Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 15 de março de 2019
A antirrevolução dos costumes
A antirrevolução dos costumes
Com palavras e ações, o presidente Bolsonaro e seus
ministros Damares Alves e Ricardo Vélez insistem em impor ao Brasil retrocessos
que remetem aos tempos mais obscuros da história
A antirrevolução dos costumes
Por Cilene Pereira
Os progressos humanos já deixaram claro que não ter medo do
conhecimento é a chave para que tudo avance. Foi um enorme salto quando a
humanidade descobriu que a peste que devastou países no século 14 não era um
castigo mandado por Deus, mas uma doença causada pela bactéria Yersinia pestis,
transmitida ao homem por pulgas infectadas. Assim como foi bastante libertador
para as mulheres contarem com a pílula anticoncepcional, a partir de 1960,
dispondo finalmente de um meio eficaz de evitar a gravidez. O lançamento da
pílula deu início à uma revolução sexual que ecoa até hoje e que tem como
legado indiscutível ter tirado a discussão da sexualidade do porão e a levado
para a sala de jantar. Ficou mais fácil falar de sexo e de tudo o que está
associado a ele, inclusive da necessidade de prevenção das doenças que podem
ser transmitidas durante o ato.
E isso é muito bom. Menos, ao que parece, para o presidente
Jair Bolsonaro e parte de sua trupe de ministros. Comandando uma espécie de
antirrevolução dos costumes em todas as áreas, o presidente determinou ao
primeiro escalão do governo a implementação de uma série de ações com o intuito
de fazer deslanchar uma pauta ultraconservadora, incluindo a questão de
educação sexual – na verdade, uma deseducação. Parece uma obsessão e é isso que
tem norteado a maioria das iniciativas nos primeiros meses de mandato. Também é
o que embala a retórica presidencial não raro utilizada como uma espécie de
válvula de escape. Toda vez que surge algo na imprensa capaz de constrangê-lo,
o presidente ou mesmo algum ministro saca da cartola uma ideia, em geral
polêmica, que possa promover o que chamam de guinada cultural. Não se trata de
estelionato eleitoral, uma vez que boa parte da população o elegeu em nome
justamente da promessa do cavalo de pau na agenda dos costumes. E é por isso
que a estratégia mobiliza a militância nas redes, orienta os debates mais
acalorados e, ao fim e ao cabo, tira o foco do que é essencial. O problema, no
entanto, é maior do que simplesmente eclipsar o que deveria estar à luz do sol.
Reside no fato de que muitas das medidas constituem retrocessos impensáveis.
IGNORÂNCIA Esta é uma das páginas que Bolsonaro mandou tirar
da
caderneta de vacinação para adolescentes
Por falta de informação, a cobertura vacinal contra o HPV,
vírus sexualmente transmissível, é baixa
Por exemplo, nos últimos dias, Bolsonaro determinou que
sejam feitas mudanças nas cadernetas de vacinação para adolescentes
distribuídas pelo Ministério da Saúde. Ele não gostou das páginas que explicam
as transformações nas anatomias feminina e masculina ao longo da adolescência e
muito menos das que apresentavam como colocar a camisinha para homens e a
camisinha para mulheres. No entender de Bolsonaro, as imagens “não caem bem
para meninos e meninas terem acesso”. O presidente fez o anúncio por rede
social e disse ter sido alertado para o conteúdo por uma senhora, eleitora sua,
que havia lhe enviado as figuras.
Autocuidado e prevenção
Assim, por sugestão de alguém que o País não conhece e que
provavelmente ainda está na era em que sexo era pecado, o presidente da
República botou abaixo dois anos de trabalho. Foi o tempo que levou para que
especialistas, pais e adolescentes discutissem a questão a fundo e produzissem
uma caderneta informativa e atraente para o público alvo. O Ministério da Saúde
irá fazer as alterações pedida. Por enquanto, a que está no site é a que
Bolsonaro quer apagar.
É lamentável que um retrocesso dessa natureza tenha
ocorrido. Há décadas o mundo tenta tornar as informações sobre sexo mais
acessíveis, coisa que se tornou ainda mais urgente depois da Aids. “Informação
previne, e não o contrário”, afirma a bióloga Luisa Villa, chefe do Laboratório
de Inovação do Instituto do Câncer de São Paulo. Sem falar de sexo, sem
explicar a anatomia, como fazer com que o adolescente entenda o seu corpo? Como
incentivá-lo a se proteger se ele não tem informação do que ocorre durante o
ato sexual?
Essa é uma verdade aplicada a todas as áreas. Porém, o
governo Bolsonaro parece atuar em bloco contra ela. Damares Alves, ministra da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por exemplo, insiste em retratar um
mundo no qual, como ela mesma diz, menino veste azul e menina veste rosa. Há tempos
isso não existe mais, e a liberdade de escolha do gênero e da opção sexual é
uma das conquistas mais celebradas deste século. No entanto, Damares defende
estereótipos ultrapassados. Na semana passada, durante uma fala sobre o Dia
Internacional da Mulher, a ministra disse que os homens precisam respeitar as
mulheres — o que é verdade — e fazer gentilezas como oferecer flores e abrir a
porta do carro.
Parados no tempo
“Informação previne, e não o contrário. É nosso dever
informar sobre o uso correto da camisinha” Luisa Villa, bióloga
(Crédito:Divulgação)
Não se está aqui condenando homens que fazem isso e tampouco
mulheres que gostam de receber esses agrados. O que se critica é a insistência
de uma ministra de Estado em algo nostálgico e estigmatizante quando a
realidade da brasileira é bem mais dura do que não ter a porta do carro aberta
para ela. Estão aí os dados de feminicídio para provar: só em 2018, 53 mulheres
foram mortas porque eram mulheres. É o enfrentamento dessas questões que deve
ser levado adiante por uma pessoa em sua posição, não o reforço de uma
concepção de mundo que parece ter parado na década de 1950.
É essa impressão que se tem quando são analisadas várias
ações bolsonaristas. No caso do ministro da Educação, Ricardo Vélez, às vezes
parece que o mundo parou na década de 1970. Sua ordem para que os estudantes
hasteassem a bandeira brasileira e cantassem o hino nacional no primeiro dia de
aula determinava, na verdade, a implantação de uma prática comum durante os
governos da ditadura. “A lei que mandava as crianças cantarem o Hino Nacional
nas escolas públicas é de 1971”, lembra a educadora Cláudia Costin, fundadora
do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais na Fundação
Getulio Vargas, em São Paulo. “Não há problema em cantar o hino. O problema é
mandar que tudo fosse gravado, tornar-se um slogan do governo”, afirma.
Bolsonaro e seus dois ministros, na verdade, parecem sentir
saudades do tempo em que a revolução dos costumes ainda provocava efeitos
tímidos. A insistência em tirar das escolas aulas de educação sexual remete à
era dos colégios onde o assunto era simplesmente proibido. Um equívoco que a
história já corrigiu, mostrando, cientificamente, os benefícios de colocar o
tema em sala de aula. “Vamos pensar em evidências científicas, e não em
crenças. Não há relação cientifica do tema com homossexualismo ou pedofilia.
Não há como uma pessoa fazer da outra homossexual”, explica Claudia. É a
ciência falando. E a ciência está no século 21, ao lado dos avanços e não dos
retrocessos.
O sexo, segundo Bolsonaro
Mesmo antes de publicar o vídeo do “golden shower” no
Twitter durante o Carnaval, o presidente Jair Bolsonaro demonstrava uma visão
enviesada do sexo, principalmente da sexualidade alheia. Ele parece ver transgressão
em tudo, toma manifestações isoladas como uma tendência geral de depravação e
tem sempre como alvo principal de seus ataques os gays. Bolsonaro tem certeza
que hoje há uma grande conspiração da esquerda na área de educação para induzir
as crianças ao homossexualismo. É uma espécie de ideia fixa. Em poucas
palavras, o que o presidente diz é que ativistas do movimento LGBT querem
ensinar nas escolas as crianças como ser gay. No mundo imaginário de Bolsonaro
há qualquer momento um professor pode tirar da manga uma cartilha com
instruções para a prática do sexo anal ou com imagens de beijos entre duas
mulheres. É isso que ele diz querer combater. O esforço de educadores para
tornar a sociedade mais tolerante é visto como uma iniciativa libidinosa levada
a cabo por pedófilos e gente traiçoeira.
PARADA GAY Bolsonaro vê conspiração para induzir crianças ao
homossexualismo
Uma publicação que incomoda especialmente o presidente é
“Aparelho Sexual e Cia — um guia inusitado para crianças descoladas”, livro
francês escrito por Hélene Bruller e ilustrado pelo cartunista suíço Zep,
editado pela Companhia das Letras. Seu conteúdo é destinado à orientação sexual
de jovens de 11 a 15 anos. A obra trata com um tom bem humorado de assuntos
relacionados à sexualidade adolescente e envolve questões básicas como o
nascimento de bebês e os dilemas da puberdade. Há anos, Bolsonaro combate esse
livro como um exemplo de deformação moral. Durante a campanha eleitoral,
Bolsonaro tentou transformá-lo num símbolo da conspiração homossexual ao
mostrá-lo no Jornal Nacional. Para Bolsonaro, a obra é um conjunto de
atrocidades e integra o fantasioso “kit gay”. “A minha briga é com o kit gay.
Não quero que crianças de seis anos de idade tenham acesso ao kit gay. Você
quer que se ensine crianças de seis anos de idade que o menino deve enfiar o
piu-piu no bumbum de outro homem?”. Segundo o presidente, o livro “estimula as
crianças precocemente para o sexo e, além disso, escancara as portas da
pedofilia”. Bolsonaro tem aversão à educação sexual nas escolas. Nos últimos
anos, se dedicou a atacar o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, lançado em
2009, que, segundo o presidente, usa o público LGBT para difundir nas escolas
questões que os pais não querem para seus filhos.
O presidente dizia que o plano criava cotas para professores
homossexuais “Aqui é mais importante colocar na cabeça do menino que ele não é
menino e da menina que ela não é menina, como foi aplicado na prova do Enem”,
afirma. “Há uma minoria de ativistas homossexuais que ganham dinheiro com isso,
se atocaiam, fazem uma emboscada no pessoal de primeiro grau. Os pais deixam
seus filhos na escola e lá eles vão ter aula de homossexualismo. A título de
combater a homofobia as crianças vão ser presas para pedófilos.”
“Informação previne, e não o contrário. É nosso dever informar
sobre o uso correto da camisinha” Luisa Villa, bióloga
Bolsonaro deveria ser menos intolerante. Para alguém que
declarou ter feito sexo com animais, em especial com galinhas soa estranho
falar em combater a sexualização precoce. “Ir atrás de galinha no galinheiro
todo mundo ia. Entendeu? Alguns mais malandros pegavam na jumentinha, na
bezerrinha. Naquele tempo não havia mulher”, disse ele em uma entrevista ao
programa CQC, em 2017. Ou seja, com galinha pode, mas com o amiguinho nem
pensar.
Vicente Vilardaga
Um mundo de devassidão
O que o presidente pensa sobre educação sexual
“Eu não deixaria um filho meu, de cinco anos de idade, ir
brincar na casa de outro menino da mesma idade que tenha sido adotado por um
casal gay”
“Qual é o pai que tem orgulho de ter um filho gay? Não tem.
Ele convive e deve respeitar. Agora, eu nunca vi um baile de debutante
patrocinado por esses pais”
“Eles querem estimular a pedofilia. Eles querem sensualizar
as crianças precocemente. É uma esculhambação o que fazem com a educação no
Brasil”
“Olha, homofobia não existe. Não é por que o cara faz sexo
com o seu órgão excretor que vai ser melhor do que os outros”
Colaborou Fernando Lavieri
Texto e imagens reproduzidos do site: istoe.com.br
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