"Continuem a nossa luta por nossos direitos", disse Nery
em postagem recente nas redes sociais.
em postagem recente nas redes sociais.
'Viagem Solitária' e 'Vidas Trans', os dois livros publicados por João Nery em 2017.
Texto publicado no site HuffPost Brasil, em 26/10/2018
Morre João W. Nery, ativista e 1º homem trans a ser operado
no Brasil
Ativista e escritor, aos 68 anos, era referência na garantia
de direitos das pessoas transexuais no Brasil e lutava contra câncer.
By Andréa Martinelli
João W. Nery, psicólogo, escritor, ativista e considerado o
1º homem trans a ser operado no Brasil, morreu nesta sexta-feira (26), aos 68
anos. Internado desde setembro, ele lutava contra um câncer de pulmão. A
notícia foi confirmada pelo IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade).
"Mesmo que estejamos tristes, pois sabemos do tamanho
do amor que temos por João, sabemos agora que o sofrimento dele se findou. A
nós, fica o compromisso e a responsabilidade de não deixarmos que as lembranças
se percam e que mantenhamos João vivo em nós e nas nossas histórias", diz
nota divulgada pelo instituto. "Continuaremos o que ele começou",
finaliza.
O ativista já havia passado por problemas de saúde
decorrentes de um infarto devido ao qual precisou colocar três stents nas
artérias. Em setembro, Nery foi informado de que o câncer no pulmão havia
atingido o cérebro. Naquele momento, o ativista divulgou um texto em suas redes
sociais pedindo para que seus admiradores "seguissem com a defesa da causa
transexual".
"Continuem a nossa luta por nossos direitos, se unam,
não oprimam os nosso irmãos oprimidos já por tanta transfobia e sofrimento.
Basta saber quem é e que se sente do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos
unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar aos homens cis o que é ser homem sem
medo do feminino", escreveu.
Na mesma postagem, ele afirmou que, enquanto estava sob
cuidados, também estava escrevendo um livro chamado Velhice Transviada e que
pretendia terminá-lo e lançá-lo até o final deste ano. Em entrevista recente à
Agência Brasil, ele falou sobre o projeto do novo livro.
"A velhice na nossa cultura é a partir dos 60, mas se
uma mulher trans, por exemplo, fez 50, ela já é uma sobrevivente. Já pode se
considerar uma mulher velha. E não tem asilo para os trans velhos, não tem
saúde específica para atendê-los. Eles muitas vezes não têm estudo e não têm
casa para morar", disse. Ainda não há informações sobre a publicação da
obra.
Intelectual reconhecido, ele era fonte para jornalistas e
pesquisadores. Sua militância o fez receber o título de "doutor honoris
causa" pela UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul). Em 2017, a
autora Gloria Perez consultou o ativista para criar o personagem Ivana (Carol
Duarte), a jovem que se descobria trans e assumia a identidade sexual masculina
com o nome Ivan na novela A Força do Querer.
Continuamos, para a população em geral, como seres
pervertidos, doentes, invisíveis, capazes de contaminar a juventude.
"É claro que, da minha época para cá, houve um avanço
muito grande, em função das passeatas, dos movimentos [sociais] e tal, e agora
na mídia, por causa da novela [A Força do Querer]", disse à época ao
HuffPost Brasil. "Mas continuamos, para a população em geral, como seres
pervertidos, doentes, invisíveis, capazes de contaminar a juventude",
concluiu.
Ano passado Nery também lançou o livro Viagem Solitária:
Memórias de um Transexual, com o relato de sua vivência trans, e participou da
coletânea Vidas Trans, ao lado de outros ativistas comoAmara Moira e Tereza
Brant e Márcia Rocha. Ele também participou do documentário Laerte-se, da
Netflix, que conta a história de ativismo da cartunista Laerte.
Por conta de sua história e de seu ativismo, Nery foi
homenageado pelos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) ao ter
seu nome usado para batizar o projeto de lei 5.002/13, que propõe o direito à
identidade de gênero, seja no tratamento conforme a pessoa trans pede ou no
registro de seu nome social em documentos.
Uma vida baseada no ativismo e na defesa de pessoas trans
Em 1964, o Brasil sofreu o golpe civil-militar que deu
início a uma ditadura conhecida, entre outros fatores, pelas violações aos
direitos humanos. Para João W. Nery, este golpe não foi o único que ele sofreu
naquele ano. Aos 14 anos, começou a "monstruar", o que só fez
aumentar a distância entre seu corpo feminino e seu gênero masculino.
Ele escreve sobre essa difícil fase no capítulo "A
Viagem Solidária", presente no livro Vidas Trans, lançado em julho pela
Astral Cultural. Ele divide espaço na publicação com outros três nomes de
destaque do ativismo transgênero: Amara Moira, Tereza Brant e Márcia Rocha.
Nery, que também escreveu a bem-sucedida autobiografia
Viagem Solitária (LeYa, 2011), atualmente tem 67 anos, mora no Rio de Janeiro e
é conhecido por um ativismo que se estende há décadas. Ele é considerado o
primeiro transgênero do Brasil a ser operado. Isso aconteceu em plena época da
ditadura, quando a cirurgia era considerada lesão corporal grave pela lei.
O escritor fez a mamoplastia masculinizadora, que consiste
na retirada das mamas e transformação do tórax em um de aspecto masculino. Ele
também retirou o útero e iniciou um tratamento à base de testosterona. Era 1976
e, dois anos depois, o médico que lhe operou foi condenado a dois anos de prisão
por ter feito cirurgia em uma mulher trans em 1971.
"A neofaloplastia continua experimental para os homens
trans. No Brasil, isso significa que o trans, se quiser fazer um novo pênis,
teria que procurar um hospital universitário", afirmou em entrevista ao
HuffPost Brasil, em 2017. "Temos que evoluir em muitas coisas.
Continuamos, para a população em geral, como seres pervertidos, doentes, invisíveis,
capazes de contaminar a juventude."
O ativista teve que enfrentar burocracias desumanas ao
buscar o processo transexualizador. Muitas vezes, para poder ser reconhecido
como homem, teve que recorrer à ilegalidades, como quando teve dois CPFs. Isso
acabou implicando em perder sua profissão de psicólogo.
"Eu sempre digo que é a maior patologia social hoje é o
machismo, porque ele mata. E não está só no mundo dos homens, mas no das
mulheres também, porque quem cria filhos machistas são mães machistas. Acho
também que há uma grande misoginia, porque as mulheres são muito discriminadas,
o feminino é algo altamente ameaçador para o mundo masculino, machista."
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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