Publicado originalmente no site Huffpost Brasil, em 06/12/2018
Ex-interna da antiga Febem, Marjorie Serrano descobre a
intersexualidade depois dos 40 anos
Uma entrevista com Luiza Pezzotti, jornalista que escreveu a
biografia "Marjorie, por favor", lançada neste ano.
Por Milena Buarque
Jornalista especialista em Estudos
Brasileiros pela FESPSP
Marjorie Serrano é dramaturga e multiplicadora do Teatro do
Oprimido de Augusto Boal.
A violência e o teatro permeiam as vidas de Augusto,
Asdrúbal e Marjorie, ainda que não as encerrem. Até a descoberta de sua
intersexualidade, Marjorie Serrano, quando Augusto, sofreu com o abandono, a
crueldade e o sentido de ausência em sua infância na Funabem (Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor), nos anos de ditadura militar (1964-1985).
Os episódios delicados sofridos no período de internação
nunca combinaram com a tutela e o cuidado prometidos aos pais que não podiam
cuidar de seus filhos. "Fui separada dos meus irmãos pela distância
territorial, uma tentativa de destituir os nossos laços familiares",
relata Marjorie.
A história da dramaturga, "pai e mulher",
multiplicadora do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, é contada pela jornalista
Luiza Pezzotti em Marjorie, por favor (EDUC), lançado neste ano e adaptado de
um trabalho de graduação. "O meu primeiro encontro com a Marjorie foi em
março de 2016. Depois desse dia, passamos a nos encontrar uma vez por semana
até o final de outubro. Foram 7 meses de entrevistas. Encontrava com ela à
noite, depois do meu trabalho, no Satyros ou na praça Roosevelt", conta
Luiza em entrevista a esta coluna. Cada conversa tinha um tema e durava cerca
de duas horas. O livro publicado conta com novas entrevistas e um posfácio
sobre o ano de 2017.
Marjorie, uma testemunha dos efeitos da institucionalização
do sistema prisional, foi solta aos 17 anos, assumiu o pseudônimo
"Asdrúbal", nome fantasioso adotado para sobreviver aos anos de
cárcere, e se lançou finalmente ao teatro, como símbolo de sua libertação.
"A gente colocava uns nomes bem estranhos mesmo para os vigias não saberem
quem era quem. Colocaram Asdrúbal em mim e ficou", diz no primeiro
capítulo.
Intersexualidade
Ainda nos anos de Febem, em diversos momentos, Asdrúbal
previa Marjorie ao se reconhecer como uma menina. No entanto, foi apenas no
início de 2013, quando se deparou com uma mancha vermelha no colchão, saída de
sua região íntima, que um médico considerou a possibilidade de haver uma
questão relacionada à transexualidade.
Ao mostrar as chapas de exames realizados, veio o
diagnóstico: a presença de útero e ovário adormecidos, ainda não totalmente
desenvolvidos. "O meu órgão reprodutor masculino foi normal por um tempo,
depois ele morreu, atrofiou, e o feminino começou a se desenvolver",
explica Marjorie.
Em entrevista a esta coluna, a autora Luiza Pezzotti contou
um pouco mais sobre o processo de criação da obra:
Luiza, como você conheceu Marjorie e em qual momento
percebeu que sua história merecia ser contada?
Descobri a Marjorie pela internet quando ainda era Asdrúbal.
A princípio, o meu TCC abordaria a relação de internos e ex-internos da Febem
com o teatro, a arte como forma de transformação e recolocação na sociedade.
Pesquisando sobre o tema, encontrei duas entrevistas de Asdrúbal Serrano no
YouTube. Imediatamente quis que ele fosse um dos personagens do meu livro.
Lembro que no dia que marquei a entrevista com Asdrúbal na
SP Escola de Teatro, em São Paulo, havia preparado um papel com dezenas de
perguntas. Quando vi que a Asdrúbal era na realidade uma mulher, nasceu uma
nova entrevista e, consequentemente, um novo livro. Guardei o papel com as
perguntas na bolsa e comecei do zero. A primeira conversa que tivemos já me
mostrou que tinha feito a opção correta e que a história da Marjorie ia muito
além do que um capítulo seria capaz de contemplar. Eu só pensava: como ainda
ninguém contou a história dessa mulher?
Quem é Marjorie para você?
Para mim, a Marjorie é mais do que um exemplo, é a definição
do que acredito ser mulher. Ela é o resumo do que significa o amor pelo teatro
e até onde ele pode chegar, o que pode transformar, o que é capaz de superar. A
Marjorie costuma dizer que o teatro é única certeza que ela tem de que não será
abandonada nunca; para mim ela é a certeza que o teatro existirá sempre.
Gostaria que me contasse um pouco do processo de escrita da
obra. Quantos encontros vocês tiveram e quanto tempo levou para que o livro
ficasse pronto?
O meu primeiro encontro com a Marjorie foi em março de 2016.
Depois desse dia, passamos a nos encontrar uma vez por semana até o final de
outubro. Foram 7 meses de entrevistas. Encontrava com ela à noite, depois do
meu trabalho, no Satyros [companhia de teatro] ou na praça Roosevelt. Definia
um tema para o dia, geralmente seguindo a cronologia da conversa anterior.
Sentávamos, eu ligava o gravador e passávamos entre 1h30 e 2h falando.
O TCC ficou pronto no início de novembro do mesmo ano, mas,
quando recebi o convite para transformá-lo em livro, resolvi acrescentar
algumas entrevistas e um novo capítulo sobre o ano de 2017, que ficou como
posfácio. O livro mesmo só ficou pronto em setembro deste ano.
Quais foram as maiores dificuldades do projeto? Em algum
momento Marjorie teve dúvidas sobre ter sua história tornada pública?
A maior dificuldade foi manter o distanciamento da fonte que
a escrita e o jornalismo exigem. Ler a história da Marjorie é envolvente, não
tem como você não se indignar com o passado triste e muitas vezes desconhecido
do Brasil durante a ditadura militar, o que crianças pobres passaram nesse
período é revoltante. Agora, quando você escuta tudo isso da boca da pessoa que
viveu na pele, é muito mais tocante. É um misto de sentimentos que precisa ser
canalizado da forma correta e filtrada. Muitas coisas que foram relatadas
durante as nossas conversas não foram inseridas, porque a Marjorie não quis e
eu respeitei essa vontade.
Mas desde o início a Marjorie teve certeza do que queria.
Ela já havia falado em entrevistas, palestras e aulas sobre sua passagem na
Febem e sua trajetória no teatro, mas foi a primeira vez que abordou a
descoberta da intersexualidade. Quando a conheci, ela estava no início da sua
transição e por isso tivemos juntas todo o cuidado para tratar o tema. Ela se
sentia preparada para falar da mulher que sempre existiu, mas que nunca foi
visível, e eu me sinto privilegiada por ter confiado em mim para isso.
Uma passagem muito marcante durante a leitura é a que relata
os episódios de estupro e abusos, de quando Marjorie — ainda Augusto — teve de
"casar" com outro preso para ter alguma garantia de proteção. Quais
foram os fatos mais dolorosos de colocar no papel?
Com certeza, os episódios da Febem. Contar a história da
Marjorie foi um encontro com um passado que eu não conhecia. Até hoje é difícil
para ela falar sobre os abusos e vexames da época. Depois que fazia as
entrevistas, tinha que decupar o material em casa. Ou seja, ouvia várias e
várias vezes as histórias chocantes e, às vezes, nem as palavras eram
suficientes para traduzir o que sentia.
O que de Marjorie ficou em você?
A história da Marjorie vive em mim todos os dias. O que fica
da Marjorie é a força e a resistência que temos e a crença de que qualquer
obscuridade pode ser tocada pelo amor, pelas relações humanas e principalmente
pela arte.
Ainda nos encontramos sempre e queremos juntas realizar
muitos projetos direcionados ao teatro. O livro me deu uma personagem única e
uma amiga também.
*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas
do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo.
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Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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