sábado, 3 de novembro de 2018

Morre João W. Nery, ativista e 1º homem trans a ser operado no Brasil

 "Continuem a nossa luta por nossos direitos", disse Nery 
em postagem recente nas redes sociais.

'Viagem Solitária' e 'Vidas Trans', os dois livros publicados por João Nery em 2017.

Texto publicado no site HuffPost Brasil, em 26/10/2018

Morre João W. Nery, ativista e 1º homem trans a ser operado no Brasil

Ativista e escritor, aos 68 anos, era referência na garantia de direitos das pessoas transexuais no Brasil e lutava contra câncer.

By Andréa Martinelli

João W. Nery, psicólogo, escritor, ativista e considerado o 1º homem trans a ser operado no Brasil, morreu nesta sexta-feira (26), aos 68 anos. Internado desde setembro, ele lutava contra um câncer de pulmão. A notícia foi confirmada pelo IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade).

"Mesmo que estejamos tristes, pois sabemos do tamanho do amor que temos por João, sabemos agora que o sofrimento dele se findou. A nós, fica o compromisso e a responsabilidade de não deixarmos que as lembranças se percam e que mantenhamos João vivo em nós e nas nossas histórias", diz nota divulgada pelo instituto. "Continuaremos o que ele começou", finaliza.

O ativista já havia passado por problemas de saúde decorrentes de um infarto devido ao qual precisou colocar três stents nas artérias. Em setembro, Nery foi informado de que o câncer no pulmão havia atingido o cérebro. Naquele momento, o ativista divulgou um texto em suas redes sociais pedindo para que seus admiradores "seguissem com a defesa da causa transexual".

"Continuem a nossa luta por nossos direitos, se unam, não oprimam os nosso irmãos oprimidos já por tanta transfobia e sofrimento. Basta saber quem é e que se sente do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar aos homens cis o que é ser homem sem medo do feminino", escreveu.

Na mesma postagem, ele afirmou que, enquanto estava sob cuidados, também estava escrevendo um livro chamado Velhice Transviada e que pretendia terminá-lo e lançá-lo até o final deste ano. Em entrevista recente à Agência Brasil, ele falou sobre o projeto do novo livro.

"A velhice na nossa cultura é a partir dos 60, mas se uma mulher trans, por exemplo, fez 50, ela já é uma sobrevivente. Já pode se considerar uma mulher velha. E não tem asilo para os trans velhos, não tem saúde específica para atendê-los. Eles muitas vezes não têm estudo e não têm casa para morar", disse. Ainda não há informações sobre a publicação da obra.

Intelectual reconhecido, ele era fonte para jornalistas e pesquisadores. Sua militância o fez receber o título de "doutor honoris causa" pela UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul). Em 2017, a autora Gloria Perez consultou o ativista para criar o personagem Ivana (Carol Duarte), a jovem que se descobria trans e assumia a identidade sexual masculina com o nome Ivan na novela A Força do Querer.

Continuamos, para a população em geral, como seres pervertidos, doentes, invisíveis, capazes de contaminar a juventude.

"É claro que, da minha época para cá, houve um avanço muito grande, em função das passeatas, dos movimentos [sociais] e tal, e agora na mídia, por causa da novela [A Força do Querer]", disse à época ao HuffPost Brasil. "Mas continuamos, para a população em geral, como seres pervertidos, doentes, invisíveis, capazes de contaminar a juventude", concluiu.

Ano passado Nery também lançou o livro Viagem Solitária: Memórias de um Transexual, com o relato de sua vivência trans, e participou da coletânea Vidas Trans, ao lado de outros ativistas comoAmara Moira e Tereza Brant e Márcia Rocha. Ele também participou do documentário Laerte-se, da Netflix, que conta a história de ativismo da cartunista Laerte.

Por conta de sua história e de seu ativismo, Nery foi homenageado pelos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) ao ter seu nome usado para batizar o projeto de lei 5.002/13, que propõe o direito à identidade de gênero, seja no tratamento conforme a pessoa trans pede ou no registro de seu nome social em documentos.

Uma vida baseada no ativismo e na defesa de pessoas trans

Em 1964, o Brasil sofreu o golpe civil-militar que deu início a uma ditadura conhecida, entre outros fatores, pelas violações aos direitos humanos. Para João W. Nery, este golpe não foi o único que ele sofreu naquele ano. Aos 14 anos, começou a "monstruar", o que só fez aumentar a distância entre seu corpo feminino e seu gênero masculino.

Ele escreve sobre essa difícil fase no capítulo "A Viagem Solidária", presente no livro Vidas Trans, lançado em julho pela Astral Cultural. Ele divide espaço na publicação com outros três nomes de destaque do ativismo transgênero: Amara Moira, Tereza Brant e Márcia Rocha.

Nery, que também escreveu a bem-sucedida autobiografia Viagem Solitária (LeYa, 2011), atualmente tem 67 anos, mora no Rio de Janeiro e é conhecido por um ativismo que se estende há décadas. Ele é considerado o primeiro transgênero do Brasil a ser operado. Isso aconteceu em plena época da ditadura, quando a cirurgia era considerada lesão corporal grave pela lei.

O escritor fez a mamoplastia masculinizadora, que consiste na retirada das mamas e transformação do tórax em um de aspecto masculino. Ele também retirou o útero e iniciou um tratamento à base de testosterona. Era 1976 e, dois anos depois, o médico que lhe operou foi condenado a dois anos de prisão por ter feito cirurgia em uma mulher trans em 1971.

"A neofaloplastia continua experimental para os homens trans. No Brasil, isso significa que o trans, se quiser fazer um novo pênis, teria que procurar um hospital universitário", afirmou em entrevista ao HuffPost Brasil, em 2017. "Temos que evoluir em muitas coisas. Continuamos, para a população em geral, como seres pervertidos, doentes, invisíveis, capazes de contaminar a juventude."

O ativista teve que enfrentar burocracias desumanas ao buscar o processo transexualizador. Muitas vezes, para poder ser reconhecido como homem, teve que recorrer à ilegalidades, como quando teve dois CPFs. Isso acabou implicando em perder sua profissão de psicólogo.

"Eu sempre digo que é a maior patologia social hoje é o machismo, porque ele mata. E não está só no mundo dos homens, mas no das mulheres também, porque quem cria filhos machistas são mães machistas. Acho também que há uma grande misoginia, porque as mulheres são muito discriminadas, o feminino é algo altamente ameaçador para o mundo masculino, machista."

Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

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