Publicado originalmente no site El País Brasil, em 12 de abril de 2019
Os dependentes de telas: o “vício sem substância” que começa
aos 14 anos
Eles não dormem e comem fora de hora. Deixam de tomar banho.
Um em cada cinco espanhóis entre 10 e 25 anos sofre de transtornos
comportamentais devido à tecnologia. Por trás do vício se escondem, na maioria
dos casos, carências pessoais ou problemas de autoestima
Por Ana Torres Menárguez
Eles chamam isto de vício sem substância. Adrián, de 14
anos, de Cádiz (sul da Espanha), o pegou no verão. Quase sem perceber, passava
os dias trancado em seu quarto, quase não comia, e deixou de tomar banho. Sem
se comunicar com a família, sua única atividade era jogar no console do
PlayStation. “Meus horários mudaram, passava a noite toda acordado e à tarde
descansava algumas horas. Quando tinha fome, ia à cozinha buscar mais Red Bull
– bebida energética–, fazia alguns sanduíches e pegava um saco de batatas
fritas”, conta o jovem. No dia em que seus pais começaram a se preocupar,
tiraram-lhe o console, o esconderam no carro e o menino se agarrou a ele de forma
doentia, diz Isabel, a mãe. Tiveram de ir a uma delegacia para por fim ao
conflito. “Adrián não era mais Adrián, sempre foi carinhoso e agora se
comportava de forma violenta.”
Um em cada cinco espanhóis entre 10 e 25 anos sofrem de
transtornos de comportamento devido à tecnologia, de acordo com uma pesquisa
feita com 4.000 pessoas que será incluída no novo Plano Nacional sobre Drogas
do Ministério da Saúde da Espanha. O vício em telas não é considerado uma
doença e ficou fora do DSM5, a classificação dos transtornos mentais elaborada
pela Associação Norte-americana de Psiquiatria, que atualizou a lista em 2013.
A ludopatia (vício de jogar) é o único comportamento viciante reconhecido nesse
documento, que associa a dependência principalmente a substâncias: álcool,
fumo, estimulantes, maconha e opiáceos.
“Não existe um protocolo para agir nesses casos, o
diagnóstico de novas doenças sempre vai a reboque das mudanças sociais. É
preciso saber diferenciar entre consumo excessivo e vício, que é quando a
pessoa perde o controle e sofre porque, embora queira parar, não consegue”,
explica Celso Arango, vice-presidente da Sociedade Espanhola de Psiquiatria. Em
seu hospital, o Gregorio Marañón, em Madri, o vício em videogames já é o
segundo mais tratado depois da maconha, no caso dos adolescentes.
Perda de controle: assim Adrián descreve o que viveu durante
dois meses. A família decidiu procurar ajuda quando, no início do ano letivo,
foi para o terceiro ano do ensino médio, suas notas despencaram e ele foi
reprovado em seis matérias. “Não raciocinava, nos empurrava e esmurrava a
parede”, descreve a mãe. Com sessões de terapia familiar em uma entidade
dedicada à prevenção e ao tratamento de dependência de drogas (a Asociación
Proyecto Hombre) –que em 2013 lançou um programa para jovens viciados em
tecnologias de comunicação–, conseguiram deter o problema. Adrián vendeu o
console e com esse dinheiro comprou uma mountain bike, um hobby que havia
abandonado. A chave para sua recuperação foram as chamadas resoluções, punições
ou recompensas por seu comportamento.
“Ao começar o tratamento, o vazio emocional dos jovens é
muito grande. Sua vida foi preenchida pelo jogo, pelo reconhecimento de outras
pessoas por suas façanhas virtuais. Ao contrário do que acontece com eles na
vida real, ali se sentem competentes e os fracassos que possam ter não são
penalizados. O que pode ser oferecido a eles que os preencha de forma
semelhante?”, reflete Pedro Pedrero, psicólogo desta associação em que Adrián
recebeu tratamento, que já atendeu 200 jovens, a maioria meninos de 16 anos. As
meninas são 20% do total. “O vício não tem a ver com o número de horas, mas com
as consequências”, acrescenta.
Na Espanha, cerca de 90% dos jovens entre 14 e 16 anos
dispõe de dois a cinco dispositivos digitais pessoais e 86% reconhecem o uso
“muito habitual” do telefone celular, segundo o estudo As Tecnologias de
Informação e Comunicação e sua Influência na Socialização de Adolescentes,
publicado em janeiro pela Fundação de Ajuda contra o Vício em Drogas.
“COM TRÊS ANOS LHES DÃO O TABLET PARA COMER OU PARA
ACALMÁ-LOS DE UMA BIRRA. ISSO SIGNIFICA ENSINAR A CRIANÇA A REGULAR SUAS
EMOÇÕES ATRAVÉS DE UM APARELHO” (JOSÉ MORENO, PSICÓLOGO E DIRETOR DO CENTRO DE VÍCIOS
TECNOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE MADRI)
Por trás do vício se escondem, na maioria dos casos,
carências pessoais ou problemas de autoestima. “Se eles se refugiam na
tecnologia, é por alguma coisa. É o que chamamos de fenômeno iceberg: o vício é
o que vemos, mas por baixo pode haver conflitos familiares, bullying, luto pela
morte de um ente querido ou mudança de país”, destaca José Moreno, diretor do
Centro de Vícios Tecnológicos da Comunidade de Madri, um serviço público
pioneiro na Espanha destinado unicamente a adolescentes inaugurado há um ano e
que desde abril de 2018 já ofereceu tratamento psicológico a 124 jovens de 12 a
16 anos. 38% dos casos são provenientes dos departamentos de saúde mental dos
hospitais de Madri. Nestes primeiros onze meses, 1.583 pessoas participaram de
seus programas de prevenção.
Parte do problema nasce na família. “Com três anos lhes dão
o tablet para comer ou para acalmá-los de uma birra. Isso significa ensinar a
criança a regular suas emoções através de um aparelho”, diz Moreno. A
comunicação é fundamental. “Nós trabalhamos o vínculo. É necessário que os pais
acompanhem a criança na terapia, a responsabilidade não recai sobre um único
membro, todos devem estar dispostos a mudar”, diz Moreno. Os sinais de alerta
são geralmente três: refeições fora de hora, maus hábitos de sono e abandono de
responsabilidades. Reconhecer que o adolescente tem um problema é um processo
complexo. “Eles têm medo e afirmar que o filho é um viciado é um estigma para
as famílias.”
O que as telas provocam no cérebro? “Ao contrário do vício
em substâncias, este não deixa uma marca psicológica para toda a vida, pode ser
superado com mais facilidade”, afirma Domingo Malmierca, coautor de três guias
publicados pela Comunidade de Madri para ensinar a conviver com as telas e
membro da Fundação Aprender a Olhar, que trabalha contra os abusos no ambiente
digital. Os jovens ficam excitados porque têm um desafio pela frente: ganhar
uma batalha ou surpreender em uma conversa no WhatsApp. “Cada acerto representa
uma descarga de dopamina, é uma satisfação imediata”, explica o especialista.
O cérebro dos adolescentes é “imaturo” e muito vulnerável a
estímulos que podem se tornar viciantes, diz Hilario Blasco, psiquiatra do
hospital Puerta de Hierro, em Madri. “Os adolescentes têm menos freios, o lobo
frontal –a parte do cérebro responsável pela regulação dos impulsos– não
terminou de se formar. Nem todos ficam viciados, os que têm boas habilidades
sociais ou praticam mais esportes são mais resistentes”, afirma.
“AS CRIANÇAS FAZEM O QUE VEEM, NÃO O QUE OS PAIS MANDAM, POR
ISSO UMA SOLUÇÃO É ESCOLHER ÁREAS LIVRES DE TECNOLOGIA DENTRO DE CASA E
HORÁRIOS.” (STEPHEN BALKAM, PSICÓLOGO)
A família deve dar exemplo. “As crianças fazem o que veem,
não o que os pais mandam, por isso uma solução é escolher áreas livres de
tecnologia dentro de casa e horários. Guardar todos os aparelhos em um armário
à noite e evitar que sejam colocados na nossa cama”, adverte Stephen Balkam,
fundador do Family Online Safety Institute, uma organização nos Estados Unidos
que pesquisa práticas responsáveis no mundo digital. “Ainda não conhecemos as
consequências no longo prazo, não se deve demonizar a tecnologia, mas aplicar o
bom senso”.
O isolamento é outro sinal. Daniel, de 13 anos, foi à escola
três vezes desde o início do ano letivo. Não quer sair de casa e nem encontrar
os amigos. Seu lugar é o sofá, na frente do qual tem uma televisão conectada ao
seu Nintendo. “Não tenho nada a esconder, meu filho tem um vício de alto risco em
telas”, conta o pai, Ángel Gutiérrez, na saída da sessão de terapia semanal de
que ele, a esposa e filho participam em Madri. Teme que a Procuradoria de
Menores intervenha e lhes retire a custódia por causa das seguidas faltas à
escola.
O menino, de cabelos compridos e soltos e um moletom preto,
pede ao pai para não dar muitos detalhes. “Ele não tem habilidades sociais e
agora estamos examinando sua autoestima, parece que é muito baixa”, conta o
pai. Agora eles começaram a administrar as horas de jogo e Daniel está
conhecendo garotos de sua idade que estão na mesma situação na terapia de
grupo. “A tecnologia é a pior coisa que nos aconteceu, pior do que se descesse
um extraterrestre”, diz a mãe, que prefere não dar o nome.
“Muitas das famílias que vêm à terapia são muito
disfuncionais; não costumam expressar suas emoções nem sabem dizer não com
respeito. Os julgamentos e gritos são uma forma de violência e a educação é a
base. Ensinamos-lhes outra maneira de se relacionar”, diz o psicólogo José
Moreno. A família é o modelo de referência. O distúrbio não nasce sozinho.
OMS RECONHECE O "TRANSTORNO" POR JOGOS ELETRÔNICOS
A Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu em junho de
2018, pela primeira vez, o transtorno por videogames e jogos eletrônicos como
doença mental em sua Classificação Internacional de Doenças (CID-11), que não
era atualizada desde 1992. O transtorno se refere ao uso de videogames, com ou
sem conexão com a Internet. Para a OMS, é considerado um transtorno se
representar uma “deterioração significativa” nas áreas de funcionamento
pessoal, familiar, social ou educacional.
No início de 2017, quando se soube que a OMS avaliava
incluir os jogos digitais como origem de transtornos mentais, um grupo de
pesquisadores, entre eles da Universidade de Oxford, criticou a ideia. Na
opinião do grupo, não estava claro que esses problemas devessem ser atribuídos
a um novo transtorno. Em um artigo, os pesquisadores manifestaram a falta de
consenso da comunidade científica sobre os sintomas a serem levados em conta. A
inclusão desse transtorno poderia provocar pânico ou a “aplicação prematura do
diagnóstico na comunidade médica e o tratamento de casos de falsos positivos
abundantes, especialmente em crianças e adolescentes”, lamentaram. O debate que
colocaram sobre a mesa questionava se valia a pena dedicar recursos públicos a
essa questão e considerava o estigma que poderia causar na comunidade de
jogadores “saudáveis”.
SOBRE ESTE PROJETO
Esta reportagem faz parte do Especial Crescer Conectados,
uma série de artigos que explora a vida de crianças e adolescentes no mundo
digital. Os códigos mudaram, as crianças aprendem, brincam e se relacionam por
meio de redes sociais e telas, cercadas por algoritmos e big data, nativos em
ambientes nos quais os mais velhos transitam com desconcerto. O projeto Crescer
Conectados reflete sobre os desafios que enfrentam e as possibilidades que se
abrem para essas gerações. O que os menores fazem, onde estão e como usam a
tecnologia? Têm entre 3 e 18 anos: eles serão nossos guias.
BRASIL: 8 EM CADA 10 CRIANÇAS ESTÃO ONLINE
O Brasil tem uma das maiores populações online do mundo: são
126,4 milhões de pessoas conectadas à Internet segundo o IBGE, sendo que quase
25 milhões de internautas são crianças e adolescentes. Embora faltem estudos
que deem uma dimensão da extensão dos problemas envolvendo o uso excessivo de
tecnologia no país, sobram indicadores de que este é um tema que preocupa cada
vez mais famílias e educadores.
Segundo duas pesquisas de 2018 do Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), oito em cada dez
brasileiros entre 9 e 17 anos (85%) são usuários ativos da Internet, sendo que
o telefone celular é o meio para acessar a rede preferido por 93% --um avanço
estrondoso em comparação com os 21% de 2012, E 40% dos professores de escolas
de áreas urbanas já ajudaram algum aluno a enfrentar situações
“desconfortáveis” relacionadas ao uso da Internet, tais como bullying, discriminação,
assédio e disseminação de imagens sem consentimento. A maioria das crianças e
adolescente (79%) usam a Internet para trocar mensagens; 77% para assistir a
vídeos; 75% para ouvir músicas; e 73% para usar redes sociais.
Já um levantamento da consultoria Deloitte aponta embora 63%
dos pais de jovens entre 18 e 24 acreditem que seus filhos usam muito
smartphones, e 50% dos pais são autocríticos: reconhecem que também usam muito
seus telefones celulares.
Em São Paulo, um programa ligado à Universidade de São Paulo
(USP) e ao Hospital das Clínicas atende pacientes que sofrem com variados tipos
de compulsão, incluindo dependência de tecnologia e vício em jogos. Há
tratamento gratuito para quem tem mais de 18 anos e um tese online: Como sei
que sou dependente de internet?
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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