Foto da cadela antes de ser espancada e morta. Reprodução/Facebook
A brutal morte de um cachorro vira-lata em um Carrefour leva
o Brasil ao divã
"O animal representa uma natureza pura, sem
ambiguidade. É o ideal que gostaríamos de ter para a gente. E nos faz sentir
mais legais do que somos", explica a psicanalista Vera Iaconelli
Por Felipe Betim
Os últimos dias vem sendo de enorme comoção desde que o
vídeo da brutal morte de um cachorro vira-lata branco num supermercado
Carrefour de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, viralizou nas redes
sociais. O animal foi espancado e envenenado por um segurança do local no
último dia 28, conforme mostram as imagens da câmera de segurança do
estabelecimento, e acabou não resistindo aos ferimentos. Internautas, ativistas
pelos direitos dos animais, celebridades e políticos vem se manifestando
publicamente contra o bárbaro crime, uma mobilização que fez com que cerca de
1,5 milhão de pessoas assinassem uma petição exigindo a punição do funcionário.
Uma manifestação foi convocada para sábado. O que está por trás de tamanha
comoção? Em um país estruturalmente tão violento em que barbaridades cotidianas
contra seres humanos são naturalizadas, por que as pessoas se sensibilizam
dessa forma com a morte de um animal?
O EL PAÍS consultou a psicanalista Vera Iaconelli, doutora
em psicologia pela USP e diretora do instituto Gerar, que começa alertando:
"Qualquer forma de crueldade contra seres vivos é injustificável e deve
ser condenada em todas as instâncias. Mas parece existir certa desproporção com
relação a defesa de alguns seres vivos em detrimento de outros, o que mostra
que estamos com dificuldade de fazer uma reflexão sobre nossos valores".
Ela explica que o valor de uma vida humana, de um animal e até de uma planta
vai mudando ao longo da história —e estamos em uma época de amplo debate sobre
a crueldade dispensada aos animais, incluindo os criados para abate e os
utilizados em testes de laboratório. A isso se junta, segundo o diagnóstico de
Iaconelli, o fato de os seres humanos estarem num alto grau de intolerância
entre si, mesmo diante de das dificuldades e histórias de vida. Por outro lado,
toda a piedade, comoção, identificação e empatia vem sendo transferidas para os
animais.
Isso acontece, explica a psicanalista, porque os animais,
especialmente os cães, possuem uma relação completamente desigual com o ser
humano. "O cachorro não te critica. Você chuta ele, mas ele volta. As
pessoas estão muito intolerantes umas com as outras e vão tendo com o cachorro
uma relação de espelhamento e de conforto narcísico e psíquico. Então, para a
nossa vaidade humana, o cachorro nos satisfaz mais como companheiro porque ele não
é um interlocutor, não é um crítico, não me confronta comigo mesmo. Ele é capaz
de aceitar tudo", argumenta ela. É por essa relação de "subserviência
absoluta" que o cachorro é o melhor amigo homem, já que outro homem
"te obriga a pensar em quem você é".
Assim, é mais fácil se mobilizar por um animal "que nos
faz sentir maravilhosos" do que por um sujeito que, sendo humano, é
falível por natureza. Isso faz com o cão seja visto como indefeso diante de
quem deveria cuidar dele, alguém que é potente demais. "O animal
representa para a gente a natureza pura, sem ambiguidade, sem maldade. É o
ideal do que gostaríamos de ter para nós mesmos e não conseguimos, porque somos
um poço de ambiguidade. É um espelho que faz com que nos sintamos mais legais
do que estando em contato com os outros humanos. Narciso acha feio o que
espelha ele demais", argumenta a Iaconelli. "Temos relações
idealizadas, não queremos a vida como ela é", acrescenta.
Tudo isso parece se refletir na mobilização nas redes
sociais e na intensa cobertura midiática a reboque dela em torno da morte do
cachorro em Osasco, já que um jornal "acaba sendo o espelho de tudo aquilo
que já está sensibilizado na cultura, reflete uma visão de mundo atual e uma
demanda". Mas não só isso. Iaconelli lembra que muitas famílias estão
alçando cachorros a condição de filhos e trazendo para eles rituais que são da
ordem humana. "Até o século XVII e XVIII as crianças eram tratadas como os
cachorros hoje são tratados: todo mundo amava e cuidava, mas ninguém ficava
destruído se uma morria. Havia certa naturalidade nisso", explica.
"Elas passaram a ser vistas como seres que merecem cuidados especiais
muito recentemente. E o mesmo está acontecendo agora com os cachorros, muitos
dos quais hoje têm plano de saúde, herança, chá de bebê...", acrescenta.
No passado, lembra a psicanalista, o cachorro era um animal
utilitário. Servia para caçar ou esquentar a cama. Hoje, não tem nenhuma
serventia "que não seja fazer companhia para a solidão humana". Ela
alerta mais uma vez: "Estamos privilegiando um animal que tem um amor
acrítico ao homem, que nos faz sentir magnânimos, e desprezando as relações
aqueles que são capazes de nos criticar e mostrar quem nós somos".
Ainda que seja uma tendência global, Iaconelli enxerga
alguns agravantes no Brasil, onde "há uma quantidade absurda de crianças
morrendo dentro de casa vítimas de bala perdida e há uma naturalização
disso". Para ela, o brasileiro faz pouca reflexão e autocrítica.
"Existe uma certa história que o brasileiro conta para ele mesmo sobre
como ele é bonzinho, como ama criança, ao contrário dos europeus, taxados de
muito frios", conta. "Eu passei a vida inteira ouvindo isso, ao mesmo
tempo que vi a vida inteira criança pedindo esmola no sinal de trânsito. Como
assim a gente ama criança e tolera isso?", questiona. E arremata: "O
brasileiro tem dificuldade de se olhar no espelho e vai criando uns mitos sobre
si mesmo. Um pouco de reflexão poderia colocar as coisas no lugar".
O bárbaro crime contra o cachorro do Carrefour —notícias dão
conta de iria ser adotado por um funcionário do estabelecimento— já fez com que
o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Civil instaurassem uma inquérito
para apurar a ocorrência. A delegada Silvia Fagundes Theodoro, da Delegacia de
Meio Ambiente de Osasco, disse que não há dúvidas sobre a agressão, segundo
informou o jornal Extra. O responsável poderá ser indiciado pelo delito de
maus-tratos contra animais, podendo ser condenando de três meses a um ano de
prisão e a pagar uma multa. Aliás, diante do ocorrido, o senador Randolfe
Rodrigues (REDE) propôs um projeto de lei que aumenta a pena de prisão para até
três anos e estabelece multa também para os estabelecimentos comerciais que
"concorreram a prática de maus-tratos, direta ou indiretamente". O
deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito e questionador
aberto do conceito de direitos humanos, gravou um vídeo sobre o crime. Por
outro lado, o Carrefour soltou uma nota em que reconhece o ocorrido e garante
que não vai se eximir de sua responsabilidade. "Somos os maiores
interessados para que todos os fatos sejam esclarecidos. Por isso, aguardamos
que as autoridades concluam rapidamente as investigações. Desde o início da
apuração, o funcionário de empresa terceirizada foi afastado".
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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