Linda e Guilherme moram juntos há 10 meses e querem ter, pelo menos, dois filhos
Imagem: Arquivo Pessoal
Publicado originalmente no site UNIVERSA, em 13/03/2019
"Sou mulher trans, me prostituí e fui salva por meu
marido, um homem trans"
Por Talyta Vespa (Da Universa)
A transição de gênero aconteceu tarde na vida da esteticista
Linda Mercadante, de 28 anos. Nascida em Araçatuba, no interior de São Paulo,
ela passou a infância como um menino gay, aceito e cuidado pela família. Aos 16
anos, ela se mudou para São Paulo e descobriu que, talvez, a feminilidade da
qual tanto gostava fosse parte dela mesma. "Meu pai estava internado com
uma doença degenerativa e, durante um breve momento de lucidez, eu disse a ele:
'Pai, acho que sou menina'".
A mãe acompanhou a transição e temeu pela prostituição,
caminho que Linda decidiu percorrer. Foram três anos na prostituição de luxo e
nas drogas, até que ela conheceu Guilherme, um homem trans, tatuador, com quem
descobriu diversas afinidades. "Isso faz um ano. Moramos juntos há 10
meses e queremos ter filhos biológicos e adotivos". Veja a história de
Linda.
"Eu demorei para entender que era uma mulher
transgênero porque não tinha conhecimento de que isso era possível. Era um
menino gay bastante afeminado e sentia que faltava alguma coisa, que eu não
sabia o que era.
Em Araçatuba, cresci ouvindo que travestis eram prostitutas
que ficavam na rua. Comecei a ouvir falar de transexualidade ao me mudar para
São Paulo, aos 16 anos, e começar a namorar um garoto.
Não tive problema com meus pais, eles sempre aceitaram minha
sexualidade e nada mudou quando me descobri transgênero e decidi começar a
transição. Esse namorado não aceitou e, por isso, voltei para Araçatuba.
Meu pai estava doente, internado em um hospital, e tinha
poucos momentos de lucidez. Em um deles, eu disse: 'Pai, acho que sou menina'.
E ele, bem fraco, me respondeu: 'Se você for feliz assim, que seja'. Pouco
depois, ele morreu. Minha mãe lia sobre pessoas transgênero comigo e me
acompanhava na hormonização (processo que abastece o corpo com hormônios
femininos). A única coisa que ela pediu foi que eu não fosse para a
prostituição.
E eu decidi ir. Eu percebia que não era aceita, o mercado de
trabalho era cruel -- e ainda é, já que 90% dos transexuais no Brasil estão na
prostituição -- e nenhuma loja queria um travesti dando a cara para a marca. Eu
não conseguia emprego em lugar nenhum. Então, optei pela prostituição de luxo.
Eu tinha um site, tudo nos conformes. A grana da
prostituição, que não era pouca, eu gastava com tratamentos estéticos e com a
hormonização, já que ouvia de colegas trans que, por eu ter iniciado a
transição com 25 anos, seria sempre uma mulher muito masculina. Aquilo me
enlouquecia. Comecei a gastar dinheiro com depilação a laser, maquiagem, tudo
que pudesse me deixar mais feminina. Além disso, eu sentia que, como trans, só
seria respeitada se mostrasse que eu podia consumir, que eu tinha dinheiro.
Tinha essa ilusão.
A questão é que, além da prostituição, comecei a usar
drogas. No começo, porque os clientes pediam. Alguns, às vezes, nem queriam
transar, mas, sim, uma companhia para se drogar. E eles pagavam bem, R$ 4 mil,
por noite. Eu não recusava. Já cheguei a cheirar 40 pinos de cocaína em uma
noite. Era um círculo vicioso e eu não me via mais fora dele. Qualquer outra
vida me renderia menos dinheiro.
Minha mãe teve um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e
precisava de cuidados 24 horas por dia. Então, fiquei um mês sem trabalhar só para
cuidar dela. Quando consegui um cuidador para revezar comigo, ela morreu, no
começo do ano passado. Foi um baque grande.
No mesmo período, conheci o Guilherme, meu marido,
ocasionalmente em frente à minha casa. Ele estava com um amigo em comum em um
bar lá perto. Esse amigo nos apresentou e, nesse dia, ficamos conversando
durante a madrugada inteira. O tempo voou. Descobrimos várias afinidades e eu
soube, inclusive, que ele era um homem trans. Ficamos e não nos desgrudamos
mais. Tive medo de como a família dele receberia meu passado -- em cidade
pequena, todo mundo sabe de todo mundo.
Fui muito bem aceita, abraçada, e me sinto parte da família.
A mãe e as tias dele, inclusive, pagaram um curso de estética para mim. Hoje,
eu faço design de sobrancelhas em domicílio, abandonei a prostituição e nunca
mais cheguei perto de drogas. Me sinto forte para negar quando me oferecem. No
ano que vem, pretendo começar a faculdade de gastronomia. Eu amo cozinhar. Tive
que trocar de número de celular duas vezes porque os clientes ainda insistem em
me chamar. Respondo, educadamente: "Sou casada, não trabalho mais com
isso".
Guilherme e eu estamos construindo nossa vida juntos. Ele
vai abrir um estúdio de tatuagem ainda esse ano e esperamos, nos próximos dois
anos, ter filhos. Precisa ser logo porque, se ele não retirar o útero, a
hormonização pode gerar complicações. Queremos, pelo menos, um biológico e um
adotivo. Tê-lo encontrado foi uma alegria que eu sigo vivendo."
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