos. (Milkoví/Unsplash)
Publicado originalmente no site Dom Total, em 20/05/2019
Uma lista, começos e fins
Minha lista tem jornalistas e escritores e lhes devo a
gratidão por tornarem ainda tão prazeroso ler em um país onde cada vez se
redige e se interpreta pior os textos.
A modificação do olhar desde sempre se dá, também, através
de como muitos redigem aquilo que lemos.
Por Ricardo Soares*
Sentimental demais, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim,
clássico do cancioneiro popular imortalizado na voz de Altemar Dutra, define
bem meu estado de espírito faltando poucos dias para que eu complete os
apavorantes 60 anos. Diante disso me perdoem o derramamento pseudo-poético. É
que frases, situações, conceitos e emoções baratas andam esbarrando em mim de forma
que hoje cometerei uma lista que já explico do que se trata.
Primeiro que, em tempos tão áridos em que a inteligência, conhecimento
e a cultura são pouco valorizadas, uma frase do sofisticado e excelente poeta
José Paulo Paes tem pipocado ao meu lado e por sorte tem se espalhado internet
afora. Diz: "Cultura é tudo aquilo de que a gente se lembra após ter
esquecido o que leu. Revela-se no modo de falar, de sentar-se, de comer, de ler
um texto, de olhar o mundo. É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a
arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica seu
olhar".
A modificação do olhar desde sempre se dá, também, através
de como muitos redigem aquilo que lemos. Provavelmente, muitos de nós que
gostamos de ler não seríamos o que somos não tivéssemos lido o que lemos. Posso
dizer inclusive que devo minha opção profissional e de vida, minhas escolhas, por conta de escribas
que desde sempre me fizeram olhar as coisas de "outra maneira". E
quando falo escribas é para ampliar o conceito mesmo. Quero me referir a quem
vive de escrever seja jornalista, romancista, contista, poeta, roteirista. A
soma de todos eles, o que li, me fizeram o que sou.
Chego pois à lista prometida no começo da crônica e que é
resultado de uma velha percepção. Sempre achei que escritores e jornalistas em
geral (falo do Brasil) são muito pouco generosos com os colegas de ofício e me
incluo nisso. Mesmo sem nominar publicamente, somos capazes de esculhambar
muito mais aqueles que escrevem mal ou não sabem escrever, ou se confundem, ou
são venais do que elogiar, aplaudir, reconhecer o talento que nos faz olhar as
"coisas da vida" de outro modo.
Meio nocauteado, cheio de rinite, divido essas pueris
reflexões e minha lista com os leitores por conta do lançamento recente de um
livro do jornalista Nirlando Beirão chamado Meus começos e meu fim. O livro,
grosso modo, meio romance, meio memória, é resultado de uma reflexão de seu
autor por conta da descoberta, há três anos, de uma doença
"degenerativa". A palavra entre aspas é inclusive destrinchada no
livro por Nirlando: "Degenerativa é uma palavra que tira você para dançar
- uma dança do medo. Degenerativa, a palavra me pinçou a alma quando o médico a
pronunciou".
O livro de Nirlando torna-se pois mote para eu abrir minha
lista dos craques vivos do texto brasileiro não como uma forma de homenagem e
sim de agradecimento pois- voltando a José Paulo Paes - textos como o de
Nirlando mudam nossa forma de olhar as coisas. Não falarei aqui do livro dele
pois ainda não o conclui e evidentemente tem gente mais qualificada para
escrever a respeito. Mas abro a lista com ele ainda atônito com o fato da
"degenerativa" o ter
escolhido. Ou seja, tudo isso me fez querer clamar a minha lista no ano em que
completo 41 anos de profissão e 60 de idade.
Assim seguem os
outros nomes dos meus "craques vivos". Muitos deles amigos próximos,
outros colegas cordiais mas distantes e um deles que não tive a chance de
conhecer pessoalmente. São todos veteranos o que talvez denuncie minha ignorância
sobre os novos talentos do texto brasileiro se é que existem. Minha lista tem
jornalistas e escritores jornalistas e
lhes devo a gratidão, um abraço e meu reconhecimento por tornarem ainda
tão prazeroso ler em um país onde cada vez se redige e se interpreta pior os
textos. É uma lista de 10 e poderia ser facilmente aumentada para 20 nomes.
Além disso começa a ficar difícil.
Muitos tiveram presença sob holofotes, são reconhecidos pelo
talento. Outros, nem tanto. Mas me
regozijo em poder tê-los acompanhado por tanto tempo. Evoé então Humberto
Werneck, Fernando Morais, Ruy Castro, Fernando Barros e Silva, Sérgio Augusto,
Marco Lacerda, Walterson Sardenberg Sobrinho, Gabriel Priolli e Celso Arnaldo
Araújo, que, com o Nirlando, formam a minha "seleção", que poderia
ter o emblemático e futebolístico 11 em campo com o nome de Mino Carta como
goleiro ou técnico, sei lá.
Sim, sei que é "sentimental demais", pessoal em
demasia o que acabei de redigir. Mas é a minha lista, meu exercício de
tolerância e generosidade para admirar sem restrições de ordem alguma. Essa
gente fez e faz minha vida melhor. Se não concordam com a escalação façam as
vossas listas. Precisamos de reforços para entender tudo o que está
acontecendo.
*Ricardo Soares é diretor de tv, roteirista, escritor e
jornalista. Dirigiu 12 documentários, publicou 8 livros.
Texto e imagem reproduzidos do site: domtotal.com
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